sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A dádiva das tardes...




Coisas, tantas que por nós passam,
e não regressam envoltas em luz,
e não regressam em sinfonias,
e não regressam nem frágeis,
nem com um olhar que é longe...
Nem nos dedos simples de uma mulher.
E não regressam senão nos braços
de um Deus que é futuro demais,
longura de mais, sonho demais...
Há coisas que para sempre ficam,
nas nuvens do que são,
na eterna missão por cumprir,
num eterno devir, devendo-nos o seu ser.

E passamos, continuamos a passar,
rios intransponíveis,
rios dos desvios da nossa plenitude...
E no oceano, ao longe, só aí,
na bênção do pôr-do-sol,
nos encontramos no mesmo olhar,
em tardes irreflectidas,
dadas, vindas,
como a verdade viva
Suspensa no nosso mar.


(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Palavras recolhidas




Escrever é uma passagem pela rua do desvio do destino como pensar é uma passagem pela mesma rua da alma. Nada obriga a uma coisa ou a outra.  Que o mundo se vislumbre por palavras e que as searas se agitem, qual a diferença fundamental? Se é permitida à consciência o todo que é o todo que percepcionamos e que se bebam as águas ardentes enquanto o sol ferve e o mar se agita, qual a diferença? Que diferença há no mundo ou fica no mundo com as palavras brotando em fonte? Que sustentam ou inventam elas que já não esteja sustentado ou inventado? Que diferença há entre nós e as palavras? Ou semelhança já que brotam da fonte que está antes de nós sequer existirmos... Há um universo ritual nas palavras que em determinadas primaveras permitem a sua recolha, como orvalhos... sem que haja diferença entre o alto e o baixo. Com que instantes, eles, os instantes,  únicos, se nos acercam elas de nós? Há madressilvas nos campos e outras tantas palavras, e há as águias que tudo contemplam e tendem a voar sobre os vales para se sentirem ainda mais altas... como os poetas...
Todo o mundo é uma percepção possível de criação, ou assim julgamos nós. Julgamos que criamos mas limitamo-nos, no nomadismo que é da alma, a recolher as florestas de encantos que se oferecem à nossa passagem. Assintomáticos num a-priori que desconhecemos possuímos todos os sintomas da graciosa doença que é estar vivo... as palavras são um caminho como qualquer outro... só que mais vivo pois obrigam ao silêncio e a uma consciência em tendente desmascaramento das raízes e, em simultâneo, perpetuando os troncos das árvores no seu alongamento. A escrita é um alongamento do mundo, a árvore que tende a crescer até ao infinito... que diferença há, nesta anomalia totalmente inconsistente com a normalidade da presença... Ah, mas como?! Se as palavras se desviam do tempo e o aprisionam e o negando na forma e na virtude o transmutam, deveras... e nessa negação se tornam nele... 
Autenticamente, nem palavras há. Autenticamente nem são necessárias  sequer, autenticamente nem deveríamos falar, nem tornar as palavras coisas. Em virtude das características do ser, só lhe resta estar presente para que seja... o resto, é uma anomalia, uns chamam-lhe missão, outros, castigo... mas sempre algo que transborda do ser que não necessita de palavras por estar em todas elas... quase como num mito antes de ser escrito, antes de ser dito, antes de ser actualizado no jornal da mera existência. Só tomamos a consciência do pré-existente que somos diante do ser outro que encontramos. É no espaço vazio, entre um e outro, que encontramos o ser que somos e todas as palavras possíveis antes de as serem. E todas as palavras que deixámos existir antes dessa consciência adquirem o significado de uma história lida sob uma outra luz e sob essa luz, tudo o que acrescentámos ao mundo, retirámos de nós... desse núcleo vivo, algures situado tão acima ou tão adentro que se torna invisível e indizível ao todo que nos foi dado. E nem a explicação pelo mito o traduz na plenitude. Um mito é parte de uma interrogação maior.


(Cynthia Guimarães Taveira)

Jardim


 
Poderia ser que o olhar
Fosse ainda mais para longe
E te tocasse no horizonte
Poderia ser que o sorriso fosse
Multiplicado pelos instantes
E te desvendasse o teu
Poderia se que as palavras
Fossem todas elas concentradas
Em livros, em prateleiras,
Infinitas na biblioteca
Elevada em degraus
Poderiam ser tantas coisas
Concentradas num único ponto
Jardim que nos percorre
E do qual somos a fonte
Brotando em água fresca
Onde todas as simetrias
Não são pensadas
E onde toda a dança
Solta do nascimento das flores
É da ordem das estrelas
Formando tudo o que quisesses
Entre a dúvida se os deuses
Estão implicitos nelas
Ou se as viagens
Estão inscritas nelas
Ou se ambos vivem e se geram
Enquanto o jardim passa por nós
Na transparência do que somos
Sem alfa ou ómega
No eterno movimento
Do que vamos sendo
Em espíritos unidos
Por aqueles por quem
O jardim passa
Deixando o jardim vivo
Àqueles porque quem
O jardim sempre esperou.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 26 de outubro de 2014

