sábado, 30 de novembro de 2019

Catarina, a Grande

O grau de iliteracia dos meus textos é assustador. Depois de ter escrito o texto "A Grandeza" há algumas horas, recebi não sei quantas chamadas de Alexandres que me quiseram informar sobre a sua opinião acerca de si próprios. Todos eles me disseram serem grandes. Ora o texto, acaba a dizer que "o nome não interessa para nada", e eis que os incompetentes da leitura, se acercam do texto, fazem-lhe o cerco e mudam-lhe o sentido. A inversão é típica do satanismo... Ora se o nome não interessa para nada, mas se quem lê o que quer e não o que lá está, resolve aproveitar-se disso, isso não altera o texto, altera é a pessoa que o lê: de um potencial bom leitor passa a um completo péssimo leitor. Devo acrescentar que não vale a pena virem com aquela história hermética daquilo que diz que "o que está em cima é como o que está em baixo" mas ao contrário. É que se for assim todo o satanismo é legítimo e, se calhar, é isso mesmo que querem. Para a próxima talvez coloque "Catarina, a Grande", e como se trata de um nome de mulher, talvez elas não me telefonem a dar a opinião sobre si próprias, até porque, frequentemente, e infelizmente para muitos machos que pensam ser os melhores do mundo, elas demonstram mais inteligência do que eles... Disse "frequentemente", não disse "sempre" meus amigos com défice de literacia. Só escrevo para pessoas inteligentes. Os outros não percebem nada.

30 de Novembro


Olá, meu amor. Mais um ano passou desde que partiste. Já tinha preparado o meu nascimento só para te poder ler. Desencontrámo-nos no tempo mas encontrámo-nos nas palavras. O mundo continua no seu percurso de fim de ciclo. Tenho a certeza que se escrevesses agora ninguém te compreenderia na mesma e terias de repetir todos os teus heterónimos e arranjarias uns novos numa última tentativa para falares a partir do coração do mundo. Meu amor, as últimas novidades que tenho para ti são as do Espírito Santo. Disse-me ao ouvido (ele também fala ao ouvido e não à orelha) que continua a não se deixar enganar. De maneira que, por aqui, nesta pátria que é a língua portuguesa, Ele continua atento e soprando aqui e ali. Andamos  todos aqui a fazer por viver. Os que não andam, andam a fazer por sobreviver e os restantes andam a fazer por viver interiormente. São poucos. No fundo são os mesmo de sempre neste fim de ciclo. Tu conhece-los bem, também estiveram contigo e acompanharam-te sempre. De modo que, continuo a amar-te muito e a encontrar-me, sempre que posso, com as tuas palavras para que possa encontrar-te a ti, poeta-estrela.
Um beijo grande.

Cynthia

A Grandeza


Alexandre, o pequeno, nunca foi o Grande. Também tinha, como o Grande, um lado feminino, de tecedeira. Alexandre, o pequeno, tecia com fios que encontrava pelo caminho, opacos e tristes, restos de palavras apanhadas em redes de borboletas. E o tecido, tecido por ele, era uma serapilheira gasta, baça que caía tristemente sobre o branco sujo do papel amarrotado. Alexandre, o Grande, era aquela tecedeira que não negava a noite e o dia e que, a qualquer hora, cruzava os fios nocturnos que apanhava das águas onde se reflectia a luz da lua e os raios de sol, formando com eles bordados, sem que houvesse qualquer diferença, entre eles e os do céu. O tecido luxuoso era depois transportado em caravanas e ia vestir os reis e as rainhas do outro lado do mundo e que, desse modo, iluminavam os seus reinos. 
A matéria-prima, que um e outro conseguiam apanhar era aquilo que um e o outro eram verdadeiramente. Como se depreende daqui, o nome não interessa para nada. Apenas a Grandeza.

A paisagem


Há mais um desiludido com a sala de baile. Esse, tinha dançado até que os pés lhe sangrassem como o Fred Astaire. Tinha até dançado com as três Marias, as rainhas do baile, mas agora, está no avarandado que dá sobre o crepúsculo ou o amanhecer, não sabemos bem, que é para onde vão aqueles que precisam de respirar ar fresco. Está a dizer que os assentos das cadeiras não são grande coisa e que prefere estar debruçado no parapeito, entre colunas, a fumar o seu cigarro. Quando se está no avarandado com aquela luz, as regras deixam de fazer sentido, e ali, pode estar sossegado a falar e a pensar sem ter que andar aos saltos. Ali, onde vão parar os desiludidos é um lugar especial. Outra perspectiva, outra visão das coisas. Neste momento fala da música, mal escolhida e mal tocada. E das máscaras. Era suposto ser um baile de máscaras, mas, a pouco e pouco elas foram caindo até que a zebra com quem estava a dançar se tinha revelado um cão de guarda, o elefante, seu amigo, um galo idiota, a avestruz da Maria, um aranhiço, engraçado, mas incapaz de uma pirueta verdadeira. Não deixara de ser um zoo, mas a graça que as máscaras tinham, tinha desaparecido e agora havia penas por todo o lado, poeira, os peixes tentavam comer-se uns aos outros e perseguiam-se com oratórias. Não deixara de ser uma fábula, mas extremamente cansativa. A dança nem sequer chegava a ter a dignidade da ginástica rítmica. Estava ali, com o seu copo de vinho, a única coisa que tinha trazido lá de dentro, e contemplava aquela cor no horizonte que permitia que o recorte das árvores contra o céu parecesse verde muito escuro enquanto as primeiras estrelas apareciam a cintilar. Lá em baixo, um lago com cisnes espelhava a alvura tímida da sua penugem. Tudo lhe pareceu mais nítido. Tudo ficou mais nítido enquanto os minutos avançavam. A noite, surgiu-lhe com constelações infinitas sobrepostas, o manto da cúpula do céu desvendava a natureza do seu disfarce e onde havia trevas passou a existir luz. Um dos amigos disse-lhe então:
"Então já descobriste este lugar? Não esperava isso de ti... Sabes que podes entrar e sair quando quiseres."
E sorriu para longe em direcção ao sol que já se adivinhava.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Há coisas deliciosas


