terça-feira, 31 de agosto de 2021

Três mulheres

 


Reuniram-se, as três mulheres, à beira da piscina. Tinham três idades e a mais nova procurava estabelecer uma ponte entre as outras duas que se situavam em visões diferentes perante o céu.

Este é um universo gnóstico como qualquer outro. Creio que herdamos, nesta civilização ocidental, o gnosticismo como forma de participação em alguma coisa em que queremos acreditar. As três mulheres eram equivalências de três visões gnósticas diferentes e cada uma estava fechada no seu próprio universo, até mesmo a mais noiva, no seu universo fechado todo desenhado a pontes. O problema desta herança incompleta é exactamente o seu fechamento em si, para cada uma das pessoas, um isolamento que se vai tonando cada vez maior à medida que o tempo passa. Talvez para quem esteja assim, fechado sobre si próprio, esse facto não constitua um problema porque o isolamento nunca permite ver para além dessa linha que separa o interior do exterior. Cada gnóstico, herdeiro da chamada tradição gnóstica, acaba junto à sua crença, tendo-a como única companhia. Somente o hermetismo confere alguma partilha e liberdade. O gnosticismo é apenas uma excrescência, frequentemente disforme, que se despegou do organismo vivo que continua a ser o hermetismo e obriga a todos os que por lá passam a tomar a árvore pela floresta e, a dado momento, o silêncio da árvore é avassalador e tão incrível como uma árvore no deserto, solitária durante milhares de anos sem que alguma vez as suas sementes possam ter brotado mesmo ali ao lado ou porque a terra não deixou ou porque as sementes não eram verdadeiramente sementes. Quanto ao hermetismo, quando a poluição é muita, é mais salutar a reserva e a ausência de acção. Qualquer acção só serve o cansaço e o cansaço só serve o sono profundo. Foi isso que senti quando vi as três mulheres à beira da piscina, molhando os pés enquanto falavam. Ainda que cada uma estivesse fechada no seu universo ocluso onde a fé subsistia revelando-se em várias formas, numa mulher, através da oração, noutra através do riso e numa outra através das palavras, senti-me elevar para além delas ao vê-las nesse Verão que tinha sido tão fresco como as águas onde mergulhavam as memórias. À medida que me sentia pairar, crescia em mim a insatisfação, a inquietude energética com que a arte bafeja os seus, ao mesmo tempo que lhes dá a capacidade de se elevarem numa espécie de paz, um paradoxo vivo difícil de ser compreendido. Mas nós, os herméticos, capazes de nos desdobrarmos em três mulheres que se refrescam (sem que seja necessário porque todo o Verão foi fresco), fechadas na sua frescura gnóstica, sabemos o quão difícil é admitir que a poluição é muita e que não é o Verão em si que é tóxico, nem as três mulheres que só estão paradas dentro de si mesmas, mas todo o corpo terrestre que se contorce e fumega, expelindo os enxofres que partem da humanidade e se enterram no subsolo para, em seguida, surgirem vivos das suas entranhas, rodeando os seres e levando os herméticos à mais aborrecida da probabilidade dos seus destinos: a não fazerem absolutamente nada a não ser elevarem-se numa insatisfação perpétua e pacífica.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Há uns anos já dizia...