Uma das Heranças de Camões



Ouvido ontem, de um amigo de um amigo. Conversas de café. Conversas daquelas que passam, não têm importância nenhuma. Elas são como bastidores, elas são como o sub-reptício das palestras da ribalta, elas não têm holofotes, nem microfones e escondem mágoas. Palavras ditas mais do que em segredo, em solidão. Uma solidão partilhada por entre várias solidões como um vento que passa. E ainda assim, mesmo sem importância nenhuma, sustêm o mundo, são a forma de consciência exemplar que se esconde. São um sorriso entre amigos. São experiencias e, às vezes, pré-experiências. Surgem de aqui e dali, de amigos de amigos que "trazem outros amigos também". São essas conversas o sustento da alma. São elas que sentem a falta da alma do país e se queixam, porque afinal, ainda tem o país uma alma... seja lá o que isso for: eterno mistério da nebulosa que cobre o planeta, dando-lhe as nuvens e purificando a água... Dizia esse amigo, porque "amigo do meu amigo, meu amigo é...", - provérbio lindíssimo não sei se apenas português mas muito usado por nós - e tão difícil de colocar em prática:
"A inveja e os defeitos dos portugueses são prejudiciais à economia do país". Aquilo que chamamos de virtudes e que os mais conscientes entendem ser o lugar por onde se move o espírito e que os mais conscientes, de entre os conscientes entendem ser ele, o espírito, a vanguarda do tempo e que, por isso, sua luz brilha na síntese de todas as cores... aquilo a que chamamos virtudes e que mais nada são senão as acções da alma cuja genética condicionante pode ser alterada pela prática da consciência diária (assunto mais complicado do que uma mera psicologia em moda - senão todas as psicologias  - cujo vicio determinista fica submerso numa cura aparente), essas virtudes contêm, naturalmente, o seu oposto e, de uma forma, ainda mais menos enganadora, podem ser entendidas como características na paleta dos impulsos do coração, não necessariamente opostas de qualquer coisa, mas características em si...
A cultura de um povo passa por fases, não é estática e cristalizável como nos fizeram crer os antropólogos positivistas nascidos no século XIX e aos quais somos tentados a voltar, de vez em quando, quando a afirmação cultural se torna mais periclitante face à mistura entre sedução e imposição do que vem de fora, tendência que é um movimento de resposta natural de defesa, aliás, mas que deverá conter em si a crítica (autocritica) necessária para que se possa ver também, nessa cultura ideal e cristalizada, os defeitos que acompanham o povo e começaram a acompanhar a partir de determinada altura.
Todo o regresso à História, esse movimento de "se conhecer o passado para melhor se entender o presente", a partir de determinado ponto da viajem da consciência, quando a própria viagem passa a ser  consciência, torna-se a de tentativa de correcção. Não é uma necessidade de "ambição" o que está por detrás desta atitude, é apenas o processo natural que a natureza utiliza no seu desenvolvimento  tendente para a transfiguração sendo que esta não implica o desaparecimento completo da matéria, ao contrário do que um ideal excessivamente platónico  formatou  nalguma cultura ocidental.
Nestas conversas de café... sem importância nenhuma, quantas vezes, estas solidões, paradoxalmente partilhadas, às vezes até com a ajuda de um copo de vinho como "desbloqueante", apenas...  nos revelam o erro, a tristeza dele, a consciencialização dele, mas também a esperança de correcção.
Camões não deixou cair a palavra no final dos Lusíadas "sem querer", inscrita na grande atitude poética que é a verdade do que somos como povo, esta obra deixa um testamento e um aviso: a Inveja como a mãe dos defeitos que devíamos corrigir, talvez em primeiro lugar; sem ela poderá ser que nos seja devolvido o espírito vivaz e vivificador, no impulso que falta a este país para que se cumpra em descrição, amor e harmonia.
A inconsciência dos políticos que têm atravessado os governos ao longo das últimas décadas, a total falta de conhecimento da nossa História e da nossa constituição psíquica e física, conduziram-nos a um lamaçal do qual só é possível sair por via do espírito, e isso, só se faz, encarando a nossa alma, face a face, com toda a sinceridade, mas tanta dela é exigida, que pelo excesso se torna outra palavra: transparência. Só na Transparência a luz do espírito brilha, a verdadeira eucarística, que como sabemos, é uma comunhão na qual se partilha o pão entre com(pão)nheiros, contida no número da própria palavra: 8 consoantes e 5 vogais: o Homem inscrito no Infinito.

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A arte do improviso




No divagar absurdo pelos quais são compostos certos escritos em papel, na actual aceleração dos tempos, concomitantes de certezas absolutistas e várias, na corrida desenfreada de um positivar como coisa verdadeira, abrangendo os tempos e as histórias, no imediatismo chocante da afirmação concreta como critica impar, porque sem par, ou paralelo sequer ou sem contraponto, sem medida que se lhe acrescente, nisto tudo, neste mar envolto de nuvens e agitações profundas no qual os mastros mais parecem sustentáculos imediatistas de convicções que definem e delimitam o ser e toda a imaginação que potencialmente nele vigora, a desenvoltura do vero movimento criativo é colocado numa espécie de cave cujo movimento, em pequenos soluços, como micro-tremores de terra, são sentidos no meio da invalidez da dimensão humana.

Há uma trágica confusão entre o que se é e o que se escreve ou cria quando o que se é se vai sendo, na eterna viagem, mesmo que camuflada de uma casa aburguesada e bem posta, com alicerces fixos em raízes que são apenas a meia esfera iluminada da fonte da criação.  Há uma desmedida violência na herança de uma cultura toda ela baseada no julgamento, que é sempre final (nem necessitamos do final... agora), o que compromete o futuro tornando-o inexistente, na variedade do que possa ser, devido a uma aparente auto-suficiência, na qual, no mundo da criação segue as passadas das teses académicas: cada obra é igual ao ser que a compõe ficando para sempre justificada na sua moldura de notas de rodapé culturais, na bibliografia que (embora sempre parcial) compõe a sua própria história, numa cadeia lógica de acontecimentos que conduziram o ser à obra, acontecimentos fixados no tempo, como datas-prova de uma construção morosa e derradeira, ficando fechados, a obra e o ser em si mesmos, o que produz a sensação de não haver espaço para o que vulgarmente se chama inspiração.

A exigência de regulamentação da arte dentro do quadro das ideologias que, atentemos, como essência, são sempre a mesma no sentido em que promovem a existência de fronteiras que em princípio nem existem... (falo evidentemente do espaço de criação), impõe-se como condição muito parecida àquela da manipulação genética para o apuramento da raça... quando, em termos humanos, tal coisa nem existe. É na urgência do medo e do pânico nascidos do convívio com todo o artificialismo quer tecnológico, quer humano que vigora e ,estando este entrelaçado entre o medo da morte e o sentimento de culpa exacerbado, talhado cuidadosamente na cultura ocidental, que se produzem (a produção não é o mesmo que criação...) e nascem, actualmente, as diversas correntes artístico-ideológicas remetendo estas numa espécie de monotonia que já vai ganhando o epíteto de clássica... ou para a ausência de total criatividade plasmada na actividade criativa como indústria, ou, por via da sua ausência, para inoperância da própria imaginação como instrumento, verdadeiramente capaz, da actividade transmutadora. Tudo isto são sintomas, não de agora, mas de há muito, e não raras vezes a verdadeira actividade criadora sofre, por vias um pouco inexplicáveis, o mesmo percurso que a actividade espiritual, sendo-lhe incrustada , no entanto, muito mais as penas que lhe são próprias do que as benesses de uma “iluminação” capaz de tomar o seu lugar no tempo que lhe é devido.