Hoje em conversa com um amigo veio à baila o tema da juventude e dois tópicos associados a ela: a internet, com redes sociais incluídas e o desinteresse da mesma por congressos, palestras com temas de rondavam as áreas que estudam. Já sabia desse desinteresse geral em ir a "eventos" onde as pessoas vivas e ao vivo aparecem para falar e dar parte do seu tempo e também já sabia que se diz nos estudos mais avançados ligados à sociologia que a virtualidade é encarada como realidade, porque tem efeitos na realidade. A páginas tantas, lembro-me ter dito que a "virtualidade" se podia desligar (evidentemente que a realidade vivida realmente também se pode desligar quando as pessoas morrem, mas isso é um caso extremo) e de o meu interlocutor, envolvido nessas leituras, ter ficado a pensar no assunto. Minutos antes, com outro interlocutor, tinha vindo à conversa o facto da juventude não ler por estar sempre nas redes sociais e nos canais disto e daquilo da internet. Evidentemente que não chegámos a conclusão nem a solução nenhuma, até porque não existe. Aquilo que existe são consequências desses factos. As próximas gerações estarão cá para falar sobre isso. Eu, felizmente, não, nem tenho soluções ou indicações a dar. No meu egoísmo profundo, que tem toda a razão de ser depois de anos a falar e a escrever para coisa nenhuma, posso apenas dizer que não sabem, estes jovens rápidos digitais, o que perdem: mundos riquíssimos internos que podiam ser seus e outros ainda que podiam também conhecer através dos outros. E perdem ainda mais: a natureza, o pensamento, a meditação, a beleza, a harmonia, as essências, o dom da palavra... E nada se pode fazer. Provavelmente uma minoria, muito minoria mesmo, numa geração futura, escapar-se-á destes modos de estar "à beira do abismo ligado à corrente eléctrica" será ela, provavelmente, que terá de escrever e falar das consequências desse modo de vida e não gostaria de estar no lugar deles por ser extremamente cansativo explicar o óbvio a pessoas que nem o óbvio apreendem. Ao contrário do que possa parecer, não me sinto "velha" por não acompanhar tudo o que aparece de novo na tecnologia. Qualquer pessoa normal, às tantas, e com esta aceleração, troca o passo, tropeça e perde o ritmo, e isso vai acontecer a qualquer um destes jovens que são tão promissores por tanto estarem ligados à corrente. Um pouco como os nossos pais que já não entenderam nada de computadores e nunca tiveram de cartões de multibanco. Também a estes jovens virá o tempo em que o telemóvel de última geração que agora possuem seja uma recordação longínqua sem que entendam o telemóvel da sua velhice ou o chip que alguns jovens trazem incorporados numa sobrancelha onde dantes se colocavam um piercing. Não estou preocupada com isso, nem com as consequências disso. A humanidade é maior e vacinada e lá sabe o que faz (ou não sabe, como aconteceu com humanidades antecedentes). Se andasse aqui para salvar almas ou pessoas ou partes de pessoas ter-me-iam sido dados dons nesse sentido, coisa que não aconteceu. A única coisa que posso fazer é dizer: "Que pena, não sabem o que perdem". Mas o mesmo já digo dos meus vizinhos de baixo que não pegam num livro (dizem que os livros só trazem pó) nem têm um pensamento que vá mais longe do que a novela ou o futebol, o que é uma pena. O século XX apregoou a educação para todos. É verdade que os meus vizinhos de baixo sabem ler e escrever ao contrário dos seus pais, mas de pouco ou nada lhes serviu a não ser para irem às compras, lerem o rótulos ou deitarem contas à vida. É verdade que esta juventude tem a informação que quer e lhe apetece se tocar nos aparelhos. De resto, falta-lhes tudo. Quando os males sociais são endógenos não há artifício que os valham. As grandes questões humanas, por seu lado, continuam vivas e à procura de resposta. O que é uma esperança. E uma maçada. E dão muito trabalho. Não são fáceis. Mas são deliciosas.

O principal



O feto volta-se para a luz
Nada na natureza canta igual
Se pela estrada encontras o mesmo
Se te voltas ou não, é o principal.