 https://cynthiataveira.blogspot.com/2018/12/ha-canetas-e-canetas.html?m=0

O talibã disfarçado de santinho



Este texto que abaixo publico na íntegra de José António Saraiva tem os seus fundamentos em apenas duas coisas: a superioridade sexual do homem, reduzida, evidentemente, à sua força muscular e o esquecimento conveniente do primeiro crime descrito na bíblia (ainda hoje é tido como crime) que foi o da morte de Abel às mãos de Caim. O sedentário assassina o nómada. Trata-se de um fratricídio, a base de todas as guerras. O que este senhor tenta fazer é reacendê-las todas sob a capa da santidade. Coloquei algumas frases do seu texto a negrito, precisamente aquelas que o aproximam do fundamentalismo islâmico, excepto o caso da monogamia porque o Islão resolveu adaptar os costumes tribais concedendo a cada homem a possibilidade de possuir 4 mulheres em simultâneo de forma a resolver o seu problema físico e talvez para lhe diminuir a agressividade canalizando-a para o acto sexual (o bordel cristão tem a mesma função) e com a excepção, igualmente, ao mandamento “não matarás”, coisa desconhecida no meio fanático islâmico, mas não deixando, por isso, de nunca ter sido esquecido durante toda a História do cristianismo. Não deixa o senhor de escrever ser um apreciador de arte moderna, o que é sintomático da esquizofrenia essencial que lhe assiste. Recordo que O Senhor, recusou a oferenda de Caim. O Senhor que há em mim, leva-me a recusar este texto do princípio ao fim. E logo eu que até não gosto nada de arte contemporânea e que só gosto de algumas coisas da arte moderna (espero que o senhor saiba, pelo menos, a diferença entre arte moderna e arte contemporânea). Qualquer conversão à força se faz na base de enfiar tudo no mesmo saco e de colocar as coisas a preto e branco e não “preto no branco”. O Senhor, que há em mim, sabe muito bem a diferença que existe entre “haver um Senhor em mim” e “transportar o templo comigo”. O primeiro é normal, o segundo é fanatismo. José António Saraiva transporta com ele a Civilização Europeia e toma-a como o seu Templo. Um verdadeiro talibã disfarçado de santinho. Evidentemente que o texto pode ser esmiuçado e analisado frase a frase, mas não me apetece. Afinal, é a questão do fratricídio que se encontra na base de tudo isto. E consta que foi um homem o autor do mesmo. E assim se perde a alma. A razão, há muito que foi perdida.

 

 

Eis o texto publicado no semanário Sol por José António Saraiva:

"Quando os bárbaros chegaram ao Sul da Europa e à Península Ibérica, no início do século IV, encontraram povos num estádio superior de civilização. 

Os romanos tinham implantado na sua zona de influência estruturas políticas, administrativas, sociais e económicas que geravam modos de vida que os bárbaros desconheciam.  

Caído o império romano, a Igreja Católica ‘substituiu-o’ no papel de consolidar e fazer funcionar essas estruturas, defendendo ao mesmo tempo o cumprimento de regras essenciais à vida em sociedade. Não matar, não roubar, não cobiçar a mulher do próximo nem o seu servo nem o seu boi, não usar o homem como mulher, etc., eram princípios sem os quais a vida em comunidade se tornaria um inferno.

Além disso, ao defender a família, o cristianismo dava um passo determinante para a estruturação das sociedades. Uma família supunha uma casa. E precisava de terra para cultivar e de animais para ajudar no trabalho do campo. E de animais de criação. E o conjunto de bens que a família acumulava – casa com o seu recheio, terra, animais, alfaias agrícolas – constituía um património que passava de pais para filhos, assim surgindo o conceito de herança. E a herança supunha a monogamia, sem a qual se tornava difícil identificar os herdeiros. Com uma família estável – um pai, uma mãe e filhos – os beneficiários da herança  não ofereciam dúvidas.

Sobre as famílias assim organizadas construíram-se os municípios e sobre os municípios construiu-se o Estado. Que, com a sua burocracia, garantia o funcionamento daquilo que era colectivo, pertença de todos. Assim se construíram sociedades organizadas. 

Os bárbaros, quando chegaram ao Sul da Europa, estavam noutro patamar civilizacional. Vinham em hordas por aí abaixo, homens mulheres e crianças, e desconheciam as leis que regulavam a vida dos povos do Sul.

Matavam, roubavam, violavam as mulheres, não cultivavam a monogamia, viviam em  promiscuidade sexual: tinham relações uns com os outros, não sabiam de quem eram os filhos. Como povos nómadas, não tinham o sentido da propriedade nem da posse da terra. Não conheciam artes de cultivo. Não sabiam o que era a herança. Não se organizando em famílias, toda a construção social daí para cima era caótica. 
Obedeciam a chefes omnipotentes que impunham uma ordem rudimentar.

Durante vários séculos, atravessando a Idade Média, a Idade Moderna e entrando na Idade Contemporânea, a organização social que vinha dos romanos, consolidada pela Igreja Católica,  manteve-se relativamente estável no Sul da Europa.

Com a chegada da revolução industrial, porém, este mundo vai entrar em crise. Quase tudo muda. A posse da terra torna-se secundária em relação à produção industrial. As cidades crescem enormemente. As mulheres entram no mercado de trabalho. A vida em família altera-se. 

O homem perde protagonismo, as mulheres ganham independência, os filhos deixam parcialmente de ser criados em casa e vão para creches ou para colégios internos, a estabilidade familiar é abalada, os divórcios aumentam.

