domingo, 29 de maio de 2022

Ir à Índia e por lá ficar

 



Quanto mais a ciência persegue a exatidão, mais imprevisível se torna a história do mundo e talvez seja por isso que a inexatidão das coisas antigas me encanta, paradoxalmente tornam tudo mais exato, menos viscoso, menos inseguro. Provavelmente é por se encontrarem longe no tempo, quase inacessíveis no seu exacto contexto, mas são confortáveis. Quadros, livros, ideias no crepúsculo do nosso tempo interior, de sombras e luz. Bem-aventuramo-nos, por isso, a afirmar que as coisas de hoje, guerras, pandemias, e historietas de ideologias fáceis não nos suscitam comentários vigorosos, fogosos e sobretudo duradouros. Em conversas com os outros vamos concordando com tudo, não por não existir paciência para discussões, mas sim e ainda mais interessante do que isso, nada do que seja actual nos leva a gritar em plenos pulmões. Se nos perguntarem se uma rosa está mal colocada num arranjo de flores, aí sim, o nosso coração balança e ou se a inestética for em demasia, franzimos o sobrolho, de resto, o vazio é tanto que o deserto parece cheio.

 

As nossas crónicas  parecem fluir numa conversa íntima com Deus e da qual os outros se encontram apartados. Elas acontecem diariamente, no carro, na cozinha, na paisagem. Mas são apenas dúvidas. Não há nada menos pitoresco do que crónicas feitas de dúvidas, sobretudo se não cessarem nunca e se multiplicarem à medida que os anos passam. Deve ser por isso que o silêncio é d’ouro, para não serem reveladas as dúvidas mais profundas, os mais insistentes desconcertos entre nós e a suposta realidade, os mais flagrantes desacertos sempre que avançamos com qualquer opinião sobre qualquer coisa seguida de uma avalanche de argumentos, factos ou delírios que a contradiz.  Apraz-nos, sobretudo observar. Aí sim, o nosso silêncio é proveitoso nem que seja pelo simples facto de não fazermos barulho e podermos observar. É proveitoso para nós, não por egoísmo voluntário mas sim, involuntário. Quando nos respondem com silêncio é natural que façamos o mesmo, ainda que não seja um acto absolutamente voluntário, mas sim produto do contexto silencioso. Quanto mais barulho há no mundo, mais silencioso ele se torna, porque qualquer ruído morre morto por outro ruído qualquer. Vivemos num mundo altamente silencioso.

 

Mas também vivemos num mundo com uma determinada forma de pensar. Podemos chamar a esse modo de pensamento o modo de comer ocidental. Como bem observou Octavio Paz nos seus escritos sobre a Índia, os ocidentais comem linearmente: primeiro a entrada, depois o primeiro prato, depois o segundo prato, depois a sobremesa, depois o digestivo, se for caso disso. Os pratos sucedem-se. A nossa mesa sempre foi indiana. Houve sempre a vontade de colocar tudo de uma vez em cima da mesa e de comer pequenas porções seguindo sempre a ordem do capricho e que é inexata. O pensamento produz-se da mesma forma que comemos. O pensamento sequencial do tipo de Era do Progresso de Comte, impera. A seguir a um acontecimento, vem outro, fruto do primeiro. É a chamada prisão gastronómica do pensamento e, consequentemente, da forma como olhamos e estamos no mundo, paradoxalmente cada vez mais caótico, imprevisível, paradoxal e angustiante. Ao invés, os indianos tem uma mesa em que os vários pratos, ou pequenos mundos gustativos, vivem e são saboreados em simultâneo, numa unidade circular, numa perfeição alimentícia que segue o capricho, o impulso, a impulsividade, o paradoxo voluntário, a refeição-caos onde se mergulha de cabeça, o deleite, em vez da angústia de não possuirmos espaço no estômago para o próximo prato, chato, aborrecido e sequencial.

Nos códigos internos de Fernando Pessoa, “ir à Índia”, segundo me explicou uma pessoana, quer dizer “satisfazer os apetites do corpo”, sem dúvida que o poeta intuía as Índias interiores que percorremos nos Descobrimentos. A satisfação glutona dos desejos imediatos arrisca-se a ser o próprio processo artístico. Colocar aquele determinado azul na pintura, só porque nos apetece quer dizer duas coisas em simultâneo: que nos apetece e que não nos apetece porque é o nosso ser superior, em contacto com algo maior do que nós que nos conduz ao apetecimento e daí que o capricho seja um caos aparente. Numa época tecnocrata isto equivale a falar do fim do mundo. O improviso é o seu filme de terror. Mas é ele que nos concerta o mundo e que nos retira do caos, num “de repente”, absolutamente contrário ao pensamento sequencial.