(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O lamaçal


A diferença entre a Iniciação e o bullying, é que na primeira, aprende-se, no segundo não. O segundo é, aliás uma palavra inglesa, denota uma certa forma de estar no mundo. Denota a contra-iniciação. Passando por essas duas acções facilmente se vê a diferença. Da primeira sai-se mais inteiro, da segunda sai-se todo partido, até fisicamente, se for caso disso. A reminiscência platónica é muito mais do que a lembrança do mundo das essências. É uma grande mistura entre aquilo que já se sabe de alguma forma,  aquilo que se desenvolveu ou expandiu dentro de nós e aquilo que no imediato se apreende, se conhece e se expande. É um conjunto de três tempos, o eterno, o passado e o presente, que juntos cinzelam o futuro. A providência é a chave desse movimento.
Os intelectuais que não conhecem a natureza dos textos são aqueles que mais tarde se filiam em partidos e religiões ou aqueles que partem para o texto com essas filiações já embutidas. A natureza dos textos está-lhes vedada. Numa ordem tradicional estariam sempre a varrer o chão e a fazer contas à maior ou menor distância que estavam os seus gestos em relação às ideias pré-concebidas. A criação está-lhes vedada.  A iniciação também. O lamaçal está instalado e cada um varre a lama para cima do próximo que, por sua vez, faz o mesmo aos próximos. Eis o panorama. As vistas panorâmicas têm esse efeito de se poder ver o detalhe mimético das acções.
Nem a erudição nem a ilusão de poder são meios para o que quer que seja. Apenas a visão que atravessa as fronteiras do corpo consegue fazer exaltar o perfume da verdade. A humildade que apregoam é o embuste com que se disfarçam estes varredores de lama. Os que se dizem humildes ou amar a humildade, nunca o são verdadeiramente, e os que sabem, de facto, quem são só são humildes relativamente aquilo que são e se forem mais do que isso, terão uma relação de equivalência com aquilo que são.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

As pinturas


Este e outro estão há alguns meses no escritório de uma amiga. Por via do meu irmão soube hoje que as pessoas ficam espantadas e até gostam quando os descobrem. Não é mau.
Depois de ter sido desconsiderada, não é mau saber que, algures, em Carcavelos alguém vai gostando. Não tenho dever nenhum de pintar, nem de escrever. Pinto por necessidade. A mesma com que decoro uma casa. Escrevo porque causa daquilo a que René Guénon chama (pelo menos foi pela pena dele que li), o "lugar dos possíveis" que é o lugar da palavra e do verbo que fica à superfície das águas... Não tenho o dever moral de o fazer porque a moralidade é apanágio das religiões. Não estou ligada a nenhuma instituição religiosa, e por isso, a nenhum dogma. O dogma sou eu e altero-o se me apetecer e não porque há sacerdotes que o digam para fazer. A sacerdotisa sou eu.
Assim, depois de anos a tentar encontrar "espaços para expôr" e a pouco ou nada conseguir  (para além da trabalheira que é andar com os quadros de um lado para o outro, sozinha num Smart - se quisesse ir para feiras, escolheria coisas mais facilmente transportáveis) e de não ver grande interesse (nem ajuda) das pessoas para o fazer, decidi que a "iniciativa" ficaria por conta dos outros. Limito-me a pintar quando me apetece, se me apetece, sem qualquer obrigação para com ninguém. Os outros é que passaram, sob o meu ponto de vista a ter a obrigação de gostarem do que faço, de gostarem e de entenderem, se não o fazem, não sou eu que os vou julgar até porque tenho mais do que fazer. Uma das coisas que tenho de fazer é ir estudando. Não para ser professora de ninguém (nem  temos vocação para tal) mas para que vá tentando entender melhor o que me rodeia e o que está dentro de mim. Também isso não é dever para com ninguém. E escrever, coisa que só me trouxe dissabores com as pessoas, muitas delas que julgava serem minhas amigas não o sendo, é fundantalmente um exercício da Liberdade. Ora sendo uma prática de Liberdade não pode, naturalmente, ser um dever para com ninguém. Os deveres são outras coisas nas quais podemos ou não colocar o coração e não é certo que o façamos sempre - ninguém gosta de pagar impostos e se gostam devem ter em conta os ladrões que ficam com parte deles. O dever, é sempre ambíguo e pantanoso demais para a Verdade Interior.
Sendo o "lugar dos possíveis", um lugar especial (primeiro é preciso "cair nele", é o lugar onde tudo pode acontecer - e daí ter entrado a cisão fraterna em jogo como algo que possivelmente seria a consequência da escrita) é também o lugar onde a possibilidade de escrever o que os humanos querem que escreva é apenas uma entre muitas. Para o fazer, teria que sentir admiração. Admiração pelas ideias dos outros. Infelizmente tenho admiração pelas ideias dos que já partiram o que torna essa possibilidade (que é uma entre muitas) num diálogo com defundos. Daí o ensaio sobre o que os outros escreveram como uma das formas de expressão. De resto, escrevo o que me apetece, quando me apetece. Nunca pensei que o lugar da pintura partilhasse tantas semelhanças com o da escrita e isto do "apetecer" acabou por ser uma libertação do sentido de "dever" que durante anos tive e me levava à constante auto-culpabilização por não me fazer entender nem na pintura, nem na escrita. A natureza do "dever", pesada e demasiado apegada a dogmas que me eram estranhos na alma, teve o condão de me tornar uma pessoa frequentemente triste. E até essa tristeza acabava por me surgir em segunda mão, não era minha de origem. A minha origem era e é a da alegria. Foi no dia em que, depois de muito treino, me libertei do dever que recuperei a alegria. Treinei com o vazio do pensamento. Durante alguns anos, ia dar uma volta de uma hora ou mais todos os dias. Durante esse tempo não pensava. Julgava que não era capaz de não pensar, mas a pouco e pouco, fui ganhando essa habilidade a que chamei de "tela em branco" e vi que era possível não pensar (pensava que era uma coisa só possível de fazer pelo sexo masculino mas vi que eu também era capaz) e isso ajudou-me a libertar-me da ideia de "dever", do sentimento de culpa posterior e da malfadada tristeza que lhe seguia. Quando me trazem numa mão um presente, qualquer que seja, e na outra o dogma em contraponto, sinto-me a anos luz dessas pessoas. Normalmente fico com o presente e, quanto ao dogma, devolvo-o com um sorriso. Uma simples frase que faça recair sobre essa pessoa um qualquer dever, mesmo que abstracto. Qualquer coisa que a faça sentir o peso do que "oferece", o peso do seu fanatismo, o peso de carregar dentro de si um templo que não é o seu mas sim o de alguém que um dia lhe fez essa oferta. É uma boa forma de nos livramos dos idiotas.