O positivismo avança, com o consequente recuo da influência da Igreja Católica.

Todos os mandamentos entram em crise. As mulheres começam a ter uma vida social que as faz arranjarem-se mais.

Tornam-se mais sedutoras. Deixa de ser proibido cortejar a mulher do próximo. A liberdade sexual cresce muitíssimo. 

Tudo aquilo que era considerado ‘conquistas da civilização’ subitamente é posto em causa. A crise da família, ou seja, da célula-base em cima da qual se fazia a construção social, abala tudo o resto. O conceito de património familiar, a educação dos filhos, as questões sucessórias, tudo isto fica em causa. 

O próprio respeito pela vida humana, a ideia de que a vida é o valor supremo – não matarás – entra em crise. A despenalização do aborto é a primeira machadada neste princípio. A liberdade da mulher para fazer o que quer do seu corpo (ou do que transporta dentro de si) sobrepõe-se à inviolabilidade da vida. E seguir-se-á a eutanásia. 

Chega-se ao extremo de se achar que a distinção entre homens e mulheres é artificial. Os meninos aprendem que o ‘género’ é uma construção social, que um menino pode afinal ser uma menina e vice-versa, que o facto de ter um órgão assim ou assado não quer dizer nada. A diferença entre homem e mulher, cuja união permite a reprodução da espécie e cuja associação estável possibilita uma sociedade organizada, perdeu-se.

Estas mudanças reflectem-se hoje em todas as manifestações humanas. A arte tornou-se rude. Boa parte da literatura perdeu o nexo, a música tornou-se ruído, a pintura é caótica, a escultura é abstrusa. Mesmo quem gosta de arte moderna, como eu, não pode deixar de reconhecer que entre uma pintura de Rubens e um quadro abstracto com  meia dúzia de pinceladas ao acaso, ou entre uma sinfonia de Beethoven e uma música techno, vai um abismo. Umas são manifestações de uma civilização no seu apogeu, outras são produtos de um mundo decadente. 

E na forma de vestir manifesta-se a mesma regressão. Até há uma duas gerações as pessoas procuravam arranjar-se, parecer bem; agora passa-se o contrário: a moda são os cabelos despenteados ou as cristas imitando tribos primitivas, a roupa sem formas, as calças rotas.

Esta sociedade doente, que esqueceu as regras e os princípios que lhe deram superioridade, aproxima-se da barbárie. 

Pode matar-se em certas circunstâncias, a monogamia é uma coisa do passado, a família desfez-se, a promiscuidade sexual instalou-se (já se fala em ‘policasamentos’, ou seja, casamentos em grupo), o património familiar perdeu sentido, as heranças complicaram-se.

Adoptamos costumes e práticas de povos que estavam num estádio de civilização muito inferior ao nosso quando entraram na Península. 

Todas as civilizações têm uma ascensão, um apogeu e uma queda. E a queda, normalmente, é para patamares inferiores aos do início. E é nessa fase que nos encontramos.

Claro que temos a tecnologia, os computadores, os telemóveis, os satélites, as naves espaciais, etc. Mas também

Roma tinha uma tecnologia muito superior à dos bárbaros e caiu às mãos destes. 

Porquê?

Porque desenvolvera a técnica mas perdera a alma. Aquilo que estava na origem de tudo."


 

domingo, 22 de agosto de 2021

Desenho meu


 

Palavras a 22 de Agosto

 



O universo gerou em mim um sol

e o mundo tornou-se numa lua do meu corpo

e o meu corpo, num planeta do meu coração

onde o sol brilha e as crianças brincam

numa colina verde ou à beira-mar azul.

E até o o reflexo da piscina na casa amarela

é o meu pensamento aquático murmurando luz.

Não há ramos verdes nos meus passos.

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Não fiz nada de nenhum ofício,

Nem nenhum ofício fez nada de mim.

Foi como se namorássemos,

perpetuamente às escondidas,

e nunca conhecêssemos o altar

onde o véu da noiva se estende até ao mar

como um rio sem acidentes, direito e liso,

a caminho do destino.

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Acordo com a neura

do bonito dia

sem acrescentos ou faltas.

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Engrossam as fileiras dos "terra a terra"

e tornam, assim, a terra tão densa

que não se levanta, nem com o vento Norte.

E tornam-se rocha onde não calha haver 

pó solto para uma flor.



