quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

O mundo é uma bola de algodão

 



Muitas (muitas mesmo) frases filosóficas funcionam como os provérbios populares, embora mais elaboradas e visando alguma profundidade, são, tal como os provérbios populares, como um pronto-a-vestir com secções para várias ocasiões da vida. Libertam-nos de um peso momentâneo qualquer, ou fazem-nos parecer sábios no instante em que a presa é caçada, mas a maioria das vezes são proferidas em abono próprio, são uma auto-consolação, um auto-prazer cuja virtude é a de um Muito Bom num teste, ainda que todas as outras perguntas possíveis de serem feitas nunca tenham visto nascer a luz do dia...e tenham grande possibilidade de verem as suas respostas erradas. Quando erramos muito, procurarmos no dicionário das frases algumas que nos desculpem ainda que pareça que simplesmente contemplamos uma realidade exterior a nós. "Mas o filósofo tal disse..." Pois disse, e outros (senão o mesmo) disseram o seu contrário. Confundimos a vida com uma justificação da vida e bem sabemos a complexidade da vida... Normalmente não tem uma só justificação, pode ter milhões delas ou nenhuma. Se soubermos disso, talvez não sejamos nunca funcionários públicos do Ministério de "Como viver", coisa que ninguém sabe ao certo como fazer. O mundo é uma bola de algodão...

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

A estrada larga


 Amuei com a realidade

Quero outra que não seja

Este vago sentimento de esperança turva

E outros nomes que criasse

Fariam parte dela, como folhas caindo

Da árvore que é este firme propósito de existir


Mostram-nos os deuses a estrada larga

Atravessada de margem a margem

Chamamos-lhe vida ...

A restante dela são  pontas soltas do infinito

Onde Deus varia conforme a luz


quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

O Frankenstein e o Golem



Diz Yuval Noah Harari, nas suas "21 lições para o século XXI" (Ed. Elsinore, 7a edição, 2021), várias coisas (por vezes bastantes precipitadas e próprias de um jovem que segue um linha de pensamento sem ter atenção ao hábito tão presente nas suas origens judaicas de debater em conjunto assuntos complicados, como é o caso da macro-História). De entre essas coisas, diz: "os computadores não têm subconsciente" (p.86), "a ficção científica costuma confundir inteligência com consciência " (p.95), "o perigo é que, se investirmos muito no desenvolvimento da inteligência artificial e pouco no desenvolvimento da consciência humana, a sofisticada inteligência artificial dos computadores só servirá para dar mais poder à estupidez natural dos seres humanos." (p. 97).

A páginas tantas, no seu deslumbramento pela demanda humana da criação da própria vida, lembra também o caso de Frankenstein e aí parei e lembrei-me do caso do Golem.

A diferença entre o Frankenstein e o Golem, é que o primeiro é feito de remendos, uma experiência científica mal sucedida, resultando num monstro, já  o Golem é criação de um alquimista, feito de barro, a quem foi insuflado o espírito da vida, o sopro, mas com a incapacidade de falar (a linguagem humana não é outra coisa senão a consciência humana corporificada). O que têm os dois em comum: acabam mal. 

A marcha da humanidade promovida neste e noutros livros do autor parece ser consequência da própria queda, imparável, da Humanidade. Existem factores, no entanto, que nos escapam ao invés do que parece sobressair nestas obras. Algo nos escapa sempre. O homem deificado não é Deus porque qualquer deus é uma faceta Dele. 

Conhecendo este autor o hinduísmo, espanta-me a forma linear com que reescreve a História dos Homens. Praticando este autor a meditação, espanta-me que não atente aos ciclos que na História dos Homens toma a forma de uma espiral, e não de uma lança dirigida ao futuro acertando em parte incerta... 

Evidentemente que nos alerta, evidentemente que propõe soluções, no entanto, nada nos diz que são as melhores e nada nos diz que o próprio autor se conhece verdadeiramente a si próprio: "a maioria das pessoas não se conhece muito bem a si mesma" (p.75), e segue na mesma página com o exemplo da sua homossexualidade descoberta tardiamente aos 21 anos. Tememos que o conhecimento da orientação sexual, gostos pessoais, etc, nada tenha a ver com o conhecimento da nossa própria essência... ,  todo esse tipo de auto-conhecimento é altamente volátil e até Freud teve de escavar, por vezes, um pouco mais profundamente, indo além do "abaixo do umbigo". O auto-conhecimento é a "parte mais baixa" do conhecimento do homem em geral... porque é extremamente volátil e um verdadeiro entretenimento para psicólogos que gostam que os seus clientes fiquem "resolvidos" e aptos a encaixarem numa sociedade estragada e desequilibrada. Dizer "sou gay" tem tanto de auto-conhecimento como dizer "gosto mais de bolos do que de doces", não revela nada, nem diz nada, nem adianta, nem atrasa... é apenas um facto no meio de milhares, um facto que, como tantos outros podem ou não ser motivos de descriminação. Uma coisa é o autoconhecimento de inúmeros factos, outra coisa é a descriminação e outra coisa é o conhecimento efectivo do ser humano para lá dos factos e da política ou dos preconceitos. Se se confunde inteligência artificial com consciência, como diz o autor, também se confundem conjuntos de factos que juntos podem funcionar ou não (veja-se a tecnologia), com o conhecimento de todas as dimensões humanas: a maioria delas permanecem desconhecidas.

