quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Selfie - 25/9/2019



A Língua dos Pássaros
 
o encanto das quimeras
é o que nos dá o espaço
do ser agora e mais além
sem que nada fique sem
se encontrar na quimera
que de nós está para além
 

O caranguejo


Geneticamente sou portuguesa, pai, mãe, avós , bisavós, trisavôs e por aí fora. Também o sou por opção. Há muitos portugueses que vivem em Portugal e que nunca chegam a ser portugueses. Gostariam de ser de outra terra qualquer. Há alguns assim... Dentro disso, faço parte de uma elite que quis pensar Portugal. Essa elite leu e lê imensa coisa sobre este país. Dentro dessa elite há ainda os que se arrepiam com coisas pequenas mas que indicam a sua profunda ligação espiritual a este país. É um arrepio total. Os pelos levantam-se todos, às vezes com uma ideia, outras com uma memória do país, com uma música, com um objecto, com uma pessoa, qualquer que seja a sua classe social ou intelectual. Qualquer coisa que nos indique o Portugal Real. Por causa dessa ligação espiritual talvez o sentido crítico para com o país seja mais apurado. No outro dia estava a ver um daqueles programas de entrevistas a uma só pessoa onde acaba sempre por haver lágrimas (vendem bem publicidade). No programa em causa estava a ser entrevistado Fernando Pereira, o imitador. A determinada altura, com uma expressão bastante triste, conta uma história. A história de dois estrangeiros que estão a apanhar caranguejos na praia. Um deles vai pondo os caranguejos num só saco. Ou outro diz-lhe para os dividir por mais sacos porque assim é mais fácil mantê-los, não vá um saco perder-se por fugirem todos. O amigo responde-lhe:
-- Não te preocupes, estes caranguejos são portugueses. Quando um tenta subir, os outros puxam-no logo para baixo.
Parece uma realidade crua, dita talvez por dois ingleses. Conheço bem esse ar inglês, capaz de uma auto-crítica absolutamente firme. Afinal, foi o primeiro ar que respirei, o inglês. Talvez o tenha trazido um pouco comigo e talvez, por isso, saiba reconhecer uma crítica justa quando a ouço, coisa que é muito rara em Portugal. Fernando Pereira estava referir-se ao esforço que tinham feito para o deitar por terra e, em resposta, foi implacável na crítica. Pessoalmente, e com todos os meus genes portugueses (que como se sabe são uma combinação de tudo) penso que fez muito bem em dizer o que disse. Até porque é verdade.
O mesmo tenho sofrido eu. Há uma incompatibilidade com as pessoas diferentes neste país. Uma grande incompatibilidade. Tão grande que, frequentemente, ouço a resposta, a resposta mais estúpida que alguma vez ouvi, a de que "somos todos iguais". Como se existisse um desejo de igualdade constituído pelo resultado de se nivelar tudo por baixo. Pelo mais baixo possível. Apenas por causa da insegurança.
Desde que ouvi essa história, mentalmente, comecei a transformação de algumas personagens em caranguejos. Vejo-as com as suas pinças feitas de insegurança. Inspiro um pouco daquele ar inglês (Fernando Pessoa também teve que o inspirar de vez em quando e ele, sim, é um exemplo), uma espécie de calmante que só faz bem e acabo por voltar para a minha concha onde, de facto, reina alguma justiça. Lá fora, há um espectáculo permanente de insegurança a desaguar na injustiça.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Ela e eles