É vivendo neste tipo de escorreita e infeliz visão tendenciosa das coisas, como que se a um regresso a um maniqueísmo camuflado se tratasse (confundindo e cegando, apenas...) que se torna cada vez mais urgente o improviso, como dom de alcance do movimento temporal. Descontextualizado assim de qualquer apego ideológico, o artista, outra espécie de homem, mas não de raça, poderá, mesmo que em termos invisíveis participar na desenvoltura da vida e na sua perpetuação; reunindo, a arte do improviso, dois tempos, a saber: passado e presente, colocando-se, consequentemente, em posição ideal para o terceiro tempo futuro e ainda uma quarta dimensão lhe é acrescentada porque, de tal modo, solta e livre, permite a operância de uma espécie de "abertura", porque imediatista ao livre fluir de influencias transcendentes. É só nessa, perspectiva, e apenas quando ela é integrada em consciência, que será permitida e a todos os que falem a mesma linguagem (e aqui as artes plásticas e a escrita podem aproximar-se da universalidade permitida em maior abundância pela música), nem que seja apenas num momento, uma espécie de cumplicidade extra-forma, extra-formatada porque ausente de conceitos integrados em vias dirigistas. Isto é sabido há séculos, por exemplo e como espelho desta sabedoria, a escrita dos caracteres cursivos do oriente. Cá, neste ocidente esquecido de si, encontrar-se ainda como linguagem camuflada tanto pela castração que lhe querem impor como pela cegueira de a tornar coisa hermética, fechada, isolada, como câmara secreta de um esoterismo forçado em si mesmo. O verdadeiro esoterismo no qual navegam estes barcos-improviso, ( também encontrados na pintura de ícones, nos quais os olhos são sempre a última coisa a ser pintada, como se aí, toda a mensagem do ícone fosse concentrada num único momento, sem emenda, no próprio simbolismo que contém: centro do centro...) encontra-se à vista de todos... mas apenas alguns se dão conta de tais fenómenos... é nesse sentido que, quem co-participa em tal género criativo, foge aos ditames das regras, por mais que se tentem mecanismos de manipulação, quer venha esta do "baixo", querendo com isto dizer, da pura matéria visível, ou de um invisível inconsciente,  totalmente inconsciente, sem luz do consciente, fenómenos aos quais a maior parte de humanidade está sujeita e que utilizam, exactamente, as vias ideológicas como tentativa de aprisionamento das reais capacidades humanas, motores imóveis, necessários para a mudança de ciclo que se avizinha.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Do barco à caravela


 
Barquito, casca de noz
Tua graça imensa
Não compensa
A vil vontade dos ventos
 
Barquito, frágil
Ao barlavento
Perdido andas
Na rosa dos ventos
Nem norte, nem sul
São as absolutas margens
Do horizonte transbordante
Do outro lado que não sentes
 
Barquito vazio
Sem ninguém que seja alguém
Andas hoje e além
Recebendo das nuvens
As chuvas várias
Desde as finas gotas
Às outras, maiores,
E menos soltas...
 
Barquito simples demais
Balanças em vertigem e abundância
Dia a dia, com ontem e depois
Se de fora do tempo te pudesses ver
E a essas ondas servindo-te o mudar
Na sensação de vontade e boa esperança
Em alvas velas se ergueria teu sorriso
tocando em sua curva a orla
de uma outra despedida...

Nada na tua solidão, barquito só
É teu e único crer
Se dos ventos e marés
És deles só um ter
Enche o barco d’alma
Enche o barco de ti
Fa-lo transbordar
Para além daqui
 
Três vezes rodará o mostrengo
Três vezes a resposta darás
A dos remos, a do leme
E a das velas que o tempo teme...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 19 de outubro de 2014

Tao e tu...



A verdade do teu sorriso,
acompanhando as curvas
das elevações dos montes,
o brilho do teu olhar,
acompanhando o sol...
são predizeres das paisagens
com as quais já sonhaste.
Ver-te no caminho,
é estar no caminho.
O Tao sem fim na tua
inquieta presença
por ser demais
e transbordante
o brilho da tua verdade....
 

(Cynthia Guimarães Taveira)

Tantas e tão variadas cousas


A variedade infinita de almas não iguala a variedade das pequenas centelhas de verdade que compõe cada uma, e cada centelha de verdade que compõe cada uma, não igual a variedade que compõem os trajos de pudor com os quais estas centelhas se cobrem num disfarce... todo o jardim humano que nos cerca é um imenso teatro de versos, reversos e contraversos. Entre tal e tal movimento há um equlibrío parecido com o da natureza.

(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 18 de outubro de 2014

Rotunda forma

(dedicado a Fernando Pessoa)
 
Escadas, degraus
Níveis, andares,
Montanhas, vales,
Costas e arribas
Serpentes sem desvios
Desvios e serpentes a eito
Ícaros, setas
Todos rectas
Todos certos
De recuos e avanços
Altos e baixos
E a longa esperança...
Todos correctos
Enquanto a estrela
Gira e dança
Ponta a ponta
Em quartos de lua
Revela, a outra face
da divina esfera
Rodopia, e balança
A estrela do mar
Lembra a pomba
Abre as asas em leque
Rectas várias a compõem
E em raios múltiplos vibra
Em roda una se agita e vem
De ramos verdes
Pelas águas e ruínas
Pelos caminhos cria e recria
A verdade que o coração tem
Todo o vaso tem asas
Pela quais se pega e se bebe
E na rotunda forma
Atenta e breve
Inúmera e descreve
As palavras dos passos
A música dos voos
O espírito das ausências
A voz das presenças
As viagens das crenças
Na língua-rainha que de tudo é mãe

 
(Cynthia Guimarães Taveira)          


sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Floresta


 
Manter a floresta vazia
Para que as árvores possam dançar
Nem nos ocultarmos sequer
Mante-la longe
Para que a possamos adivinhar
E ela dança, dança
Em braços de folhas
Em flores dispersas
Em ventos-valsas
No limite do que a imaginação alcança


(Cynthia Guimarães Taveira)

O lugar...