O problema da tecnocracia tem sido o seguinte: sempre que esta falha (e falha vertiginosamente quase em tudo), responde-se, emenda-se ou tenta resolver-se o problema com mais tecnocracia. A espiral auto-destrutiva do que, em si, já o é, expande-se exponencialmente. Um caçador-recolector pode esperar o mínimo de previsibilidade quando caça e o máximo de improviso quando atinge o alvo. Só assim caça. O mesmo se passando com o que recolhe: vai andando e recolhendo, aproveitando o mínimo de uma lógica sequencial e seguindo o faro invisível do seu ser animal, instintivo, imprevisível, mas suficientemente ordenado para ter permitido a sobrevivência da espécie. Não há como demonstrar (nesta época de cabeças de ananás) tal facto, até porque a demonstração requer uma sequência  com a qual o improviso não se coaduna e de maneira que são mundos que embora pudessem estar unidos no início numa fusão imperceptível, hoje, estão apartados e os físicos já deitam as mãos à cabeça à procura de novos instrumentos para perceberem como é que tudo isto funciona porque aqueles que têm à disposição parecem não chegar para uma realidade que é maior do que eles, até porque esta incluí a metafísica, essa chatice que estraga tudo à ciência. Numa mesa indiana, servimo-nos de vários pratos ao mesmo tempo, tal como um florista vai colhendo as fores de improviso e um caçador-recoletor, ensaia os passos da dança da natureza durante o serão, à volta da fogueira. Não tememos afirmar que tal qual o mundo anda, pouco ou nada nos interessa. Nem sequer comunicar com gente doida, ou seja, a maioria da população mundial. Afirmamos isto, não paulatinamente, mas sim abruptamente: a maior parte das pessoas está doida varrida. E o que achamos piada à expressão “doida varrida” pois parece coisa de casa de bruxa nos intervalos dos seus voos. Os doidos varridos são os que foram varridos das casas das bruxas loucas, dessas que improvisam no caldeirão as misturas mais improváveis: as poções, os supra-sumos alimentares que rivalizam com o “elixir”, ou o lado luminoso dos preparados para beber...

 

Ainda há quem pense que isto só se endireita com lições moralizantes, mais uma demonstração da resposta à tecnocracia com mais tecnocracia. Diremos que não: isto não se endireita porque está muito direito, tão direito como uma barra de ferro inflexível. Isto está completamente nos eixos. A moralização, as fórmulas, a exatidão fazem parte do nosso dia a dia... e é por isso que não muda nem de direção, nem de rumo, nem de propósitos. Quando se responde assim, moralizando, formalizando, formulando é porque o medo é mais do que muito e, aceitar o erro seria a queda do edifício e ninguém quer isso, pois não? Não. É por isso que observamos, apenas e assim continuaremos, por mais que surjam as respostas-remédio exatas, que nada mais são do que justificações esfarrapadas para continuar a amargura dos dias.

 

sexta-feira, 20 de maio de 2022

As três taças

 


Dizia hoje uma professora: "O que quer que façamos, ninguém liga. É frustrante." Estive mesmo para lhe contar a história da minha vida, bem resumida na frase dela. Isto por um lado e, por outro, estive mesmo para lhe dizer que o aval dos outros não interessa nem ao menino Jesus. Não optei por nenhuma das hipóteses de comunicação. Fiquei calada envolvida no silêncio trágico a que somos votados nesta época que tem o poder de aniquilar aquilo que importa. Comprei três taças bonitas e olhei-as demoradamente. Valem mais do que frases idiotas como mais esta na antestreia da publicação da biografia de Fernando Pessoa: "O homem que decidiu ser um génio". Está visto que não foram lidas as palavras de Fernando Pessoa: "a alguns a grandeza é-lhes imposta". Estes disparates introdutórios, ditos a propósito da publicação em Português da biografia do poeta, levam-me a olhar com relutância para a mesma que já se encontra cá em casa. Hei-de pegar nela com coragem, não pelo tamanho, mas pelo risco que corre um americano a ponderar sobre Fernando Pessoa, por outro lado, terei de dizer a mim própria que sendo americano, tem desculpa porque ser português é outra coisa... Sê-lo efetivamente,  é conseguirmo-nos mover pelo elemento pesado e denso composto pela substância e pela essência. Não sei se Zenith já percebeu isso, mas penso que não. E hoje, ser português é conseguirmos elevar e levar o mundo nos braços, atravessando-o em simultâneo de ponta a ponta num ténue fio de seda, passo a passo, sem o deixar cair nem nos deixarmos cair a nós mesmos. E esse é um acto profundamente solitário com os olhos postos no céu. E por isso, se queixa a professora do que quer que faça, ninguém liga. Pois não. Essa é a condição de todos nós, sem excepção. Não fosse a Luz, e seria realmente assim...