Na realidade, morro de tédio. Sem contar com a paisagem, os animais, umas quatro pessoas, e o gosto de estudar e de criar, tudo o resto é tedio. Ainda assim, as coisas enumeradas acima muitas pessoas não as têm e, ainda assim, também, são capazes de não sentir tédio. A última que consegui fazer foi estar a discutir com uma vizinha que conseguiu dizer mais palavrões por minuto do que uma arma automática e no meio daquilo estava a olhar para ela enquanto ela soltava os demónios que utilizaram a minha pessoa como bode expiatório, e sentir que estava a morrer de tédio, que nada daquilo era uma surpresa embora na aparência o fosse. Sabia que dentro dela estava aquele chorrilho interminável de raiva, inveja, amargura e dor e que bastava dizer-lhe uma frase simples, sem ofensas nem acusações para ela desatar naquilo. Olhei para ela, que berrava, ameaça e insultava e tive a imagem da monotonia, como se já viesse vivido aquilo milhares de vezes e fosse verdadeiramente inútil aquilo que ela estava para ali a dizer. Um tédio sem fim, como se ela concentrasse a imagem que tenho do mundo: um mundo amargo, raivoso, invejoso e cheio de dor. O mundo dos seres humanos actuais. A grande maioria deles vertidos em gordura, tatuagens e em injustiça. A franqueza pura de se odiar o belo, o bem, a sabedoria. A imensa História que estava por detrás daquilo. Como concentrou toda a civilização abrutalhada nela agora reporto-lhe todas as injustiças, arrumo-as no vasto corpo dela, que não pára de parir, pior do que os animais porque nem cria os filhos que vai tendo, é inerte porque nunca se mexe para nada, está sempre parado e preparado para mais uma tatuagem que lhe diga que é única e especial. Mas não é. Ela é o tédio desta humanidade imensa atordoada por estes tempos do fim. Ela é o fim a desfraldar as últimas sombras, enquanto eu sou o princípio do desdobrar da luz. E não temos nada em comum. Somos apenas dois tempos obrigados cruzarem-se na rua pela lei da cadeia temporal que diz que quando uma coisa está a morrer, outra está a nascer. Ela é o tédio que observo e que nada tem a ver comigo excepto ser obrigada a senti-lo. Eu sou a fonte de um mundo diferente e novo que pressinto.

domingo, 22 de setembro de 2019

A promessa



Não se encontram
As elevadas canduras
Neste chão de pedra
E de terra poeirenta
Apenas no sol descendo
Livre de o fazer
Banhando as águas
Iluminando as suas profundezas

Se o teu sorriso fosse verdade
Ia com ele até ao fim do mundo
As hipóteses vivas de não o ser
Não chegam para o sustentar

Se escolhesse fazer poemas
Tocava baladas a estas casas
E a este mar d'oiro de sempre
Onde fomos sem o saber

Se escolhesse dizer-te alguma coisa
Nunca te traria pela mão
Levar-te-ia acima de mim
Como se fosses um pássaro a amanhecer

E das derrotas e das causas
E das lutas e das vitórias
Ficavam apenas as memórias
De quando rias, sem o saber

Não foste comigo até lá?
Não trouxeste a rosa que era tua
E prometida.
Agora sei que vives nesse azul baço
Sem o brilho da manhã

Foram tantas as vírgulas
No teu texto
Tantas onde o mundo se deteve,
À espera da próxima palavra
Que seria todo o verso no princípio desejado

Até os espelhos enegreceram
E tornaram os vultos apenas sombras
Ténues e infelizes de um Inferno
Que julgam representar

Fiquei a salvo nessa ondulação
Onde a relva parece um seio
Estendendo os braços
Para a lua e para o sol
E dando os passos que desejava

(Cynthia Guimarães Taveira)