domingo, 24 de novembro de 2019

Quem me manda?



Com a sabedoria com que Dalila Pereira da Costa observava o mundo, disse-me um dia, depois de observar as minhas pinturas expostas numa livraria do Porto: "A Cynthia é indiana". Ri-me, achei graça. Mas devia ter tomado mais atenção às palavras dessa grande senhora. Na verdade, a sensibilidade ocidental não percebe nada do que pinto. Até mesmo os ocidentais orientalizados não compreendem. Já mostrei pinturas a chineses que entenderam logo. O meu público nunca será este dos ocidentes. A não ser que sejam pessoas que, pela experiência ou pelo nascimento, saibam do movimento que há no extático e do repouso que há no movimento. Essência do ritual. E saibam, sobretudo, da luz. Interior, claro. Há mais de um ano que não pego num pincel. Dediquei-me ao estudo. As pinturas não servem a ninguém (a não ser a Deus) e o estudo, ao menos, serve para mim, pensei. Sempre alternei palavras com pinturas. Também me canso da incompreensão da pintura e do consequente isolamento. Os textos a bem dizer também não têm respostas, mesmo sendo todos perguntas, a não ser do cosmos que se farta de comentar. Nem preciso da interpretação de ninguém, mal escrevo, aparece logo uma enxurrada de coincidências às quais não ligo muito. Hoje vi uma reportagem sobre o Conservatório das Artes de Loures na SIC. Até chorei. Isto de retirar as crianças de contextos problemáticos e dos atirar à Arte que os devora e os transforma é das coisas mais bonitas que há. Sinto que quem faz isso merecia várias medalhas ao contrário de muitos medalhados. Às vezes gostava de ser assim, de levar um bando de crianças pela mão e de as fazer voar. Mas sei que não sou capaz. A única coisa que sou capaz é de ser uma pessoa normal sem grandeza suficientemente externa para mudar o mundo. Nunca mudarei o mundo. Para o mudar é preciso estar dentro dele. Estou sempre na periferia a pensar que o mundo é o mar com muitos peixes que se cruzam no passeios dos destinos. Fico sentada na periferia, com um olho nas estrelas e o outro no mar (um pé numa galera e o outro no fundo do mar - lembrei-me de Jorge Palma), mas não é bem nem uma galera nem é bem o fundo do mar. É mesmo o mar todo e todas as estrelas. Suspensa, entre a escrita, o estudo e a pintura. Os gestos são tão pequenos que só Deus vê. E alguns anjos se tropeçarem neles. Quem me manda ser indiana aqui?

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O pão que o diabo amassou



Os textos incomodativos procuram colocar o dedo da falha sísmica antropológica sobre a qual assenta a nossa civilização. Observar que o mecanismo de ascensão social se efectua, cada vez mais, a partir da projecção de uma imagem e sua respectiva publicidade tendente à propaganda, é tão simples como uma criança constatar que a água está quente ou fria. Dizer que essa é uma pseudo liberdade quando se projectam imagens, independentemente da qualidade que tenham, é constatar a ausência de critérios sendo o único a projecção dessa mesma imagem. No fundo é o que se passa também com as chamadas "artes plásticas". Não é o objecto que tem destaque, é o espaço que dá destaque ao objecto independentemente daquilo que o objecto for. Esta regra muito simples da arte contemporânea, a da valorização da localização em detrimento da qualidade do objecto tem o seu início e o seu fim no próprio ser humano. Um rei por entre os mendigos, é um mendigo, um mendigo por entre os reis, é um rei. É o contexto que acaba por mascarar o ser. O espaço já não é um "ideal" mas o próprio objecto em si. O ser dilui-se no objecto que é o espaço. O ser desaparece, resta o espaço. A desertificação e a tendência para a desertificação é apenas um reflexo da auto-destruição dos seres. A identidade das plantas dá lugar à identidade dos minérios. As areias, as rochas não são mais o lugar das plantas, o seu habitat. As plantas são a nossa origem humana. A árvore é a da vida e a da ciência. E a árvore é o nosso alimento. A árvore é também o fruto. De facto, um homem sem pão não é livre. E não é livre aquele que nega a inteligência, a sabedoria e o céu. À sua volta, o deserto sem seres. O lugar lúgubre das tentações. A primeira das quais e a última também, a da ignorância.