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Os bobos

 


Notas: nesta época caótica nada há a fazer a não ser assistir ao caos. Vejo aqui um pendor contemplativo, ainda que "ser diferente" seja uma forma de acção, submersa tal como o território Português, na sua extensão, se encontra maioritariamente submerso e há uma certa tranquilidade nessa contemplação ativa que resolve conflitos em vez de os estimular.

Outra Nota: o infantilismo leva a que se olhe o mundo, não com olhos de criança, porque estas estão apenas agraciadas pela constatação, mas com olhos deturpados e postiços provindos da mira de um qualquer boneco da Disneylândia, o equivalente a palas nos olhos. É graças a esse olhar, tresmalhado, que assistimos a virtuosos intelectuais, autores de biografias de Pessoa, a apelidá-lo de alguém que nunca cresceu. Ao contrário de alguns "cérebros iluminados" (devia ter colocado mais aspas, duas só não chegam) que logo apareceram com as sentenças de um novo Papa do Oriente que lhes escapa e desadaptadas à situação e pactuando assim com os intelectuais do Regime (que pelas costas tanto condenam), convém reafirmar que quem profere tais palavras sobre Pessoa, se encontra na esfera do fantástico e não da Realidade. Não há riso nisso, há a tragédia profunda da decadência. Se não vivêssemos na Era da Decadência, não seria necessário "ser diferente". E é necessário sê-lo. Aos tolos o que é dos tolos, e assim é, e aos diferentes aquilo que é para eles, e assim é. Na época da inversão das coisas são os infantis a infantilizarem os adultos e só os tolos, que nunca são adultos, confundem as crianças com o infantilismo desta época. É obra: tamanha confusão. A tragédia desta época é rir-se de si própria. 

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Mãe


 A minha mãe faria hoje 89 anos. Faleceu há cinco. Taurina no signo solar e leoa de ascendente, das personalidades mais fortes que encontrei. Desde muito cedo a observava, ao ponto de, com 8 ou 9 anos, lhe ter dito que ela não era minha mãe, mas sim minha amiga. Sempre a vi como algo de exterior a mim. Talvez porque desde sempre soubesse quem era uma quem era a outra. Ela não me ensinou aquilo que as mães ensinam: nem a fazer bolos, nem a ter a casa impecável, nem a dizer mal da vizinhança, nem as histórias de encantar, nem a fazer crochet, nem a viver num mundo feminino e isto porque, a mãe não era assim. Era de outra espécie: a da liberdade. Só mais tarde me interessei por trabalhos ditos femininos, menos o crochet, algo que a mãe sabia fazer, mas nunca ensinou por não lhe dar grande importância. Dava importância a outras coisas. Aos empregados de mesa, se era ou não bem servida, às viagens, aos livros, às línguas estrangeiras, à cultura sob todas as suas formas, aos namorados e paixões, à sua própria ira, ao mar e ao sol e ao vento que a despertava do sono do Antigo Regime que sempre detestou. De 1933 a 1974, viveu em ditadura. E fugia para Paris e para Londres sempre que podia. E vinha com as malas carregadas de livros escondidos por debaixo do forro que era descosido e cosido metodicamente para poder passar na alfândega. Nunca foi comunista, mas detestava que lhe dissessem o que podia ou não ler, que filmes podia ou não ver. A cultura, como o sono, eram consideradas sagradas lá em casa. A música, não se chamasse a mãe, Cecília, era estrondosamente ouvida em manhãs de Sábado e de Domingo, sobretudo e rebentava em Tchaikovsky, Stravinsky, Mozart, Debussy (que amava loucamente), a Carmina Burana de Carl Off, todas as óperas das quais colecionava os libretos que trazia do S. Carlos, o Bolero de Ravel, os Barrocos cintilantes e a nítida sensação de que estávamos cá para usufruir da música. Que elas nos entrasse por todas as portas e janelas e ficasse a residir na nossa casa. O mais estranho na nossa casa era o tempo. Não havia horas para nada. Para chegar, para partir, para comer, para estudar, para dormir, para acordar. O tempo tendia a não existir ou a ser menosprezado. Nunca usei relógio à excepção de um minúsculo que usava num mini-cofre fechado à chave que trazia no bolso. Até o perder. A aventura não durou mais do que alguns meses.