O mesmo autor diz que as armas nucleares tradicionais (seja lá o que fôr essa "tradição") podem vir a ser consideradas obsoletas (p.152) o que revela que escreve apressadamente: uma arma foi feita para matar, se mata, funciona, se funciona não está obsoleta. O mesmo pode ser dito de uma faca...

O mesmo autor diz que "a maioria das pessoas vota sem pensar" (p.34) - não poderia estar mais de acordo, há quem vote no mais bonito, estou até convencida que foi assim  que Sócrates subiu ao poder...- mas no seu galope de historiador imparável e analista esclarecido, chega à conclusão que o mundo precisa, não de um governo global, mas sim de decisores globais, ou seja , o grupo de eleitos por cada país (os actuais governantes), em reunião, para decidir o futuro da humanidade em questões como, a ecologia, a economia e a marcha da ciência. (p.154). Tenho uma boa e uma má notícia para Yuval: a boa é que isso já se passa (e os governantes andam a mando das empresas), a má é que a maioria dos governantes foi eleito por não pensadores. 

As questões que o livro levanta são pertinentes, as soluções é que são estranhas talvez porque haja perguntas que não sejam colocadas tais como: necessitamos mesmo de inteligência artificial? A nossa não basta?

Só que questões como esta remetem-nos para a grande questão da essência do ser humano e isso é difícil, penoso e ambicioso, ou seja, a verdadeira demanda. Perguntar o que é uma essência é o primeiro passo. Ou o que é o ser humano, ou o que é uma pergunta... Enfim, começar... Já pintava  Almada Negreiros.





 

domingo, 4 de dezembro de 2022

Super Hipotético

 


Lá comprei eu mais uma revista Super Interessante, e desta vez, todos os artigos me interessavam, um em particular, o da entrevista a José Luís dos Santos com a chamada de atenção na capa, a letras gordas, "quando a ciência interroga os seus próprios limites". Para além de nos informar da ideia (que já é um lugar comum), de que a ciência e a religião não são incompatíveis por se encontrarem em patamares diferentes, outra informação me fez sorrir e prende-se com a imagem que mostro acima. Refere a revista dois livros de autoria do entrevistado, um dos anos 90 onde é evidenciado o conhecimento da macro-estrutura do Universo, ou seja, o conhecimento total da sua constituição e outro, recente onde afirma, pelo contrário, que aquilo que se pensava ser a constituição total do Universo corresponde, afinal, a 6%, ficando 94% do Universo no patamar do desconhecido devendo-se isso ao facto desta última percentagem (que se debruça apenas sobre a matéria e a energia) ter uma origem desconhecida. Ou seja, num espaço de décadas, passou-se da percepção de um super-conhecimento para um ínfimo conhecimento. Bem vistas as coisas, quase tudo nos é desconhecido e como os cientistas gostam muito de esquemas, desenharam este da imagem que, traduzido, é assim: à medida que a esfera do conhecimento aumenta (a chamada realidade no esquema, ou seja o círculo rudimentar interior), aumenta também a esfera da teoria, ou seja a das hipóteses, bem como o diâmetro da linha que nos separa do desconhecido. É bom saber destas coisas porque assim também sabemos que Deus é sempre maior do que parece. Mas o mesmo se passa, digo eu, ao nível do micro: quanto mais penetramos no interior e na intimidade da matéria mais essa fronteira do desconhecido aumenta. Temos aqui um problema grande porque até parece que é o próprio conhecimento que produz o desconhecido, o que seria, no mínimo hilariante. E é. Evidentemente que as religiões, tal como estão, não são incompatíveis com a ciência porque se encontram em patamares diferentes, mas algumas religiões, tal como eram, também procuraram o conhecimento. Se me disserem que a metodologia tem efeitos sobre aquilo que conhecemos, então talvez perceba a suposta incompatibilidade, a lei é antiga "encontramos aquilo que procuramos" mas, se a ciência conta com o imprevisto para se renovar, não menos faz o Espírito Santo, e aí, encontram-se compatíveis como gémeas... De maneira que, aquilo que temos é isto: uma espécie de "quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha", eu voto nos dois ao mesmo tempo porque não sou uma pessoa democrática... Sou total e não totalitária. Mas esse voto, ao contrário do voto democrático, é um acto inteligente. 