O amor é cego a a justiça também


Se hoje, mais do que nunca, se confunde, visibilidade com qualidade (o que leva as pessoas a serem obrigadas a fazer uma constante auto-propaganda, isto se quiserem sobreviver), também a justiça se confunde com a qualidade dela. Há juízes que se movem numa espécie de relatividade da qualidade (muito na moda) e atingem um tal extemo que fazem das pessoas ratos de laboratório para as suas experiências ou bodes expiatórios para as suas frustrações, ou ambos. A visibilidade, nestes casos, nunca está completamente posta de lado. Mais tarde ou mais cedo, sabemos todos de julgamentos loucos feitos por juízes cheios de si próprios cujas vírgulas da lei são aproveitadas para que os pobres réus dancem ao som da sua música.
Tornar a qualidade volátil e instável é meio caminho andado para sociedades onde a injustiça se propaga e contamina, como uma doença, desde as acções maiores (que até podem ser pequenas), às mais pequenas (que até podem ser maiores). Vemos nitidamente esta relação com a imagem, com a publicidade e com a propaganda a tentar retirar a qualidade do caminho conferindo-lhe a subjectividade que toma o lugar da objectividade que existe no conhecimento pelo coração. Quanto maior for essa subjectividade aplicada às massas, por via da propaganda, maior a injustiça e o desiquilíbrio social. A ascenção social é feita por três etapas: primeiro, possuir uma imagem, segundo, fazer publicidade dela e terceiro, fazer propaganda da mesma (publicidade em escala maior com vista às massas), timbre elementar dos ditadores. Isto aplica-se a todos: desde ao comum dos mortais até aos juízes que acabam por ser porta vozes de uma qualquer ideia tirânica. A maior ambição que se pode dar a alguém hoje, não é ser rei nem sacerdote, nem ambos: cada um à sua maneira ou mesmo híbridos, fazia a ligação com o céu. Quando o céu se retira, resta a tirania. E é com ela que vivemos todos os dias. Em democracia, o percurso do tirano está sempre lá, na imagem, na publicidade, na propaganda. E, quando o céu se retira, a justiça segue-o, cega de amor e indiferente para os homens.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

A diferença pequena


Bem, parece que o amor está na moda (no ar não sei se está) e eis que hoje me encontro com duas frases contraditórias, uma de Camões " (...) e sabei que, segundo o amor tiverdes / tereis o entendimento dos meus versos", e uma outra que circula por aí e que não sei de quem é, talvez seja de Santo Agostinho: "ninguém ama o que não conhece". Assim, temos dois movimentos, o primeiro parte do amor para o conhecimento e o segundo parte do conhecimento para o amor. Penso que é indiferente, por vezes é uma coisa, por vezes, outra porque, às tantas, é a história das "bacias semânticas" apontadas por Gilbert Durand : as ondas formam a bacia e a bacia forma as ondas.
Mas sempre preferi poetas a padres porque eles guardaram a tradição. E o amor. E a beleza. E porque o conhecimento do e pelo coração não é factual, quantitativo, enumerável. E porque as razões do coração são as do coração e não são outras. Sei que  sempre gostei de flores. Sempre. E um dia, elas explicaram-me porquê. Só mais tarde soube porquê e foi porque elas se desvendaram, sem que pedisse, mas sim porque souberam que as buscava. Desta forma, a palavra "pronto", da qual fala Fernando Pessoa, soa pelo cosmos. Acorda os seres. Vibra dentro deles e desabrocha. Beijaram-me a mão quando entrei para o universo delas. Entre pedir e buscar, há toda a diferença do mundo...

Não falem



Não falem em amor se não forem poetas. Todas as tentativas para o fazer cheiram a mentira, raciocínio e podridão.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Colunas


A invisível história que se desprende dos gestos contidos
fica submersa, Atlântida quase perdida.
É ela quem edifica
pedra a pedra o ser invisível
que se desprende da vida
e transpõe os portões do tempo.
É como uma respiração mais profunda,
um canto vindo da barca
que não se vendo, passa...
Não há realidade que lhe tire o rumo
Nem esperança humana que a absorva,
E, quando irrompe,
é uma vaga de luz,
de terraços sobre o mar,
de puro amor toldando os néscios que somos,
sepultados sem ele
na terra fria, sem água
e logo renascidos somos rotas para a ver,
a verdade.