O problema com certas vidas é que se começamos a falar delas, não paramos. Não direi que a minha mãe fosse poeta, mas escrevia poesia. Uma espécie de poesia onde entrava sempre o tempo e o espaço. Duas obsessões abstractas herdadas dos anos sessenta. Lembro-me de uma que começava “paralelas as traves...” ou de outra que acabava com “fuzilaram o Sol”. Conversava-se de tudo lá em casa. Éramos três gatos pingados, eu a minha mãe e o meu irmão exaustivamente analíticos. Desde a política, à religião, aos filmes que víamos e ao dia-a-dia, todos entrávamos em casa com notas de rodapé que soltávamos no quarto da minha mãe onde estava deitada, às vezes por horas, dias... não porque estivesse doente, nunca estava, mas porque, como costumava dizer “o melhor clima do mundo é o da cama”. E era lá que ficava, e ler, a ver televisão, a ouvir música e a estudar. Não era a cozinha nem a sala o centro lá de casa. Era a cama da minha mãe. Era lá que instalávamos uma toalha redonda e fazíamos picnics com batatas fritas, ovos cozidos, tomates assados, fiambre, queijo, azeitonas, pickles e por aí fora.  Era lá que recebia os nossos amigos, meus e do meu irmão. Lembro-me de se querer preparar para uma grande viagem a Itália e de se ter inscrito no Instituto Italiano para aprender a língua (antes disso tinha sido a Alliance Française, uma temporada na adolescência a viver em Londres para aprender o Inglês, o Instituto Alemão) e de espalhar todos os livros na cama, e todos os apontamentos e ainda o gravador para onde repetia as frases em italiano, ouvidas até à exaustão. Fez o mesmo comigo para que aprendesse a tabuada: “2x1, 2” e por aí fora. Fiquei com a gravação durante muitos anos e ria-me porque quando cheguei ao “7x10”, soltei um ligeiro grito seguido de um suspiro. “Setenta”, é ainda hoje o sinal que os mais íntimos reconhecem quando já estou farta.

Embora fosse farmacêutica detestava a farmácia. Mas tinha jeito para ajudar. Havia toda a espécie de comprimidos lá em casa, excepto aspirinas que íamos a correr com dores de cabeça comprar à farmácia do bairro e, sempre que isso acontecia, repetíamos “Em casa de ferreiro, espeto de pau”.

Detestava tachos e louça, o que tornava as refeições completamente arbitrárias. Desde muito cedo, lembro-me das “fases”. A fase da Cândida, uma empregada que chegou a viver lá em casa e que nos acordava com torradas e chá. Não podia beber leite porque vomitava, de maneira que a mãe decidiu que iria ser chá. Nunca pensei aguentar tanta teína. A fase dos tapperwares vindos dos restaurantes, a fase da D. Lurdes que nos dava comida em casa dela e limpava a nossa casa durante o dia, a fase da Rosalina, verdadeiramente trágica porque não sabia cozinhar, (excepto umas lulas estufadas, adoradas pelo meu irmão e detestadas por mim e cujo cheiro impestava tudo e me fazia hesitar na vontade de entrar em casa) e nos obrigava a resolver o problema fora de casa em cafés, restaurantes, supermercados, tudo o que encontrássemos, menos os panados encharcados em óleo dessa fase negra da alimentação.

 Sendo o meu cabelo algo selvagem, a mãe tentava pentear-mo, quando estava para aí virada, e desistia. Ia buscar a laca para acalmar a fúria capilar e o perfume enchia a carrinha do colégio. Só eu sabia donde vinha aquele cheiro da L’oreal, a lata dourada...