A angústia de Nietzsche




Dizer a alguém para não reagir a estímulos é já tentar fazer com que alguém reaja ao estímulo do que foi dito. A isto chama-se barbárie. Os bárbaros eram os que vinham de fora. A sua acção era imediata e brutal. Li numa secção de uma editora uma citação de Nietzsche sobre isto. Achei curioso ser Neitzsche, o das terras bárbaras que quis ressuscitar os deuses e matar Deus, a dizer isto. Achei ainda mais curioso vir donde veio. O problema da moralização, quer seja positiva ou negativa, quer use a psicologia ou a psicologia invertida (como está na moda agora dizer-se) é exactamente o mesmo problema que conserva a magia: o seu campo é extraordinariamente limitado. A deificação (como ambição maior dos ressuscitadores de deuses) implica a sua projecção imediata para fora da existência, ou seja, na ilusão de que nessa projecção alcançam o ser, esquecem-se da necessidade de um centro. Se conservarem esse centro, então, os ressuscitadores de deuses, são também os seus assassinos porque no seu campo limitado, não pode existir mais do que um deles (um dos deuses). A mesmíssima coisa se passa com estes seres "moralizantes" que o são a toda a hora, no seu universo fechado: ao instruírem os outros destroem a instrução que almejam. É portanto, evidente, que se lhes dissermos que são lentos (e lentos a perceber as coisas), naturalmente terão a espectável reacção imediata de se sentirem ofendidos e, assim, cai por terra, com um ligeiro sopro, a sua tentativa de impassibilidade que impõem aos outros. São pequenos ditadores que, não tendo alcançado a deificação, (aquilo que se supõe ser o estado mais alto desse caminho), tomam facilmente o lugar de Deus que dizem ter matado. Muitas vezes, para fora, na imagem que querem projectar, dizem ter resolvido este conflito que requer a ressuscitação dos deuses, o seu assassinato, a deificação, a manutenção de Deus e o seu assassinato também. É assim que os ouvimos dizer que, relativamente ao paganismo e ao monoteísmo, "as coisas não são incompatíveis", mas tal frase, bonita e sonante, é arruinada pela sua tentativa quotidiana de moralização. Se, por um lado, defendem a transgressão como legitimação do processo de deificação, por outro, parecem querer assumir o lugar central de um panteão (a serem algum deus teriam de ser Zeus...) o que coloca em causa esse mesmo panteão. É por isso que estes neo-paganismos já nascem com a marca evidente da Igreja Católica da qual nunca se despegaram (a moralização é aliás um tique facilmente constatável) a partir da qual nasceram (e não o inverso) como se tivessem pedido boleia a meio do caminho e não conhecessem, de facto, as origens do que dizem querer ser ou do que dizem, mesmo, ser. Este texto pode ser considerado uma reacção ao estímulo das palavras de Nietzsche, no entanto, a sua maturação é anterior ao acto de as ler. Também assim cai por terra a ideia de que as reações a estímulos são "impensadas" ou são produto da falta de capacidade de "impassibilidade". A impassibilidade é o mesmo que a não-existência, aliás, e é por isso que esta ideia, imposta quotidianamente por tais personagens é composta com o objectivo da morte como inércia e não da morte como motor imóvel. Nem eles próprios são capazes dessa impassibilidade que "propõem" tal como o padre diz "olha para o que eu digo mas não olhes para o que eu faço". A origem é então a mesma: a da Igreja Católica no seu pior. Aliás, a maioria dos neo-paganismos, senão todos, tem origem numa reacção à Igreja Católica e aos fantasmas que produziu o que, convenhamos, é muito pouco. As transgressões são sempre moralizantes e extremamente limitadas no seu domínio de causa e efeito e daí que digam "não serem incompatíveis". É o pensamento dual no seu esplendor. O mesmo fazem as vias "eróticas" com as suas evocações do "eterno feminino", como se fosse domesticável (é mesmo um pensamento instituicional), numa tentativa de domesticação do Espírito de Deus ou do Espírito Santo. O resultado é temporário, fragmentário e inócuo como é a cultura geral dos concursos da televisão. Não há nada mais monótono e monocórdico do que um "fogo" domesticado com vista à realização da obra que, dessa maneira, nunca saírá grande coisa. Toda a grande obra requer momentos ou o momento da via breve (conforme os casos) e as mutações são surpreendentes. O que se passa com este tipo de pensamento neo-pagão é a substituição das Revelações pelas Visualizações. São um espelho da época. Vazio e causador de angústias.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Santa Maria da Feira


Qualquer pessoa com dois dedos de testa consegue ver que a quantidade de acidentes, desgraças e desgraças inusitadas que acontecem em Santa Maria da Feira são o suficiente para transcender toda a esfera do racional.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