                                (Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

A expiação dos pecados e os bodes expiatórios



 Vem o jornalista brasileiro Laurentino Gomes apelar aos pedidos de desculpa, por parte de Portugal, pelo passado esclavagista. Nada como estar na moda. Mas nada pior do que alguém apenas estar a "meia moda". Qualquer aprendiz de estilismo lhe dirá isso. Onde já se viu, por exemplo, alguém desfilar com as cores da estação mas com um corte à anos quarenta? Quando assumimos que vamos estar na moda, essa adesão deve ser total. Ora o Brasil é bem conhecido por não dar qualquer valor à vida humana e  por, por exemplo, as mortes por assalto na rua serem frequentes.  É detestável isso num país. E a miséria das favelas? Um horror. Para Laurentino Gomes, esses detalhes não estão na moda, mas, se olhar bem, enfiam-se bem no pacote dos direitos humanos. Assim, meu amigo, que o seu país comece por pedir desculpa pelas barbaridades que tem em casa (e que até são actuais) e depois falamos em pedidos de desculpa. Ainda não percebeu,  criatura, que basta estar vivo para errar ou se calhar percebeu isso muito bem, mas a moda (parcial) de pedidos de desculpa, fala mais alto. Laurentino Gomes não está na moda. Está naquilo a que se chama uma tentativa falhada de estar na moda. Para estar na moda devia pegar nos livros de história da humanidade e ler todas as histórias, de todos os lugares. Devia reunir as barbaridades e os atentados contra a dignidade humana. Em seguida, fazer uma longa lista e pedir a todos os actuais países do mundo, pedidos de desculpa pelo seu passado. Um verdadeiro padre da santa igreja da moda não deve deixar escapar nada e um verdadeiro Santo não utiliza bodes expiatórios. Isso é coisa de judeu. Aliás, a Alemanha já pediu desculpa aos judeus e há quem esteja careca de saber isso e não deixe, exactamente por estar careca, de sonhar com novos campos de extermínio para eles. Até na Alemanha há carecas actualmente. Os índios também têm passado um mau bocado às mãos dos actuais brasileiros. 

‌A nossa lista portuguesa é enorme. O Afonso Henriques não tratou nada bem os moçárabes. Devíamos pedir desculpa aos moçárabes pelo que fizemos, embora já não existam. E também devíamos pedir desculpa aos mouros pelo facto de termos andado à guerra com eles. A esta hora, se calhar, andavam as mulheres de burka e Portugal era um paraíso de papoilas... e os escravos de agora? Ui, são tantos e estupidificados pela TV.  Muitos deles consomem novelas brasileiras. Saem de casa às seis e chegam a casa às nove, mesmo a tempo de ver a novela. Ganham o suficiente para a ração do dia. E, às vezes, nem isso... E o Viriato? Sim, o Viriato! Diz que se deixou trair. Quer dizer, ele não deixou, mas foi traído e os bandalhos dos Romanos invadiram isto. Vejam só. Se não fossem eles hoje éramos como os cavalos: puros lusitanos. Mas há mais. Consta que os homens das cavernas também não eram pacíficos. Consta... Não temos a certeza.  E os comunistas? Ai! O Papa já pediu desculpa pela Inquisição. Mas as bruxas crescem em número na mesma. E os bruxos. Até causam dano. Deviam pedir desculpa. Agora usam a tecnologia e as plataformas computacionais. E os países vizinhos do Brasil? Sim, os da América Latina. Ali tão perto do Laurentino. Ele não repara no que lá se passa actualmente? A lista é longa. E, mais do que isso, actual. O Laurentino não sabe, mas há muitos macacos a precisarem de serem penteados. Sugiro uma mudança:  de pretendente a estar na moda, passe a cabeleireiro e vá penteá-los. Eles não se ofendem e até agradecem. Por enquanto. 

sábado, 14 de agosto de 2021

terça-feira, 10 de agosto de 2021

O baile

 


Reservam-nos os passos
Danças de ópios largos?
Enfim, recém-chegados ao salão
Onde arcos, por vezes escassos
Cercam as almas ali encontradas

Se fomos graças e aves estendidas em céu
Sobre as montanhas aventurando a terra
Se fomos gente nómada
Embarcando na alta chama

Não mais vimos ao largo
Aquela barca que Deus levou
E se, no vento, foi em ondas de mar
E se nossos olhos acalmou ao chegar
Longe acabou por ficar do nosso abrigo

Quem  ousará a dança
Neste velho salão onde as tábuas já tangem?
Recostados os velhos em fumo vil
Libertam-se das amarras indo para outras prisões.. 