Saía à noite. Ia para os bares. Para as suas paixões. Para os seus amigos homossexuais, para os espectáculos de travestis, para os namorados, as danças, a música do S. Carlos, do S. Luís, para o Teatro, para as cervejarias fora d´horas. E muitas das vezes íamos com ela. Ainda hoje tenho horror às tardes. As manhãs e as noites longas são horas decentes, as tardes são um meio termo entre a vida e a morte.

Por causa dela, a minha alma está cheia de vultos de deuses gregos e não sei rezar. Só orar que é outra forma de poesia. A mãe amava os deuses gregos a tal ponto que os sentia presentes quando falava deles.

 

 

(continua, se me apetecer)

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Zenith e Nadir

 

Pois não, Fernando Pessoa nunca cresceu porque já nasceu Enorme, ao contrário dos caça-fantasmas que continuam a circundá-lo e a dizer disparates sobre ele. Não ocorre, a quem diz estes disparates, a seriedade da sua obra, encarada como mero jogo/brincadeira infantil? É uma estranha criança que deixa uma obra tão vasta que ainda está a ser descoberta, que deixa imensas questões na mente de quem o lê. A Universalidade de Pessoa, segundo este pensamento reducionista que minimiza, em jeito paternalista, aquele que é maior que ele, remeter-se-á para o conjunto de pessoas infantis que se revê na sua obra. Lê-lo, compreendê-lo, seria então entrar num plano meramente lúdico e o Universo, que é antigo nas suas ramificações e planos vários (no duplo sentido da palavra),  passaria a ter cinco ou seis anos com as ligações cerebrais ainda em estado de cartilagem gelatinosa. É sempre fácil cair na tentação de achincalhar quem se admira ainda que sob a capa da "compreensão". A quem chamará de "crescido" Zenith? Muito provavelmente a alguém que se situa na esfera da ciência com pretensões à ciência exacta. A esfera da imaginação, do onírico é tão infantil como a vida concreta e abrutalhada dos nossos dias. O infantilismo da época não é a melhor atitude para se julgar o carácter e a grandeza do poeta. Haveria Zenith de passar apenas por uma experiência metafísica experienciada pelo próprio poeta para que ficasse com os cabelos em pé, agachado como uma criança debaixo da mesa da sala, a coberto da toalha adamascada...  Incrível é a inversão das coisas: as editoras obrigam os escritores a ajoelhar-se e os pequeninos afirmam a pés juntos que os Grandes são ainda mais pequenos do que eles próprios. É caso para dizer que tanto fascínio pelo poeta o conduziu à loucura, porque só um louco vê na imaginação o "amigo imaginário" e a crença em entidades superiores como sendo a crença no Pai Natal que traz presentes. Não impera a inteligência, logo a começar pela ideia de que a biografia de Fernando Pessoa explica a sua poesia ou em que a sua poesia explica a sua biografia conforme vá dando jeito ao narrador. O lamaçal assim descrito impõe a firme convicção de que as palavras do poeta são hoje o que menos importa, quando é precisamente isso que o torna Grande e não infantil. Mas numa pequena época como esta, as identificações não vão além do Ronaldo, esse sim, grande, com os pés bem assentes na bola. Desse ou de um cientista que avance com a cura para uma doença qualquer sendo que esta última irá ser imediatamente substituída por outra porque o mal é a falta de Espírito das vacas a olhar para o palácio. O que vale é que não há biografia que valha a sua obra. Venha mais uma. A obra do poeta permanece, pairando acima da incompreensão. Total, pelos vistos. 




terça-feira, 10 de maio de 2022

As línguas da língua.

 



Que sabes tu, das línguas da língua que não nos soltam? Fosse a voz um pranto de amor ou uma espécie de angústia vívida e seria por certo esse o caminho onde nos encontraríamos. Mas assim, não. Assim, são só labaredas voláteis onde não te vejo por entre elas, apenas a escuridão do teu vulto. Nesta época em que tombam as estátuas de sal, onde ficam as palavras? És a ignorância vertical da minha intimidade a sós com elas. Concedo-te a dúvida e nada mais, essa que escalas por frágeis degraus de certezas inacabadas. 