A visão do mundo aos tropeções


(Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)



Tornou-se tudo extremamente íntimo e de difícil comunicação. Fui tirar o curso de Antropologia. Gostava, sobretudo, de conhecer outras formas de pensar, de ver o mundo. No fundo, essa é a verdadeira viagem. O Primeiro Ministro do Canadá foi agora pedir desculpas aos seu eleitorado e àquele que quer cativar por, quando era ainda adolescente, ter pintado a cara de preto para se mascarar de Aladino. Ao que parece foi julgado por meia dúzia de pessoas primárias (e não primitivas, totalmente diferente) por ter sido esse um acto racista. O Primeiro Ministro pediu desculpa e, na verdade, nem deve fazer a miníma ideia porquê. Quem se mascarar de bruxa será Inquisidor? Quem se mascarar de Judeu, será Nazi? A incapacidade de viajar é o resultado do multiculturalismo e do globalismo e o que gera são comportamentos idiotas como o deste Primeiro Ministro que veio pedir desculpa sem ter culpa de nada à excepção de dar ouvidos a meia dúzia de energúmenos que confundem a Máscara com a pessoa, e não sabem a diferença entre Persona, Pessoa, e Personalidade. No fundo, o que atormenta os críticos da máscara do Primeiro Ministro é a cor. A cor negra de Aladino que duvido que tivesse sido imaginado louro de olhos azuis ou se o foi isso se deverá a um outro fantasma ainda pior: o da invasão ariana (é pior porque faz lembrar os delírios nazis).  A cor, sendo motivo de tormento, é a mais pura forma de racismo que se pode ter. Andou Fernando Pessoa a dizer que o Quinto Império seria um Império Cultural. A Cultura é uma certa forma de estar. Não me chateia nada imaginar uma reunião familiar de pretos retintos (são pretos como nós somos brancos e também há os mulatos que dizem ser “café com leite”), todos a comerem Moamba ao almoço e um cozido à portuguesa no almoço seguinte. E que eu possa fazer o mesmo nos dias seguintes, eu de “elevada” brancura. Desde que todos estejam bem. Na nossa cultura está-se bem. Era isso que Fernando Pessoa queria dizer: está-se bem com a língua, com a poesia, com a forma de se estar. E se o Quinto Império significa, entre outras coisas, estar-se bem, isso até pode implicar que eu me mascare de preta e que alguém se mascare da branca que sou. E ninguém fica ofendido porque não nos interessa a cor. Interessa-nos estar bem.
Também parece haver uma espécie de “novos tradicionalistas” que tentam legitimar tudo o que fazem quando lêem alguns dados tradicionais a correr e aos tropeções. Confundem política com maior ou menor aproximação às tribos primitivas. Como antropóloga posso dizer que aquilo que é mais interessante são essas várias formas de pensar e de ver o mundo. Isso é o mais interessante e é também aquilo que é mais superficial. O que é mais importante, é conseguir encontrar tanto nas tribos primitivas como na nossa suposta civilização de há uns milénios para cá, aquilo que são dados que pertencem à Tradição Primordial. Esses “Novos Tradicionalistas” cujo ímpeto é, sobretudo, político, recorrem a este ou àquele costume para demonstrar que o ser humano se deve anular perante um poder superior. Normalmente são extremistas, quer de esquerda, quer de direita. «Sim, porque nas tribos não há “eu”, não há “personalidade”, todos se “anulam”» e ficam assim legitimadas tanto as ditaduras de extrema direita como as ditaduras do proletariado, noções evidentemente modernas como é moderna, igualmente, a visão católica dos seus próprios dogmas.
Ora conseguir descobrir os dados da Tradição Primordial é aquilo que se apresenta como o mais difícil e o menos político possível.  A situação de tal busca é estar perante o Paraíso. E ninguém se atreve a dizer o que é o Paraíso. Atrevem-se apenas a ter visões políticas que confundem com o Paraíso. E não podiam estar mais distantes dele.