Almejas o céu
sem que mudes nada na terra
sem que alteres a letra de uma canção
nem que seja por engano...

Almejas o céu
chocando-te contra ser a ser
em vez de contra a multidão
de cegas passadas e mentes cerradas

Almejas o céu
porque ele está próximo mesmo dentro
da imagem talhada
e dos gesto pensado e detalhado
no xadrez pesado em que te encontras

Almejas o céu
pelas certezas afectadas,
pelos vãos das escadas
a que te agarras em subida esforçada
sem ver que não há degraus

Almejas o céu
pela cópia sagrada, da virtude exacta
enquanto te espraias na praia errada
onde há céu à noite mas sem estrelas agitadas
apenas os sonhos teus do dia passado

Almejas o céu
em tristes fados cantados à beira da estrada
de alma inflamada, em queixume que não se encerra
fugindo de apupos incontornáveis, e ficas
numa sombra sombria ao candeeiro encostada

Almejas o céu
em púlpitos em praça em leque abertos
em trajes alvos e de pombas adornadas
no jeito doce de quem doces dá aos ausentes da jornada
e sentes a glória do mundo em vida encontrada

Sortes há outras, de cujos véus infelizes vão caindo
como tristezas vãs diluídas nas pedras
e outras angústias de novo encontradas
sem que o céu não sejam um lamento
um peso, um grave aceno, um tormento, uma fuga contra o vento
do alto das esferas desejar, aquela praia, aquele lugar
onde não se sabe, nem se tem certeza
nem sequer se a praia é o lugar...

(Cynthia Guimarães Taveira)







quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Quem é?



Quem é que foi abandonado à sorte
num semi-berço de verga,
atirado, não ao rio, mas ao mar,
Num balanço de imprevisível aconchego,
ou das coisas que fazem parte
Da ordem da tempestade?
Quem é que nasce segunda vez,
e não sabe que o faz...?
Quem é que nessa pequena barca,
conhece a morte a navegar,
e do horizonte, retira e prova
O sabor de um dia novo?
Quem é que regressando, pára,
nas doiradas areias... lá deixado,
por onda finas, de espuma em renda?
Quem é que lá descobre, nas palavras,
o alimento das eras e a fuga das trevas?
Quem para sempre fica em terra,
balançando como o mar?

É o poeta, é o poeta, quando
Em português se torna e entorna,
(na pátria donde nunca se apartou)
As palavras das estrelas, do sol e do mar.


(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Até as ilhas...




Invade-me a alma
Um sentimento do norte
Belas e flamejantes espadas
Encontram o coração do sul
Escolher cima ou baixo é golpe mortal
Abrindo o nativo corpo esguio
sem o pôr ou nascer do sol
Congratulo-o pelas estradas e suas vinhas
E brindo a isso cruzando sabores
Se se bebe um copo nortenho
Perde-se meio dele
No Alentejo deserto que o preenche
Rir a bom rir com tal espírito
Saudades de cada ponta
Se a mão esquerda se ergue e aponta
A direita vai e encontra
Tentar o impossível é desviar caminho
De tantos e tantos que foram
Pelo mar da esperança em repouso
Aí já não esperavam
Sabiam antes do total saudoso
E na distancia encontraram
a distancia de trajos reais vestida
E quando ao longe se brinda e diz
Vem o soberano inteiro sem ponta solta
Até as ilhas afastadas em suas brumas escondidas
se aproximam da festa intima
Entram na arcana dança lusa do não diz que vai
Mas vai e volta na eterna rota que roda viva!

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Lótus


 
Aqueço-me nas palmas dos teus pensamentos
Ouço-te falar em minuciosas canções à vida
Desloco-me no espaço das ideias na tentativa vã
De uma posição confortável
Depois, esqueço-me, e as mãos cedem, deixo-me estar
Ouço-te apenas, porque o som da tua voz é um poema
Embalo-me no teu embalo
E penso nas idades do homem, se serão seguidas,
Comprometidas com o tempo
Ou se, na vida das gentes há flores de lótus eclodindo
Para além da investidura das horas...
Súbitas, abrindo e desaparecendo à luz das viagens
Decididas à última hora, no limite dos ciclos invisíveis
Vindas a qualquer momento, para além dos anos
E do lógico desenrolo do papiro do pensamento

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 14 de outubro de 2014

A memória




Há uma solidão na memória
A solidão do nosso ponto de vista
O canto da sala secreto
Local de observação muito nosso

Há uma companhia na memória
A companhia sem ponto de vista
Toda a casa e por completo
Local de observação todo do Espírito

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

L'amour


Amor é uma conversa sem fim com aquele que é totalmente diferente de nós. Haverá coisa mais parecida com a relação que temos com Deus? Tal como dele guardamos a imagem e semelhança sendo que o resto é conversa e uma conversa.


(Cynthia Guimarães Taveira)

No alto mar



Foi esta ruptura absurda,
Vinda não sei de que mar,
que obriga à separação,
que abriga a imensidão.

Foi esta história simples,
de acontecer a arfante fuga
do imenso espelho do ser,
na verdade insubmissa e cruel,
de nada poder contra as palavras,
esvaziando-me e enchendo-me o ser.

Foi esta incapacidade de não conhecer
outra coisa senão estados do mar
que são só vagas de palavras a falar.

Foi esta a longura sem distancia,
este momento de vingança ,
em que um céu maior que o ser,
o invade e o alcança,
em mortificação transparente
de diferentes tempos a acontecer.

Não sei de que mar, de que humor, de que deus,
de que norte ou desnorte veio o vento...
Este remoinho de sóis,  esta arte sem saber,
quem dera a voz, dos trovões, dos mares
Pudesse dizer, na sua pura firmeza,
ser a nave puro espírito, 
adormecendo e aconchegando
a febre do que é existir em palavras vivas

Nada, nada nem ninguém,
sabe o que o Verbo, pode e faz acontecer...
E de que modo se move por entre as frestas da alma,
e de que modo canta nos intervalos das veias,
e de que modo faz as flores nascer em alto mar,
E como se solta em pombas rápidas,
E de que modo é ele mesmo sempre a nascer...