(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 5 de novembro de 2019

O mordomo



O facto de este blogue não ser lido (ninguém o visita a não ser eu e uma amiga), confere-me paz de espírito depois da inquietude da palavra porque toda e qualquer ressonância universal pertence à ressonância universal, dela sai e a ela regressa sem que passe pela leitura dos textos. É reconfortante ter um espaço livre sem o eco fechado das paredes das opiniões e das sugestões de terceiros. Não há maior paz posterior do que a das palavras deixadas em paz, nascidas para a amplitude do silêncio e deixadas cair no vazio. Nunca um ser foi definido por palavras. Quando Adão nomeou os animais, estabeleceu-lhes limites. Um ser, está para além do nome e está para além das palavras. Elas surgem como prolongamentos que podem ser oníricos ou não de uma mente. Ou surgem porque no silêncio se ouvem melhor. A necessidade de escrever surge do mau estar. Está-se mal e então escreve-se. Diz-de coisas. Hoje ninguém pode estar mal. Há uns dias tive de dizer em voz alta: "Ou se morre em paz e na ignorância, ou se procura saber na inquietude. Cada um morre da forma que quer". Estar desassossegado é sinónimo de "pouca evolução espiritual". Os únicos sossegados que conheci estavam mortos para o pensamento, mortos para o espírito e mortos para si próprios. Os vivos estremecem. O universo estremece. As almas movem-se no deserto, na floresta, na montanha, no mar. Os quietos têm um diploma na mão e andam sempre de chinelos a arrastar pelo chão. Não há diplomas nas aventuras. Nem diplomatas, nem diplomacia. Todos os episódios de diplomacia numa aventura, escrita, filmada ou vivida fazem parte daquela pausa nem sempre necessária e funcionam como sátira, como antítese da aventura. O mordomo surge no meio do jantar tempestivo como contraponto, enaltecendo ainda mais refeição desconfigurada... os ecos, as opiniões, as críticas, são sempre esses mordomos que queriam que o texto fosse doutra maneira e dão-lhe o vigor externo que o público aprecia. Quando se escreve apenas para se ler as próprias palavras esse mordomo é um intruso. Aponta para o texto e para o público e apresenta-os. Diminui o silêncio onde essas palavras outrora caíam. Os leitores são mordomos intrusivos, e os leitores que respondem ao texto são barulhentos. A palavra no silêncio é uma chama. Uma esperança. Um milagre. Uma força. Uma resistência. Um acontecimento. No meio do público é uma tasca, palita os dentes e bebe copos três entre cada opinião. A opinião está a leste da palavra que já foi escrita. Tenta dançar um tango fácil em volta dela. Agarra-lhe na perna e deixa-se arrastar. Perde o orgulho e a coragem. Perde a dignidade. A opinião não tem dignidade. É um movimento a mais no desassossego da palavra. A Hermenêutica é sempre uma nova palavra. A opinião é a fraca atitude dos que não sabem ousar.

Pedagogia II



Pintura de Cynthia Guimarães Taveira

Nos últimos anos em Portugal têm surgido pequenos espaço, quer museus, quer Centros Interpretativos que são extremamente úteis para a preservação da memória. A par com a degradação do património monumental (que o Estado não acarinha excepto quando pode tirar dividendos do Turismo e mesmo assim...), estes pequenos núcleos espalhados pelo país não deixam de ser uma forma de reacção à amnésia, contentam autarcas e "chamam" pessoas para visitar os locais que assim não ficam em casa agarradas ao Facebook. Sempre defendi que deviam existir três tipos de Mecenato para a preservação do património, o pequeno, o médio e o grande consoante os valores em causa. Estes pequenos núcleos que têm surgido pelo país deveriam ser acompanhados pelo mecenato para o restauro do património. Aliás, as Câmaras Municipais deviam e podem (têm contactos previligiados) procurar capturar verbas de empresas para esse fim. A razão da memória é a pedagogia, não há outra. Parte da pedagogia serve para inserir as pessoas no espaço circundante e na sua cultura. Numa altura em que se fala tanto de "inserção" numa perspectiva "social", ou não fossemos todos "filhos" da "sociologia", disciplina menor, a "inserção" na cultura circundante (externa e interna também porque os genes transportam muito mais informação do que aquilo que se pensa), é um dos maiores actos pedagógicos que podemos fazer aos portugueses. Se para um estrangeiro é tudo "interessante", e ainda bem -- as viagens devem ser sempre interessantes, aliás, é o primeiro impulso da "viagem", o interesse, a curiosidade -- para os portugueses é ainda mais do que isso, é a confirmação, a aceitação, o conhecimento de si próprios o que os torna, naturalmente num povo mais seguro de si (peço desculpa ao defensores das minorias mas o povo português existe), mais confiante, mais enriquecido, mais orientado, mais consciente do seu papel no mundo. No último texto falei do papel que têm desempenhado as ciências sobretudo teóricas na pedagogia, nomeadamente, a "psicologia". Evidentemente que o território da memória é sempre apetecível para essa disciplina açambarcadora que é a política. Se por um lado temos espaços de memória neutros politicamente que visam apenas "mostrar o que há" sobre determinadas áreas culturais, por outro, temos estes novos particularismos ideológicos que procuram fazer museus temáticos de forma a que se possa colher da memória aquilo que irá dar votos mais tarde.  É assim que o Museu dos Descobrimentos fica logo à partida "paralisado" por ninguém se entender quanto ao nome. Começam a aparecer léxicos de esquerda e de direita, extremamente precisos - mais uma vez a sistematização a tomar conta de tudo -- e o museu fica encalhado por falta de acordo quanto ao termo a utilizar... por outro lado, o "Museu da escravatura" é tentativa de colocar a história "especializada" em museu. O propósito não é outro senão o de transformar a árvore na floresta... E lá temos o tique comportamental da política, que faz isso mesmo -- a retórica sempre foi a arma da política, o argumento, o seu escudo, a particularização ideológica, a semente que se desenvolve até alcançar a grandeza numérica desejada em democracia -- aplicado aos museus. Tirando este pormenor extremamente visível das "ideias" políticas aplicadas aos museus, a verdade é que, apesar disso, temos visto pequenos núcleos, museus, centros interpretativos (o nome não é grande coisa)  a desabrochar e ainda fora das "lutas" políticas de grande dimensão e de menor valor cultural. Esses espaços deviam constar obrigatoriamente da parte curricular das escolas desde a primária ao décimo segundo ano. Uma espécie de saída da teoria à prática, do livro ao objecto.  Uma criança que cresce a conhecer a sua terra será um adulto mais inserido e mais seguro -- princípio que qualquer antropólogo conhece - e como a sociedade é composta por indivíduos, naturalmente será uma sociedade mais segura. A todos os níveis. 