sábado, 14 de setembro de 2019

As palavras coerentes





A menos que sejam textos legais (e mesmo assim), não há texto que seja verdadeiramente sério, nem que seja apenas pelo facto de ser interpretado. Todo o rio da literatura e seus afluentes são paródias, mentiras e denúncias das censuras de poderem nunca terem sido escritos. Mas até a realidade pode estar nessa classificação se entrarmos pelos corredores de Maya. Há muito que não ligo ao que vou escrevendo. Nada é para ser levado muito a sério. A escrita não passa de uma vertigem momentânea, duma bebedeira requintada, de um teatro de sombras a desvanecer-se. Os livros não nos mudam, nós é que mudamos os livros e pintamo-los com a cor mais bonita. René Guénon chama a esses tipos de coisas "suportes". São iluminados pela nossa própria chama. A chama que trazemos no sangue e na memória. Porque aquilo que existe é sangue e memória, a parte mais profunda e íntima da matéria que nos constituí e com a qual imprimimos a realidade que nos parece ser a realidade. As empatias são aproximações de memórias e das chamas. O Amor só o tenho por Portugal quando está cheio de Deus. Quando não está, apaga-se e dilui-se no Atlântico. Foi para isso que nos deram o Atlântico. Para ver o sol a ser engolido pelo mar à moda egípcia. Para termos um culto solar só nosso. Agora quando se põem a levar as palavras muito a sério parecem donas de casa desesperadas à procura da arrumação perfeita. É a parte pior das mulheres quando estão doidas. Na verdade tenho visto vultos a levarem as mãos à cabeça com as palavras. Não lhes vejo os rostos mas ouço-lhes os gritos na câmara escura onde se vê tudo ao contrário. Quando num texto me esqueço de ser acessível a quem não lê um livro por ano, ouço guinchos de porcos antes da matança. Quando sou acessível demais ouço os vultos intelectuais a bufar como os touros numa pega. Deve ser o seu lado mais popularucho que vem ao de cima, como alguém que nasceu nas barracas e que agora não consegue ter um pêlo de um gato dentro casa mas ao contrário. Se as palavras fossem para ser levadas a sério eram cumpridas e compridas, e muito, porque a vida flui como um rio. Tinham de ser do tamanho do rio que nunca se sabe bem onde começa e onde acaba. Assim, quando as palavras começam a ser levadas muito a sério tornam-se em tanques de rega com microorganismos verdes a boiar, num verde putrefacto. Dizer que se entra na mente de um escritor porque se lê o que escreve é recusar-lhe o anjo escritor. Não admira que o anjo pareça inútil e que Deus seja grande. Como um rio. Já me cansei de afirmações definitivas e não há nada mais incoerente do que um ponto de exclamação. A coerência na escrita é o autismo de um rei que vai sempre nú. Quando as coisas se tornam muito coerentes torna-se evidente que não podemos contar com elas. A minha linhagem não permite coerência alguma. O meu avó comunista que exercia o capitalismo não o deixa. Pulsa no sangue e na chama, às vezes às direitas, outras, por causa da câmara escura, ao contrário. Se quiser coerência tenho de ir às memórias e aos olhos do céu. Vou para lá a dançar rap, e a batucar, com Mozart e Vivaldi em pano de fundo... Apanhei uma gripe que não passa. A cada espirro expulso um intelectual. E até o povo vai, a voar pelo ar, de vez em quando, quando me vem com a conversa da "dignidade" e da "honra" que caem ao primeiro palavrão pesado que solta enfurecido quando as coisas não lhe vão de feição. Contemplo-os a todos ora a direito, ora de pernas para o ar conforme me apetece. Depois descrevo o que vejo despreocupadamente. Aí de mim ter o mundo às costas. Até porque o fardo nunca se sabe se é esférico ou cúbico. Depende dos dias e da coerência em falsete.