(Cynthia Guimarães Taveira)

 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Oleiro


Conheci um velho oleiro
Que girava com o barro
Na roda do eterno mundo
Cada dedo sulcava o destino
Cada medo era abismo conhecido
Girava o barro e o oleiro nele
Deixava na ânfora animada
Parte do mistério para sempre moldado
Braços e pernas em ritmo marcado
Sofrem na matéria o efeito desejado
À parede o barro não atirava
Pois a sorte não se encontrava
Nem no destino, nem no pensamento
Apenas na terra pela terra dada
E nessa roda-viva, de sonho e sujidade
A ânfora crescia em mestria e idade
Na história que os homens são
E no espirito irrequieto da alteridade
Brilhava o sol da manhã que cedo entardecida
A roda girava no fundo que é mais fundo
Recuperava cacos de pó dos deuses que foram
Das avenidas que retornavam
De ânforas que em novas se tornavam
Conheci um velho oleiro
Mais velho que o mundo
E dançava na História em jeito de novo ser
Por dentro e por fora dessa ânfora
Guardiã da frescura de novos segredos
E daqueles apenas que a História quer


(Cynthia Guimarães Taveira)

Passo




Há quem esteja condenado a viver no Inferno que criou e há quem esteja condenado a viver no fogo da criação: a diferença é um passo de generosidade...
 
(Cynthia Guimarães Taveira)


Ela e elas...


As saudades são a materialização da Saudade.... o que as separa é esse “S” que é marca portuguesa... dupla espiral que obriga à saída e retorno a si. É a diferença entre a serpente e o dragão... nas asas... é o movimento das Ophiussas que marcam o solo terrestre, sua saída pelo mar, sua aquisição de asas lá... pelas velas que olham os astros, sua mudança de condição assim, contendo, no entanto, e sempre, a serpente interna que de si sai e a si regressa em movimento perpétuo... daí, o “saber de experiência feito”, a não negação da memória, a procura da sua vivificação e sublimação, enfim, quando se dá  regresso a si...  enquanto outra viagem paralela é feita, pelo mar do mundo e no qual, sem abóbada celeste, não seria possível... sendo que para se entender a linguagem das estrelas é necessária a aquisição de asas... científica até ao limite do imprevisível astróide... nunca, totalmente exacta.

Sebastos está amaldiçoado pela materialização absurda da Saudade e... no entanto... tal materialização absurda da Saudade é a sua própria evocação. Em comum, têm as saudades e a saudade a incapacidade de o serem sem conhecerem aquilo para que nasceram... não há nem saudades nem saudade sem um pré-conhecimento... quando nos afastamos desta verdade essencial que está na raiz destas palavras, afastamo-nos de Portugal e daqueles que Portugal contém. Não é um produto puro da imaginação, a Saudade, tal como as saudades não o são... quando o são, não são nem Saudade, nem saudades... são a noite. Às vezes encerramo-nos na noite procurando lá as saudades e as saudade e... no entanto, só em pleno dia elas se manifestam: a primeira iluminada pelo sol, a segunda iluminada por todas as estrelas conhecidas e desconhecidas. Há um rigor atmosférico na portugalidade... um rigor que, porém, nasce e vive nas vicissitudes da alma... à qual o anjo custódio está atento.

(Cynthia Guimarães Taveira)

A aproximação das esferas



Lembramo-nos uns aos outros
Ainda que seja por um olhar
A maior parte de nós,
desconhecidos de nós próprios,
Num vagar de um café quente,
Reconhecemos distantes olhares
Como que procurando o sentido
Que nos disseram sem palavras
Que a vida proclamou ter...
 
Com outros, mais conhecidos de nós próprios,
A quem sorrimos a partir do balcão
Partilhamos a filosofia perpétua desse olhar...
E quantas vezes esses paralelos olhares
Se encontram no horizonte...
numa metafísica que já não nos separa?

 
(Cynthia Guimarães Taveira

domingo, 12 de outubro de 2014

Imanente transcendente manifestado



Há nas frestas das talhadas pedras
A sede verde, persistente e natural
Por onde, no artifício essencial da arte
Transpõe e se move um padrão musical
Em dança que é todo o momento universal
Entre a rápida mas inerte nascença da pedra
E o lento despertar de um verde que não espera
Há um espaço de subtil toque em que uma e outra são
Mistura sublime inaugurando o portal de uma nova esfera
Raros são esses agitares numa mesma e mais do que esperança
Sem eles não haveria nem o mito, nem uma terra por circunstância

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Chuva e seus efeitos...



Quando o tempo nos separa
Do real que somos
A dança dos astros é mais visível
No momento em que a saudade
aparecendo, nos parece ainda mais infinita...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Manifesto Futuro da Língua Portuguesa



A língua portuguesa é a língua do bom dia.
Quando se diz “bom dia”, lá está o desejo
Porque há mornings e jours, e há dias...
Os dias que dizemos são nossos
Os dias que desejamos bons, são nossos
A responsablidade com que a dizemos, é nossa
O peso ou não que damos às palavras é nosso
Não é Angola que é nossa...
Não dizemos jours, nem mornings
Porque não somos jours nem mornings
A palavra é o que nos define
Ainda que não signifique nada
É esse vazio insignificante que significa tudo
É a diferença entre existir uma pátria ou não
Agora alarguemos esse olhar para os poetas
Para o que eles disseram
e para o que vocês dizem, agora
poetas-presenças do presente...
E o dia passa a ser vasto, quase sem fim
Como um horizonte mágico estendido além-cosmos,
Um compasso desenhando a ilimitada esfera... armilar
E vejam como nos aconteceu na poesia inteira
A grande e perene humanidade, na ponta da caneta
no cabo do mundo que é o nosso olhar...


(Cynthia Guimarães Taveira)

A revista cor de rosa e a rosa...




Há no gosto pela polémica um fundo que ânsia pelo I ching.  Saem à janela vizinhos curiosos sem que saiam de outra maneira nem para ver a nova rosa que brotou no jardim. E para poderem escolher. Porque escolhendo sentem que são... saem pela manhã, aos primeiros gritos e de olhos atentos, curiosos, procuram a escolha que os define. A rosa não passa despercebida pelo sol que lhe dá cor.