domingo, 8 de maio de 2022

O texto pedido


 Lá vai mais um texto a pedido de várias famílias, não muitas, mas várias. Assim sendo, começo por dizer que é um acto desesperadamente facilitista escrever para se ser entendido, isso provém de uma possível carência de quem escreve (afetiva, de reconhecimento ou outra qualquer) e, nos meios mais elevados, provém da ideia de tripeça, ou seja, três sentidos de interpretação ou ainda da moeda de duas faces, uma interpretação mais acessível, outra mais elitista (as parábolas de Jesus, por exemplo) e/ou ainda a ideia de que os "mestres" dizem verdades sublimes, vindas do alto e que terão o seu nível de interpretação consoante o nível de entendimento (Camões associou o entendimento ao Amor, e estava certo - não é "quanto a mim", estava certo ponto final parágrafo - as discussões são para os inúteis). Mas, a verdade (esta palavra terrível - não existe no Oriente, mas existe no meu coração) é que raramente há verdadeiras tripeça, parábolas, mestres que escrevem (normalmente não escrevem uma linha, não precisam...). Essa coisa de se ter de escrever para se ser entendido é o jogo viciado da fama, do proveito e do arroto final que é extremamente desagradável e pode ser evitado, se tudo o que vem antes dele também o for. Até os nossos maiores são incompreensíveis, e raramente confessamos que são incompreensíveis porque parece mal. Entenderemos tudo em Fernando Pessoa? A sério? Ou em Camões? A sério? A língua portuguesa (as outras não sei e duvido que o sejam - terrivelmente etnocêntrico este pensamento, mas sabe tão bem)  é viva e dança connosco. Aquilo que é mais fácil neste mundo é ser compreendido, entendido, lido com admiração (em terra de cegos... Cada vez mais cegos, não sabia que para além da cegueira ainda havia mais cegueira, mas pelos vistos há - nada como Kali-Yuga para essa aprendizagem...), aquilo que é mais difícil e fácil em simultâneo é ser-se raptado pela própria língua portuguesa porque a sua soberania é imensa e vai para além do próprio entendimento do desgraçado que a escreve (quem escreve a sério normalmente é um desgraçado neste país, agraciado pela língua). Escreve-se porque sim. Sem mais, nem menos. O público está noutra dimensão, mesmo quando várias famílias nos pedem as letras, as palavras e os textos. E o mais estranho disto tudo é que nem sempre as famílias são as do costume. São outras: aquelas que vivem nas palavras, são delas e por elas e de maneira que, à semelhança do escaravelho que tem aquela forma única de se gerar a si próprio, muito semelhante com algo que se traduz como "Eu sou", "Eu gero-me" (algo associado à luz, ao nascer do sol e de toda a presença neste cosmos), o mesmo se passa com a língua. E mesmo que haja o pedido dessas famílias incomuns que vivem nesse espectro sideral, nada nos garante que elas mesmas entendam o que é escrito: pedir não é o mesmo que entender e nem sequer se pode associar à fórmula "Pede e ser-te-a concedido", porque o entendimento já está para além do desejo e quando vem, é como um raio de luz. Quantos textos pobres são entendidos, quantos textos ricos são incompreensíveis? Quanto aos primeiros, podemos responder que são muitos, quanto aos segundos, nunca saberemos, ou se  soubermos já estão em nós. Escrever para ser entendido é para quem tem essa missão no mundo, escrever para se ser desentendido é puro acidente e, normalmente, é para quem não tem qualquer missão no mundo, porque o que escreve não é "normal". É um acidente daqueles inexplicáveis. Não foi em vão que Fernando Pessoa escreveu "Aconteceu-me um poema". Estas famílias das letras, das palavras e das frases são poucas e loucas. Uma verdadeira elite, sem a outra face da moeda, o Zé Povinho. Bastam-se a si próprias como o escaravelho. São puro sol. As sombras que se danem... 

domingo, 1 de maio de 2022

Lapa

 


O mundo, tal como está, está um caos. Passo por ele num enorme silêncio e com um longo, longuíssimo manto real. À vista destes líderes, não há rei que vá nú. E os piores líderes ainda estão para vir, preparados por uma humanidade vazia, cada vez mais destituída de si. Esta época é achatada como uma lapa, sem qualquer tipo de profundidade. É uma lapa em todos os sentidos, até no facto de ser lapa e de não nos vermos livres dela e dela, só o silêncio da caverna nos acolhe com a dignidade que merecemos.