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Pedagogia


Pintura de Cynthia Guimarães Taveira

Hoje escrevi dois textos neste blogue. Um dedicado ao profundíssimo tema da intimidade, outro dedicado a uns miúdos armados em magos que me chatearam pelo caminho. Aquele que mais chamou a atenção foi o texto sobre os miúdos. Mais tarde fui estudar um pouco (o quê? Isso não interessa a ninguém) e depois fui tentar ver imagens antigas no computador cujo rato deixou de funcionar. Depois fartei-me e fui ver televisão. No canal 1 estava a dar (e ainda está) o Prós e Contras dedicado à educação. Apanhei um senhor a queixar-se de que alunos e pais chegavam a agredir professores. Isso é muito comum. Depois outro disse a frase batida de que a educação começa em casa (onde? Se os pais não têm educação como é que a podem dar?), de maneira que, no dia em que os professores começarem a responder a sério, a coisa vai tornar-se desagradável. Os professores só não o fazem por causa da "psicologia" que levou a que sejam penalizados quando respondem. A "psicologia" tem feito maravilhas por todo o lado. Um assassino profissional é um psicopata, ou seja, um monstro é um doente mental. Um professor que responda é um ser pouco dotado de auto-domínio, ou seja, de alguma forma, é um desequilibrado. Todos levam e calam por causa da "psicologia". Mas estas ciências fragmentadas invadiram tudo. O ensino da gramática tornou-se num exercício para linguístas e quem não os acompanha precisa de apoio na escola e, em último caso, é remetido para o psicólogo que vai logo à procura da hiper-actividade e da dislexia, patologias rainhas por entre as crianças. Mas a psicologia invadiu outras áreas como a filosofia e o esoterismo. Os mecanismos de pensamento e do ser residem todos na psicologia, quer seja de uma escola menos evidenciada (Freud, por exemplo aparece muito subterraneamente) ou mais evidenciada, (Jung, por exemplo, aparece muito explicitamente). Os mecanismos psicológicos estão na moda também na política, no marketing, na arte. O problema é que os "mecanismos psicológicos" não são uma ciência exacta nem são uma aproximação à realidade. São um ponto de vista da realidade, mas, se se tornam o centro da realidade, naturalmente, como tudo o que é central, vão moldar essa mesma realidade. De maneira que o que temos é a psicologia a falar de si para si e nada mais do que isso e, por isso, é que as pessoas não mudam. A psicologia molda as pessoas e elas respondem à psicologia exactamente aquilo que a psicologia quer ouvir. Um sopapo só é psicologia por acidente. Um sopapo é um sopapo. As crianças sabem isso, os adultos é que não porque ou são todos psicólogos (independentemente da área), ou são vítimas da psicologia, ou são as duas coisas. Isto atravessa toda a sociedade. Os mais espertos, doseiam o sopapo com a psicologia e são, por isso, considerados "vencedores". Não são. São apenas espertos, da mesma forma que há animais mais espertos do que outros. A inteligência é outra coisa. Está ligada ao coração e quando está ligada à psicologia é por puro acidente. A natureza e o mundo (que é mais do que a natureza), proporcionaram-nos a magnífica capacidade que temos de "prestar atenção", "dar atenção" e de "ter atenção". Já se vê que para "dar" atenção, é preciso "ter" atenção. A atenção é um dos suportes da inteligência ligada ao coração. A atenção, por sua vez, quer dizer "tender para algo". De maneira que, entre o "dar",  o "ter" e o "tender", o movimento é de fusão, ou seja, de fusão entre o objecto e o observador. A nossa sociedade confunde a "sugestão" com tudo isto porque a "sugestão" é fundamentalmente "psicológica". Toda a sugestão é a supremacia do observador sobre o objecto. A psicologia é e tem funcionado na sociedade como uma sugestão crescente. Daí que acabe por falar de si para si. Já a atenção, necessita de uma coisa muito simples: a curiosidade. Não há atenção sem curiosidade. Ora, a curiosidade é o contrário de um mecanismo psicológico (que é sempre um sistema fechado e viciado). A curiosidade é um estado duplo de alerta e de abertura (já se vê que estar alerta tem muito significados e não apenas aquele que faz acender certas zonas do cérebro hiper estimulado dessa forma). A curiosidade tem os sistemas que quiser dentro dela, desde que os descubra, já os sistemas não têm ponta de curiosidade porque, no seu universo fechado, já sabem tudo. Uma sociedade "sistemática", quer seja na educação, no regime político, na economia, está condenada à fragmentação e posteriormente à diluição. É por causa dessa diluição que tudo nos parece igual a tudo. Mas não é. Foi o excesso de sistemas que nos conduziu a esse modo de ver as coisas bem como à total separação entre o "ver" e o "sentir". Vejo mas não sinto. Isto contraria o provérbio popular: "Olhos que não vêem, coração que não sente", ou seja uma total identificação entre ver e sentir, sem que haja aqui ponta de psicologia, ou seja, um qualquer mecanismo "psicológico" porque se trata de dois órgãos, os olhos e coração, que se fundem de forma a alcançar a verdade. A verdade do coração. A inteligência do coração. Não há mecanismo psicológico que não passe pelo cérebro do seu "criador" que pensa ser um "descobridor". Mas descobridor, de facto, é o ser humano que faz a descoberta com o coração. Ninguém cria coisa nenhuma porque é impossível criar a partir do zero absoluto. Os criadores são co-criadores, sempre, e isso é um paradoxo. E, como é um paradoxo, não existe. De maneira que o "criador" é um mistério porque não somos nós, pois, ao sê-lo, somos apenas co-criadores e isso não é possível. A criação está ligada à unidade na origem e, em última instância nem existe. A co-criação é que está ligada ao número dois. Mas adiante. A psicologia, ao invadir todos os aspectos da sociedade, acaba por corroê-la gerando-a à sua imagem. A propaganda sabe bem disso... De maneira que este problema dos miúdos andarem a bater nos professores com a ajuda dos pais mostra bem a supremacia da psicologia sobre a pedagogia. Nem os filhos aprendem, nem os pais crescem, nem os professores percebem nada do que está a acontecer porque a sua "psicologia" não funciona... O que torna, isso sim, a sociedade portadora de um problema psicológico grave. E o problema advém do excesso de psicologia em detrimento da inteligência do coração com base na atenção e na curiosidade, entre outras coisas. A psicologia substitui a pedagogia que ensina sobretudo a "ter/dar atenção" e a pensar/ver/sentir com o coração. Assim, andamos nisto e daqui não saímos enquanto as ciências muito "especializadas" lutarem entre si pelo domínio de uma área que devia ser exclusivamente da pedagogia. É mesmo caso para não dizer "A César o que é de César", frase, aliás, da qual nunca gostei. Tornando-se muito mais apropriado dizer "Ao céu o que é do céu". Só assim ele desce. Porque lhe damos peso.