 Bjs a todos os cientistas totalitários, porque sei que precisam deles... Já intuía Sísifo.










quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Olá, meu querido Fernando

Ontem não te escrevi porque estava um dia triste. Não há nada pior do que um aniversário da morte (como se a morte fizesse anos ...) como um dia chuvoso, pesado e cinzento, aliás, devíamos apenas, neste caso, falar ou escrever só no dia a seguir à morte. No caso de Cristo, fala-se passados três dias porque como aquilo que se passou foi um processo alquímico, levou um pouco de mais tempo mas, no caso dos poetas, um dia basta para sentirmos essa "curva" e vislumbramos, logo no dia a seguir, uma estrada de sol, como esta de hoje. Não estranhes o facto de não ter colocado uma foto tua (também nunca foste muito de fotos e de públicos juvenis que necessitam de ver para crer), coloquei uma minha que é igual ao estado do país: um perpétuo trabalho idiota de arrumações e limpezas, com momentos de revolta em que se lê um livro. Ler tornou-se um acto de rebeldia. Esses momentos são, no entanto, esparsos porque num país amnésico a lucidez assemelha-se a um raro momento de arco-íris... da mesma forma anda a filosofia portuguesa e a cultura em geral, depois da mecanização dos gestos, passámos (Oh, humanidade gloriosa!), à mecanização do pensamento e o nosso modelo deixou de ser Deus como centro para tender e passou a ser o robot, fios e lata em movimento activados por impulsos elétricos. O Mistério nunca zombou tanto de nós como agora e já nem escondido o achamos por já nem o sabermos nomear... Mudam-se os tempos, mudam-se as insanidades cada vez mais destrutivas.  O ambiente em que viveste também não era bom, frio e pesado pela guerra grande e pelo vislumbre de outra a chegar, este tempo, por seu lado, retira a esperança com pás de coveiro e já nem o tédio dos dias nos permite ter alguma (nem que seja que o tédio acabe), porque não há tédio algum, ou seja, tempo estendido em que não se passa nada, o que há é um frenesim vazio de sentido. Afinal, as formigas-homens comandam um mundo, sem querer magoar as formigas, querendo apenas magoar os homens pela sua incapacidade de se reconhecerem como formigas. Creio que tenho como missão (os castigos já os tive todos), observar apenas o que se passa e sorver a aprendizagem do caos, ao mesmo tempo que o transmito ao cosmos para que se espante. Neste tempo de vigilância, a vigília  é donzela, a observação é rainha e a contemplação, Imperatriz... O povo vigia tudo como um louco de binóculos numa mão e o martelo de juiz na outra. É a nova fé e a nova espada e a justiça deixou de ser cega e anda por aí, desnuda e louca com o que vê. Também, Fernando, me encontro no cais à espera do navio que me leve, ou da caravela dos sonhos. No fundo, só quero ir ter contigo para ouvirmos o crepitar da poesia enquanto bebemos um copo de vinho. Aqui, pouco ou nada me interessa e este papel de testemunha torna-se demasiado doloroso para almas sensíveis. A luta é para os práticos da vida, os psicopatas da felicidade que não olham a meios para a obter, destruindo tudo à sua passagem. Já lá vai o tempo dos guerreiros... agora, nas brumas deste nevoeiro sem fim, só se vêem mercenários magros e infelizes esperando a felicidade do golpe. Já ninguém galopa e os cavalos vivem em quintas abandonadas, também eles esquecidos de si...

É isto que te posso transmitir agora, Fernando. Isto e a leitura de um bom livro quando surge do tempo antigo ou quando é muito raramente editado hoje, o verdadeiro acto rebelde numa altura em que os livros são queimados barbaramente e diariamente nas redes sociais. Sempre que se acede a uma rede qualquer, queima-se um livro... A Inquisição somos todos nós e nenhum de nós é menos do que um guarda no campo de concentração de Auschwitz. Somo-los nos pequenos gestos resignados, e somos justos, apenas quando lemos. E se te lermos ainda mais. Neste cais, onde espero o Último Navio, leio e penso que gostaria de ter o Império sonhado, com donzelas, rainhas e imperatrizes, mas sem este povo lamacento, sem modos nem sabedoria sequer, apenas virtuosos robots, infinitamente baratos e fáceis, tontos e tristes, em transe com o seu estado de saúde devidamente actualizado. À nossa, Fernando! Somos mais do que isto e um dia destes vamo-nos encontrar junto à lareira para nos aquecermos e falarmos das estrelas já visíveis nessa altura. 

Uma beijo enorme de saudades,

Cynthia