E nós recém-chegados, vindos das montanhas que tocam as asas das águias
Vindos de navegar na alta Saudade
De quem viu barcas idas sem retorno
Que dança ousamos nesse velho salão
De valsas esculpidas em espelhos
Onde os velhos dormentes ignoram
As vidas outras que trazemos?

Sorte ou destino, tanto fazem
Os nomes dados à nossa chegada
Aos nossos passos tímidos 
Que agora se ouvem nas tábuas 
Esquecidas de si

Outrora pensámos ser águias ou asas
Tanto faz, o nome a verdade não desfaz...
Hoje sabemos serem os passos
O nosso próprio ser 
Tímidos, pisam tábuas tangentes
A outros tempos
Se longe se perto quem o sabe dizer?
No vidros, por entre cortinas pesadas e gastas, abre uma rosa por cada passo dado

Não sonham nem conhecem os velhos
Recostados no ópio bravo da sua memória
Dos agora acessos castiçais
Dos agora iluminados lustres
Da nossa recém-chegada aparição
Da nossa vida outra que trazemos

Ficam na bruma adormecidos
Enquanto o nosso corpo que é só do Tempo
Dança valsas frescas e matinais
Com vestido novos e novas cores
Devolvendo a luz onde não a havia
Em segredo e só porque dormem
Os velhos enfeitiçados nos espelhos distorcidos pela perda da Saudade.

Velhos, tão jovens são afinal
Numa outra postiça máscara de Poe
Recém-nascidos e não chegados
Ao velho salão polido e encerado
Recostados nas cinzas da História
Opacos olhos, sem rugas, nem altura
Não foram na barca que Deus levou
Não dançaram as velhas valsas
De que o espelho guarda a memória
E das rosas não souberam o perfume
Tão velhos e jovens são
Que não sabem da fonte no jardim
E dormem num canto triste
Mais do que o do cisne que persiste.


(Cynthia Guimarães Taveira)


segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Medidas de arcanos

 


A vida bate a literatura aos pontos e isto quando não é a literatura que faz o mesmo à vida, mas quando a vida é literatura, então bate em retirada para uma outra realidade. É esse o sustento tanto da vida como da literatura, ess'outra realidade onde se encontram unas, miscigenadas,  apenas suspensas entre o céu e a terra. É face angelical das duas que se revela quando se unem por tempo suficiente para não poderem ser, de maneira alguma, demoníacas. O tempo nestas coisas conta mais do que pensamos, funciona como carimbo de qualidade ou como ex-libris de algum autor celeste impresso nas linhas e entrelinhas da vida e da literatura quando caminham lado a lado, tão parecidas, tão iguais, tão gémeas, a tal ponto que uma se disfarça de outra sem que se tenha de mudar o nome porque não há diferença. Quando a vida é literatura podemos pegar nas palavras porque deixaram de ser apenas ideias e passaram a ser coisas moventes recheadas com as ideias do que são. Nessas alturas o sopro insuflado pelos anjos nunca vem só, como uma brisa ou vendaval, traz sempre ofertas: caixas com frutas, cornucópias de abundância, enquanto as folhas das árvores flutuam no sopro. É o brinde dos deuses à ascenção da literatura à vida e da vida à literatura, dois movimentos iguais, só possíveis a meio caminho entre o céu e a terra. É por isso que a compreensão da literatura sabe sempre a pouco e a disposição para entender a vida nunca é suficiente; é porque nunca são uma só e sabem sempre a pouco na imensidão da viagem que nos espera entre terra e céu. Os que vão compreendendo a vida deixam que as pálpebras se descaiam, mais tarde ou mais cedo, e em cada ponta delas, uma sílaba tónica de tristeza, não há compreensão sem um certo lamento; os que vão compreendendo a literatura, no canto dos lábios, acabam  por ficar com uma sílaba tônica de amargura ou de cinismo porque nunca hesitam em comparar a literatura com a vida. Aqueles a quem, sem que o peçam ou sequer desejem (por nem conhecerem essa possibilidade) é dada a literatura e a vida num só copo, esses não se escapam à embriaguez dos deuses e riem-se dos sentidos das coisas porque os sabem ver como ninguém. Com uma aparência normal, passam por loucos se lhes convém, mas são seres extraordinários, invisíveis aos normais.