Luísa




Luísa, nunca vi o teu rosto
Mas imagino-te a descer
A minha antiga avenida
A do Mouzinho de Albuquerque
E eu, na esplanada
A pensar que sou um homem
A devorar o esoterismo ocidental
Nas páginas sublinhadas a incredibilidade
Mas não te tendo visto,
Posso imaginar
Que sejas tu um homem...
Sentado nessa esplanada
E que seja eu, a verdadeira
A que desce a rua
Com um vestido florido
E de Verão
E que levantes os olhos para mim
E que me vejas a sorrir
E faças agitar a cauda do meu cão
E saibas só de me olhar
Toda a verdade do mundo
E que feches o livro
E que venhas ao meu encontro
Como os pássaros quando tocam os bicos
Sem aproximações filosóficas
Ou hipóteses da imaginação

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Mármore quente


(Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)

Ontem estive a ver um documentário sobre a escritora, suposta escritora, Elena Ferrante. Nunca li nada dela mas os seus leitores são apaixonados pela sua obra, dizem que é muito profunda e original. Aquilo que me chamou mais a atenção, para além da descrição da sua literatura, foi o facto de ninguém saber quem ela é. Se é homem, se é mulher. Quem é? "Ela" resolveu fazer uma separação radical relativamente à imagem de si própria e o que escreve. Dizia um escritor que assim permanecia afastada do mundo literário bafiento italiano. Achei graça ao termo bafiento. O cheiro a bafio é quase putrefacto. O mundo literário terá de ser putrefacto? Todos os circos, mais tarde ou mais cedo, se decompõem. Hoje mais depressa do que ontem por causa do marketing, ou seja e em português, de todos os mecanismos inerentes à publicidade. Passaram a existir "espaços" de apresentação das obras. O cinema tem desculpa, mas até os teatros são uma espécie de casa. Os "espaços" de apresentação são uma espécie de terra de ninguém. Desertos à espera de pilhas de livros, ou de cocktails ou das duas coisas. Nada é verdadeiramente pessoal porque os "espaços" são sempre de alguém e não de quem apresenta o que tem de apresentar. Há algo que estranho nisto tudo. O que me aprazia era mesmo dar prazer aos outros e isso no gelo dos "espaços" d'hoje, até os virtuais é quase impossível. Tenho saudades de qualquer coisa que não sei bem o que é. É como se não me identificasse com nada. O termo bafiento faz-me lembrar o tédio e a falta de entusiasmo que parece propagar-se como uma onda maligna. 
Que se pode dizer à vista deste firmamento de olhares tão vazios e cansados? Talvez seja o peso da história e talvez a história não me diga nada. Talvez aquilo que faz mais sentido é a saudade desse céu. Tão longe do bafio. Imagino sempre uma época e um espaço tão diferentes disto tudo. Tudo claro, luminoso, florestas leves, nuvens com cores pastel, terraços e colunas de mármore quente, cortinas muito longas ao vento, vestes quase transparentes, e sobretudo essa capacidade de voar, e essa capacidade de ser uma deusa ou um deus qualquer numa golfada de imortalidade, um respirar sem tensão, a pura alegria. Quando se imagina assim um mundo o presente pesa como chumbo. Às vezes penso que a minha vida é uma concessão ao absurdo total e que mal tenho espaço para imaginar. Não há forma de achar qualquer piada à densidade da matéria. Com ela vem sempre a dor. O bafio. O tédio. Sinto que vim doutro sítio como um astronauta primordial e que caí na sopa do Kali Yuga. Depois vieram dizer-me, os poetas sobretudo, porque quem não é poeta não sabe dizer coisas desse género, que havia um outro Portugal. Fiquei suspensa entre o "Pomar das Laranjeiras" dos Madredeus e a Atlântida. Na verdade, não sei para onde me virar. Depois o meu anjo ou os meus anjos ainda me vieram com uma conversa muito esquisita sobre a "linhagem", ainda pior fiquei. Isto da saudade e das saudades não dá alegria a ninguém. Alegria tenho-a quando não tenho saudades nem saudade de coisa nenhuma porque o meu coração está cheio de colunas de mármore quente e de pomares com laranjas, os pomos d'oiro. Na realidade estas realidades são para mim muito mais importantes que todas as realidades do bafio e do tédio. Desenvolvi uma espécie de tolerância cínica a esta época. No fundo, bem lá no fundo, poucas coisas me interessam nela. A natureza é o que se mantém ainda que meio manca por entre tubos de escape, edifícios horrendos e pessoas que não sabem "que alma têm", um tédio bafiento. Sinto que vim projectada de um futuro qualquer sem qualquer tipo de literatura e de qualquer "meio" literário. Podemos ser sempre caridosos e ter pena das pessoas e desejar para elas o melhor. Mas o melhor para elas, sei lá o que é. Só lhes sei falar desta suspensão entre colunas e árvores de fruto e da Luz. O melhor para as pessoas pode ser irem ao psiquiatra, sentirem-se úteis ou enriquecerem ou terem simplesmente saúde. Não faço ideia de como praticar a caridade. Quando a pratico ela acaba por ter uma utilidade momentânea, quando não se vira contra mim o que também acontece. A caridade não leva ninguém para esse mundo onde somos deuses, e o fogo arde em tocha no alto das colunas. Ninguém voa para lá. Ninguém o vê. As pessoas estão cada vez mais práticas e angustiadas por excesso de pragmatismo. O bafio não existe só no mundo literário e cultural, e esotérico e filosófico. O bafio está dentro das pessoas que andam exaustas e longe de si próprias. Chegar ao ponto de ter de separar a obra do escritor de forma tão radical mostra bem o quão longe estamos das casas uns dos outros e ainda muito mais dessas colunas e avarandados feitos de mármore quente, sobre o céu e sobre as florestas. E da doçura. O quão longe estamos dessas vestes tão leves e do não-tempo em que ainda assim as transparências esvoaçam porque a brisa é morna e não há diferença entre ela e nós, tal como para Elias não havia diferença entre ela e Deus.