(Cynthia Guimarães Taveira)

Manhã




Não sei se escrevo pela manhã
Para desabafar a noite que não soube
Como se cada palavra fosse a luz
Dada às sombras do mundo
Ao iluminar o rosto dele
As suas casas, o seu mar em desenrolo
As suas esperanças em verdes aflorares
Ilumino o rosto da face branca do livro
Que tão fechado, ausente, incluso esteve
Nos sonhos de quem não sabe
As manhãs são palavras escritas
A consciência escolhida de cada dia
E de novo o silêncio as recolhe
Em sol posto no mar da noite
Todo o fim é princípio
Só nos intervalos há eternidade
Em palavras, gestos, aconteceres
Que compõem o dom da verdade

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

 


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A verdadeira história da Quinta da Regaleira



Embora sejas uma telenovela mexicana
Num curioso sentido banal
Reconheço em ti o esplendor
De uma história espiritual


(Cynthia Guimarães Taveira)

Ai, Platão, Platão




Ah, Platão, Platão...
Que fixaste os nossos sonhos
Em arquétipos
E deduziste que a terra só se encontra
Na exatidão da esfera
E de todos os sólidos sublimados...
Ah, Platão, Platão...
Que fizeste dos nossos sonhos a exigência de um presente
E fizeste dos deuses desculpas
E depois fizeste deles garfos e facas
Que servem para comer ideias
E depois fizeste do movimento infinito das estrelas
A fixidez desse próprio movimento infinito das estrelas
Estancaste o nosso sangue numa promessa
Platão que desentronizaste os profetas e os substituiste pelas esferas
Em cujo tempo não alcanças
A imensidão do absoluto que aprisionas
Ah, Platão, Platão que tomaste a filosofia
Pela bem-aventurança
E nos desgraçaste a todos na nossa arritmia humana
E que nos deixaste a ideia em vez da esperança
Ah, Platão, Platão
Que mataste Alexandre à nascença
E fizeste da pirâmide a liderança
E dos contornos do mundo a nitidez do erro
Platão das mil cicutas que viste beber
E da ordem aparente do mundo,
Nem viste a presença de uma mulher
No perfume dos manjares
Atravessando os teus banquetes
De sedutoras ideias, de sonhos captáveis
Enquanto esse aroma te inebriava
Na tua própria vertigem
E desaparecia pela fresta da porta
Mais livre que o vento,
Mais livre que o teu pensamento
Diluído nessa poeira das estrelas
de onde brotaste e te esqueceste
E para onde voltaste, enfim,
agora, e só nessa hora, em que morreste
com a memória, finalmente, cheia.


(Cynthia Guimarães Taveira)



Acto




O fôlego da prosa é igual à vertigem do pensamento...
O fôlego da poesia é igual ao momento de um novo dia.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)


O tesouro





Anda! Vê!
Aquela gota de água transparente,
suspensa na flor
colhida em plena neve.
Corre por estes campos,
Nem verdes são de tão translúcidos...
Ergue-se a montanha a nossos olhos
Claríssima, tão clara, tão fina pelicula,
que do outro lado se vê
Vem! Porque te ris assim tão absolutamente?
Limpidamente clarificas os teus passos...
Sem que te dês conta sequer...
E falas-me de pirâmides de cristal,
Só por te lembrares delas!
Assim tão dispostas no universo...
Anda! Vê! Como transluzente é esse caminho
Aquele que tão poucos poetas da vida
Souberam percorrer, andando sob águas límpidas
Libertos do Inverno que é só frio...
 
Ninguém é como tu
Ninguém sabe como tu
Ninguém é tão voraz na veracidade
Ninguém é a certeza como tu
Ninguém é a verdade como tu
Ninguém conta a História como tu
Até à raiz do alto, até à via láctea
Até e de novo ao ovo
Até não haver diferença entre o que rimos
Até não ser diferente o que vês
Até que possa ser o abismo da fúria que é a vida
Até que se sai, se sai do exame lúcido da terra
 
És o tesouro do mundo
O mais bem guardado
O mais escondido
O mais insubmisso
Todo o resto do mundo
É um véu em desejo de luz
Sem o saber ser...
 
E Ergo-te acima de mim
Meu puro cristal, de puro calor,
de puro amor

E só assim, meu amor,
Só assim, só tão dificlmente assim,
Não terás de escalar a montanha
 
Ela curvar-se-á, naturalmente,  para ti.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Desvirtudes

Há uma solidão desembargada
Pela solidão adentro
Não te vejo, não te toco
Apenas exalo o tempo
Se há sede do inconveniente
Ela é tanto ou mais do que o impossível
Ao ponto de tudo parecer impossível
Como é impossível que haja felicidade
Numa gruta fechada pelo mar
Há sempre um sonho que não cumpro
E mais outro que se acumula
São destroços que nem chegam a ser tempo
São nuvens que nem se chegam a formar
E se nem a noção do querer ser tudo
Vem preencher o possível sonho...
Se nem a carruagem pára na curva da estrada
Onde sempre espero que pare
Onde vejo a chuva cair sem que a veja já
E o sol levantado esquece-se da hora em que está
Há sempre uma possivel loucura de não se ser louco
A esperança sem fortuna e nem provas que exista sequer
Nada é mais vago do que um sonho incerto
Nada é mais contido do que a voz que nunca canta
Ou que um coração que nunca se encontra
Nada é mais exacto do que ter por certeza a ilusão
E por mentira a constante capacidade de a ver
Vestida de verdade e a rigor
Ergo taças ao céu e já nem rito é
Nem mito distante que chegue a doer
Não há sonhos inéditos suficientemente lúcidos
Para que se tornem realidade
Todos eles arrastam os sonhos de outros
Desconhecidos demais para serem parte deles
Não há caminho que possa ir dar ao infinito
Sem que toque num caminho outro qualquer
Que incomode e desvirtue o sonho ainda por nascer
Todas as gaivotas têm, mais cedo ou mais tarde
Uma ligeira aflição, um ligeiro medo das alturas
Estranhando-se no voo que não pediram
E toda a terra se abre e lhes aparece como um céu
E já nem distinguem, nem sabem como
Toda a virtude do voo contém a prisão do voo
Há um rumor claro na brancura das suas vestes
E o medo de não se saber regressar...
É a linha do horizonte que prejudica a sonho
Obrigando-o a parar ali, como ponto fixo
E a beleza tentada fica sempre num oriente
Demasiado secreto, demasiado ardente
Demasiado discreto, demasiado incerto
Como a incerteza que nos faz ir, na barca d’alma
Que a revela, que a contém, em limtes definidos
Nítidos no imenso mar onde se colhem todas as luas
sem que as cheguemos a ver e a tocar


(Cynthia Guimarães Taveira)

Perenidade



Garanto-te uma rocha firme junto ao mar
Um turbilhão de ondas
Um gesto rápido de uma gaivota
Garanto-te as idas e vindas do sol
E das nuvens desencontradas
E ainda, junto a tudo isto,
Apenas e junto a tudo isto
Um sorriso meu, breve,
Como uma estrela cadente
Aproximada...