Alow I Win



Primeiro vieram com a história de que me tinham visto aparecer num lugar impossível.
Depois que tinham visto um fantasma qualquer em cima de um palco.
Depois, quando lhes acendi a fogueira com as mãos sem fósforos nem nada começaram aos gritos enraivecidas.
Se tivessem estado atentas teriam visto que já tinha pegado fogo a um ritual exterior anteriormente e que só o tinha feito por ser exterior, se fosse, de facto interior, nem tinha lhe pegado fogo, nem elas quando acendi a fogueira, tinham gritado tanto e chipalhado tanto pelos tempos sucedâneos.
Não se pode abordar as coisas de uma maneira séria porque assim lhes estragamos a brincadeira em que se "embruxam". Pintam muito os olhos de maneira a parecerem mais magnéticas e por dentro pensam que são Isís porque têm de ser antigas. Já lhes disse que o Catolicismo não me atrai, que quanto muito serve para ajudar os sem abrigo ou almas desabrigadas mas elas não querem saber. Não acreditam que sou bruxa. Preferem os feitiços delas aos meus. Só porque não me penso Ísis nem outra deusa qualquer... Ainda lhes tentei explicar que não é preciso sermos deusas para sermos bruxas, mas elas baralham tudo. Se são uma coisa, têm de ser a outra também. Não se ficam pela metade. Para elas sou só metade. Mas a realidade é que chispalharam quando lhes estraguei a brincadeira e levei as coisas a sério. Ainda ardem. E tudo isto só porque não sou deusa nem faço danças à volta da figueira. Se a imaginação é lata nelas, em mim não existe. Nunca imagino nada. Sou demasiado séria e elas não gostam. A imaginação é toda delas. A mim não me foi dado o dom de criar nada. Sou uma espécie de funcionária pública ao serviço do Estado Geral do que Há-de Ser. Se me pedem para acender uma figueira, acendo-a. Não imagino que a acendo. Bem, na verdade, às vezes imagino que me aceitam como sou, na minha pequenez. Na minha visível ausência de divindade a trespassar-me o corpo e os gestos. Isso é para elas. As deusas. São muitas. E videntes. E brincalhonas. Calhou-me este eterno carimbar de formulários à entrada do Olimpo. Nunca entrei nele. Nunca fui convidada e sou educada. Não vou agora entrar assim por ali, sem mais nem menos, e incomodar deuses tão ocupados. Saio às cinco e depois vou ver a telenovela da noite. Será que a Rita vai casar com o Armando? É isso que me mantém presa à história que começa sempre já muito depois do jantar. Janto cedo. A novela está bem feita. Com bons actores e bons planos das paisagens que habitam. Mas a minha opinião não conta para nada. Na verdade, em matéria nenhuma. Só me incomoda que não vejam isso. Não saibam isso. Se a minha opinião mudasse, a telenovela continuava na mesma o seu caminho. Com altos e baixos, encontros e desencontros. E amanhã iria na mesma carimbar formulários à porta do Olimpo e talvez até, de vez em quando, sonhar como será lá dentro. Como se vestem, que decoração fizeram... Mas sou uma bruxa pela metade. É essa a minha condição. Levo tudo a sério demais. Talvez até pense demaisado nas coisas mas sem chegar a conseguir ser uma deusa. Elas não me perdoam isso. Queriam que eu fosse como elas, que não levasse tudo tão a sério e não pegasse fogo às coisas. Mesmo sem querer. Ou por querer, não sei.

O triângulo

(Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)

A arte obriga à intimidade, e nela, ir desvendando o labirinto do que somos. A relação íntima é o maior mistério do discipulado. Quer seja com a própria arte como mestre, quer seja com o mestre da arte. Essa relação está para além do tempo e do espaço. Se houve segredo que o Oriente guardou, e talvez ainda guarde, é esse. Mas também aqui, neste fim do mundo onde a terra finda, como último castelo do Ocidente, o mistério dessa relação triangular (arte-mestre-discipulo) subsiste. Como é transcendente, é inacessível, excepto em certos tempos e em certas gentes.