Os esotéricos portugueses


Existe um código mudo no mundo esotérico português. É o da presença. Se existir um grande colóquio e se, sobretudo, esse colóquio ou congresso for organizado por uma entidade considerada meio imparcial ou à margem e se todos os nomes "sonantes" forem convidados, então são capazes até de aparecer. Mas se x ou y ou z ou w ou quem quer que seja fizerem um "evento" por iniciativa própria, raramente vão às iniciativas uns dos outros. Os livros uns dos outros são comprados pela calada (ninguém tem de saber) e quando vão aos eventos uns dos outros, o que só acontece de cada vez que Neptuno acaba de dar uma volta completa ao Sol, vão por uma razão qualquer obscura. Quando querem ir mas não querem ir em pessoa mandam os lacaios que lhes transmitem a informação do que viram, do que ouviram e do que aconteceu. Acho que bem lá no fundo se detestam uns aos outros mas dizem que não, que são muito espirituais, que estão muito à frente, que são muito Zen e resistentes aos choques de narizes. Aconteceu-me a mim, enquanto por lá andei, ser sensível a todas as críticas, ficar chocada com todos os choques, ficar diminuída com todas as diminuições, sentir-me embaraçada com todas as exaltações. Depois, chegou o abençoado silêncio de estar longe. Também fiquei a destestar o clima em geral. Eles destestam-se uns aos outros. Eu detesto o clima geral.

domingo, 8 de setembro de 2019

Romances...