(Cynthia Guimarães Taveira)


terça-feira, 7 de outubro de 2014

Caminho



Provavelmente era quase inevitável o que nos aconteceu, aqui em Portugal, até porque, provavelmente, era inevitável, Portugal. Há, nalguma filosofia perene, uma certa marca nostálgica da contemplação, tendendo até a atribuir um valor maior a este domínio humano do que à acção. Assim fala a voz "perenista" de René Guénon. Já Evola, de sangue e memória latinos, uma espécie de “leopardo” com outras nostalgias, tende a não dissociar o lado “solar” de uma certa acção e daí que haja nele uma opção claramente política... (o que é a política senão acção?). Ambos viviam, porém, num mundo muito próprio: o primeiro, sobretudo racional, parece ter colocado de parte a experiência corporal (até por via da sua fragilidade física), o segundo minado, em grande parte, por um sonho imperial, talvez apressado, e que o conduziu, curiosamente, a uma cadeira de rodas. Os dois esqueceram-se de Portugal, embora haja quem diga que foi um esquecimento propositado, como se não conviesse falar do nosso caso, penso o contrário. Penso que desconheciam por completo o nosso país, a nossa História, os nossos poetas. A época em que viveram estava impregnada com a ideia de “civilização” e os países que giravam em torno desta ideia tendiam a olhar apenas para eles próprios e para os “outros” descivilizados sempre associados à ideia de colónia numa eterna aproximação e distanciamento, entre o fascínio e o resgate da própria cultura europeia, sobretudo, países como a Inglaterra, a Alemanha, a Itália, a França e, em parte, a Espanha. Portugal, nem era civilizado, nem era colónia. Portugal não existia. O fenómeno português é talvez a capacidade quase involuntária da sua descrição. A amnésia dos outros face a nós é espelhada por nós, criando-se assim uma auto-amnésia.

Na transição do século XIX para o século XX, em plena época mundial particularmente conturbada, nasce um poeta, aqui, neste extremo europeu onde, por caminhos tortos (serpentinos), pela situação geográfica (claustrofóbica – mas com saída pelo mar), pela situação económica (desequilibrada desde há séculos), pela situação de “atraso” tecnológico relativamente a outros países europeus e não só, enfim, por um conjunto de circunstâncias várias, desde há séculos, se havia passado de uma condição de “acção”, para uma condição de “contemplação” ou nostalgia. Não creio que o sebastianismo tenha sido o pior que aconteceu a este país, é ele, pelo contrário, que mantém viva a ideia de distância, tão presente já nas cantigas de amigo, e essa ideia de distância é a base de uma vivência contemplativa.

A particularidade deste poeta (embora já se observasse essa tendência em Camões) era o modo e a facilidade com a qual ele parecia encarnar uma língua. Não tendo necessariamente o culto das palavras “arcaicas” como é o caso, por exemplo, de Natália Correia, não se socorrendo da história da língua com vista à criação de um estilo, herdava o poeta, uma certa simplicidade da qual a língua inglesa é capaz (ao ponto de ser considerada uma língua pobre, pela estrutura gramatical quando comparada à francesa ou à portuguesa). Lembro-me de um livro em papel Bíblia existente em casa desde a mais tenra infância que guardava a obra completa de Fernando Pessoa (resgatada até aí), chamava-lhe, a Bíblia de Pessoa por ser em papel Bíblia e o índice começava, quando os poemas não tinham título, pela primeira palavra deles. As palavras eram tão simples que, alguns poemas, começando pela mesma palavra, se aglutinavam no índice, sendo só distinguíveis por algumas palavras restantes que constituíam uma frase.

Sempre me espantou o modo como Fernando Pessoa tratava a língua. Com muito pouco, e parecendo entendê-la até ao âmago, dava-me a nítida sensação, por vezes, que a própria língua parecia fazer sentido por si. Como se existisse uma espécie de essência que “agarrasse” todas as palavras de uma só vez, e que, uma vez manifestada, escrita, falada, dita e, sobretudo, fragmentada na existência, não deixassem as palavras de ter uma espécie de “memória” da essência de onde tinham brotado, acabando inevitavelmente, nos seus desdobramentos, segundos sentidos, sons, articulações possíveis, re-invenções possíveis, etc...  por falar umas para as outras.  As palavras em acção, podemos dizer assim, manifestadas em vida e não no silêncio, remetiam, pelo modo como o poeta as tratava, para um silêncio pré-existente, só possível de acontecer em contemplação. A própria língua parecia querer reunir os opostos. Muito se tem especulado de onde viria tal dom do poeta, para uns, os heterónimos seriam consequências directas de autênticas entidades sobrenaturais que encarnariam o poeta, dando como prova a alteração da letra consoante a personalidade encarnada, para outros, seria  uma capacidade dada por Deus, para outros havia como que um super-desenvolvimento interior, talvez excessivo a tal ponto, que teria sido o poeta obrigado a fragmentar-se numa multidão de olhares sobre o mundo e sobre as coisas, para outros seria qualquer coisa de híbrido, entre entidades sobrenaturais e a própria liberdade do poeta, certamente haveria um compromisso capaz de um “equilíbrio” criativo.  É, no entanto, a língua portuguesa que, no meio de tantas teorias, fica por entender e o modo como, de facto, este poeta conseguia facilmente conjugar de tal forma as palavras que elas nos remetiam inevitavelmente para um sentido, para um sentido racional (diria que quase lógico), sentido esse que, talvez por uma espécie de reacção levaria algumas pessoas a preferirem os poetas mais “românticos” como Teixeira de Pascoaes, menos incisivos e mais suficientemente vagos para que a interpretação fosse feita directamente pelo coração sem qualquer obrigação de atravessar o raciocínio demonstrativo, concreto, a que a poesia pessoana obrigava. É impossível ler Fernando Pessoa sem pensar... ficando o sonho aberto em opção (“sentir sinta quem lê...), ao contrário de Teixeira, cujo embate primeiro é exactamente o do sonho e embora continue a pensar que não se comparam artistas pois não são produtos de fábrica, é possível, no entanto, analisar a nossa própria reacção emocional e intelectual face aos artistas sem que isso  constitua uma espécie de competição entre poetas (se tiver de existir competição entre sensibilidades essa encontra-se exclusivamente dentro de nós e não entre os criadores...).

Já aqui está implícita, nesta pequenina análise a complexidade da língua portuguesa no que toca à constante valsa dançada entre a contemplação e a acção. Ao inferir no leitor que este tem de inferir, o poeta, “puxa-o” para a dimensão filosófica, quase como se lhe desse a esperança de que o mito é passível de ser dedutível, a poesia igualmente e, em ultima estância, a língua também... por via do atractivo da lógica que se sobrepõe como camada externa, acessível a todos, pega assim o poeta na mão do leitor e o conduz à hermenêutica da própria vida. Nesse sentido, o modo como o faz é viril e solar e não romântico, vago, sensível, lunar, feminino... e porque é que o faz deste modo? Será por ser produto de uma época herdeira do mais do que racionalismo, o positivismo? Em parte, mas só em parte, pode estar aí a explicação, socorrendo-se dos elementos da modernidade demonstra o poeta o que de mais arcaico há na condição humana – é esta, aliás, a pedra angular do modernismo – mas, no caso de Pessoa parece ser mais do que isso, até porque a obra deste poeta é mais do que um produto da época, aparecendo, em certas ocasiões, como que “recortada” de um todo temporal uma vez que, por via da língua e do facto de esta ser tratada, não como coisa romântica, mas sim como coisa concreta, conduz, mesmo que implicitamente a um sentido, a uma procura de exactidão, e, em ultima análise, o que é um sentido senão um caminho? Haverá, porventura, algo mais certo do que um caminho, mesmo que este seja misterioso, mesmo que este seja serpentino ou não, mesmo que este seja criado passo a passo pela criação, um caminho é sempre um caminho, há qualquer coisa de inevitavelmente correcto, certo e concreto num caminho e mesmo que a sua memória se apague, como é o caso da passagem de um barco pelo oceano deixando um rasto que se dilui a pouco e pouco nas vagas e nos ventos, ainda assim, não deixou de haver caminho...  é como se a própria língua e a forma como o poeta a escreve e fala dela fosse um caminho, mais até do que isso, o caminho. Caminhando pela língua caminha-se pelo sentido. Daí a preocupação pela desvirtuação da língua ou pelo horror aos erros gramaticais, estaríamos deste modo a condenar mortalmente a pátria edificada a partir da língua, havendo quase uma hierarquização, uma sobrevalorização da língua face à própria pátria: “A base da pátria é o idioma, porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animal pensante, e a acção é essência da vida. O idioma, por isso mesmo que é uma tradição verdadeiramente viva, a única verdadeiramente viva, concentra em si, indistinta e naturalmente, um conjunto de tradições, de maneiras de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado morto que só nele pode reviver“, acrescentando mais à frente: “... o conceito de Pátria é um conceito puramente místico...” (1). A curiosa inversão feita aqui pelo poeta deixa antever a frase inevitável: não é a pátria que “produz” a língua, é a língua que “produz” a pátria... e essa língua é, assim, mágica no verdadeiro e sentido arcaico do termo: a contemplação da pátria só é possível pela acção da língua que a gera... o acto demiúrgico está na iniciação ritual de que a própria língua é corpo e presença. Há algo de essencial no tratamento, ou antes, no modo de como o poeta parece conhecer a língua dando-lhe uma profundidade semântica dupla: por um lado humana – criando símbolos e referências próprias, por outro numa outra que parece estar para além da própria vontade do poeta, porque a língua existia já antes do poeta nascer, a desocultação dos sentidos vários que remetem para um caminho (por ela e nela) é um duplo trabalho de arqueologia e criatividade... de ciência exacta e de elevação dessa potência exacta aos limites do “novo” como antítese da própria História, gerando-a, totalmente nova e outra no tempo e no espaço, o equivalente a um caminho...

O estranho mistério reside no facto de esse caminho ser identificável por quem percorre o caminho da língua numa espécie de profecia residente na própria língua: quem por ele vai, mais tarde ou mais cedo reconhece quem por ele foi e, nesse instante, o tempo é abolido como o culminar do ritual que a própria língua é. A identidade é uma consequência que, à partida, tem a mesma causa e é nesse movimento perpétuo que a pátria vai sendo criada numa iniciação de movimento infinito (eterno), ao ponto de afirmar, ainda na mesma página, “Estamos, neste mundo, divididos por natureza em sociedades secretas diversas, em que somos iniciados à nascença...”. Só percorrendo o caminho da língua recolhemos o caminho da pátria. Não há sequer imperialismo nisto. Há iniciação, pura e simples. A ligação, a descoberta, a escrita, a oratória, a leitura, tudo enfim, que se refere à nossa língua constitui, de facto, a matéria prima, mais do que os nossos sonhos, a realidade imediata que nos cerca... o modo como se caminha pelo caminho da língua é igual ao modo como a percepcionamos, como rito ou não, do mito que somos ou não...  negá-la é congestionarmo-nos no meio do caminho... a acção e a contemplação, em termos poéticos é uma dicotomia que não faz qualquer sentido no caso português... as duas faces estão intimamente ligadas, criando a terceira, hermética, evidentemente... porque, mais do que um conjunto de conceitos, a língua acaba por ser um caminho na verdade e para ela...
 
 

(1) Pessoa, Fernando “Sobre Portugal (Introdução ao problema nacional) – recolha de textos Drª Maria Isabel Rocheta; Drª Maria Paula Mourão – Introdução e organização Joel Serrão, editora Ática, Lisboa, 1978, pág. 121/126


(Cynthia Guimarães Taveira)