Entre o Romance e o Mito vai a diferença de toda uma Nova Idade. Incapazes de vislumbrarem uma Nova Idade, os romancistas acercam-se do Mito como se dissecassem um cadáver para lhe retirar a psicologia que é a sua vitória, o seu entendimento. Depois, dessa observação meticulosa, fazem balançar as suas personagens nessa mistura desagradável entre mito e psicologia. A Nova Idade nunca será psicológica, nem produto de uma adaptação de um ou mais romances híbridos dessa noção mesclada e pastosa, pintada a espátula grosseira, onde uma acção, um verbo é legitimado tardiamente por um qualquer arquétipo. A Nova Idade é a do Arco. O arco da flecha, do instante, da instantaneidade, o arco que une os tempos, os planos, o céu e a terra num só fôlego, sem a presença incómoda da psicologia a que tudo obriga e a ninguém liberta. A Nova Idade é Poética e por isso Revelação. 

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Sal...


Pintura de Cynthia Guimarães Taveira

Se as ondas do mar
São caminhos certos
E as suas cristas arrebitadas
São saltos nesses caminhos
Então vão dar à cidade das jóias

Se as curvas do desvio
São eixos do mundo
E as meias voltas
São espirais ascendentes
Então vão dar ao Jardim do Paraíso

Se as montanhas se erguem, altivas
E os vales, humildes
Melhor será voar nesse Jardim
E encontrar nele o vale e o outeiro num só
O centro do centro desse Jardim...

Se as montanhas guardam o sol do inferno
E os vales sabem às sombras das lágrimas
Então montanha e vale
Como num Templo, sol e lua, lado a lado,
Do inferno nada recordam

E das lágrimas nem o sal...que já salvou.


domingo, 1 de setembro de 2019

A fortaleza


Aguardo como uma ave envolta em nuvens e, enquanto aguardo, assisto à fúria dos mares e ventos, a essa tempestade que surge da frescura e da luz. Deus tem bom gosto demais para aguentar por muito tempo esta ausência de alma, de comunhão com o belo e lança os elementos, a terra, o ar, o fogo e a água com violência e pergunta aos homens se há beleza nas tempestades. E eles dizem que sim, que as vagas são grandes, os trovões luminosos, o lamento, a música. Assisto do alto da nuvem ao diálogo... E fortaleço o coração e a beleza.

Pintura







Pintura de Cynthia Guimarães Taveira


Inspirando-me em Vinícius de Moraes:
 "As pinturas feias que me perdoem mas a beleza é fundamental"

O riso


Depos de ter lido mais um livro sobre a vida e obra de Leonardo Da Vinci fiquei convencida de que ele era, de facto, um "voyeur". Nos dias de hoje como seria a sua vida? Com tantas e tantas coisas para ver e para saber. No outro dia escrevi aqui que se ele vivesse hoje sucumbiria à especialização. Tantas perguntas que fez e tantas delas que já obtiveram resposta. Provavelmente virar-se-ia para dentro e exploraria o mundo dos espíritos, depois, esgotar-se-ia aí e prosseguiria até ao mistério final. Ou então, rir-se-ia com os paradoxos e morreria a rir. Uma gargalhada difusa seria ouvida pelas folhas das árvores que se agitariam, pelas brumas deslizantes, pelo correr das águas. Gioconda enfim solta a rir-se com seriedade do espectáculo do mundo. O que é o Grito de Munch ao pé desse riso? Nada. Esse Grito é um instante ínfimo, o riso dela é eterno. Não há mistério nenhum na evocação do horror e há todo o mistério na presença. A evocação grita, a presença sorri. E de verdade, na verdade, ri-se com toda a alegria que há para ter. Há mundos interditos aos adoradores do Diabo. Por mais que pequem... Mesmo que seja pecar por pecar. Esses, ao adorarem o diabo, criam o pecado. De raiz desenraizada. São fábuladores, pequenos meninos que contam a si próprios historietas de terror para adormecerem o seu espírito mais do que Católico e, por isso, prisioneiros do próprio tempo. O futuro? Ah! É todo outro. Suspenso num sorriso, aberto em riso de par em par. Leo-nardo, leão e nardo, o quão rico contínuas a ser, assim como Camões e Pessoa. O quão ricos são nessa leveza com que escrevem o mundo para lá de vocês mesmos. Além de vocês mesmos. De raiz enraizada.