sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Rostos e olhos d'amor


Este lago sereno e plácido onde me encontro sempre esteve comigo ou em verdade ou em sonho e espelha os rostos e os olhos de amor, enquanto os restantes, fundos, num lodo indefinível, se diluem em gotas de pó.

A arte da inveja

 

 

Ei-la, a Inveja, nascida do casal insegurança e maus instintos. Presente no mundo desde o princípio dos tempos, ei-la ainda jovem menina e moça, condição de que não se livrará até ao fim dos seus dias, numa qualquer pausa da eternidade. Ela vive, respira e é eternamente jovem. Assemelha-se a um fumo, transparente e volátil que impregna cada canto, cada esquina do olhar. É fácil dar-mos conta da sua presença, ela paira, aparece e desaparece, é senhora do espaço e do tempo, a rainha da última palavra nos corações de alguns portugueses. Ela está sempre acordada, esperta e implacável. No canto dos olhos das mulheres que se olham de alto a baixo, e avaliam, e julgam e matam nesse pequeno pestanejar. Nos homens que olham os outros, e os invejam pela virilidade, pelo carro que não têm, pelo sucesso que não conseguem. Ela age por lampejos, pequenos raios sem compaixão. Dita pequenos gestos de recusa, dita os silêncios no lugar dos elogios possíveis. É muda e sinuosa e apressa-se nas decisões que mudam vidas. Ela vive no coração, mas não é o coração, instala-se no lugar dele e pulsa como ele, imita-o, na verdade, mas traz uma outra verdade que dela nada tem por ser apenas uma réplica. No fundo dela o medo e a maldade são os seus hemisférios sentimentais, na pele dela, a má língua e as más acções, são os hemisférios materiais.

Ela destrói, corrói, incendeia. Produz opiniões sobre falsas premissas e governa assim parte do mundo. Conduz sentimentos no devir da história e no seu rasto mudo, inculpável, indetectável deixa cadáveres de pessoas encerradas numa infinita tristeza. A mágoa que ela provoca não é igual às outras. Não é um filho que se perde, não é um pai que morre, não é um desgosto de amor. É a mágoa da injustiça, pura e dura, implacável sem intentos divinos que a possam justificar. Absolutamente irracional, absolutamente absurda no fim. Um non sense sem graça, uma desforra de coisa nenhuma. Mas ei-la sempre viva, em cada esquina, em cada olhar, nos pormenores dos gestos, dissimulada, imitando o amor.

 


 

quarta-feira, 28 de outubro de 2020


 

Fecho portas e janelas e finjo-me ser uma casa abandonada. No jardim suspenso de uma qualquer memória, ouço hinos oscilando ao vento. Por entre as frestas dos ramos das árvores, o sol impõe-se. Nada é como foi, nesta terra. Foi tudo imaginado por alguém que quis, sem forças, suportar o mundo nos ombros. E agora, flutuamos livres no espaço. A forma da poesia altera-se e passa a ser um rio, em vez de uma pirâmide de palavras. Uma vez sabendo, perde-se a casca seca que se agarrava à arvore surgindo esta, agora jovem, com ramos lançados à vida. E balouço num salgueiro simples, cujo movimento perpétuo é o de se deitar nas águas da poesia. Em vez de nuvens, há sóis. E as manhãs são as pontes que pisamos ao atravessarmos o lago das ideias. Descomplica-se o mundo com uma tenaz e, dos nossos dedos, ergue-se o barro dos seres.


Neste Momento


Não encontro, neste momento, motivo de orgulho para Portugal, além de uns quantos personagens que se destacam em áreas específicas. O ambiente cultural é uma cópia infeliz do estrangeiro e devia ser nele que o carácter de um país se delineia intencionalmente. O aspecto inconsciente pertence ao povo, quando há povo. Encontro, sobretudo, fadiga. Nem sei se é possível pensar um país face ao monstro que nos espera lá fora. O monstro é o próprio caminho que o mundo está a tomar: um de um artificialismo radical. É certo que a mão divina não larga o mundo. Quando largar, acaba-se o mundo, mas há alturas em que essa mão não é tão visível assim. Confundimos tecnologia com melhoramento, com avanço, quando a única coisa que melhora é a própria tecnologia e, mesmo assim, sem nós, humanos, fica fora de si. O velho Golem sempre à espreita. As indicações para Portugal seriam as de um regresso às suas próprias raízes culturais. O turismo, e já antes dele, levou à recuperação de um certo orgulho nos nossos alimentos. Também certas formas de artesanato são motivo de orgulho. É um orgulho directo que não problematiza muito as questões. Relativamente à cultura, as coisas já não se passam assim. Existem várias tendências. As dominantes são as velhas estrangeiradas. Já um pouco decadentes, tortas no andar, com um dos saltos altos prestes a partir-se, rugas evidenciadas por uma maquilhagem totalizante no rosto, e um batom vermelho, ligeiramente desbotado depois de uma refeição. Enfim, o resultado de se andar sempre a galope de modas culturais do estrangeiro. Os romancistas pululam. Vivemos numa época internacional de arte democrática, acessível a todos os que nela participam: os que usufruem dela e os que a produzem. Assim, vivemos numa festa permanente daquilo que nos parece ser criatividade embora seja, na maioria das vezes, pura fantasia. Vivemos num carnaval criativo, com tudo o que o carnaval representa tradicionalmente e não só. Por outro lado, a arte, ou aquilo que se entende hoje por arte, nunca serviu tanto a política e, quando é mais rigorosa, as ideologias nascidas depois da Revolução Francesa. Outra tendência reside apenas num pequeníssimo nicho de pessoas que leu alguns autores portugueses que se situam na linhagem especificamente patriótica. Nesse nicho, o peso de Portugal no mundo, é grande, quer seja no passado, quer seja no futuro e, se possível, no presente. É assim que cada golo do Ronaldo quase parece ser visto como um sinal do Quinto Império. Cada cientista que se destaca no estrangeiro, é visto como um evidente produto da “qualidade intelectual portuguesa” com um lugar no mundo incontornável. Ninguém sabe descrever ao certo o que será o Quinto Império. O último português a escrever sobre ele com cabeça tronco e membros foi Fernando Pessoa. Tomou-o, ou interpretou-o como um Império Cultural, o que é evidente: todos os impérios são culturais também. Até os económicos não se livram de arrastar consigo a cultura, nem que seja a cultura económica. Depois dele, talvez Dalila Pareira da Costa tenha sido mais precisa e tenha ido mais fundo naquilo que se espera que seja uma outra Era. Como o ambiente cultural dessa tendência está preenchido por homens, a maioria com uma misoginia inconsciente, latente e emergente, a voz desta senhora foi misteriosamente calada e ocultada dos assuntos em apreço. Esse é um problema (e não é pequeno) que o país tem de resolver. Somos um país, neste momento, pequeno e sem meios. A única esperança reside na iniciação. Não na virtual, praticada um pouco por todo o lado, mas na efectiva e escondida, oculta. Ela é a garantia de futuro para o país. Dalila, tal como Pessoa, fizeram bem a distinção entre erudição e cultura. A cultura passa por todo o ser, a erudição passa, sobretudo, pela vaidade e pela contabilidade. Resta uma esperança verdadeiramente silenciosa na iniciação. A única forma de uma intervenção do alto vir a acontecer e á não deixar o país morrer, fazendo com que este se cumpra naquilo que tem de se cumprir: na inauguração de uma outra Era. Um problema fundamental que a iniciação levanta reside no facto de ser qualitativa. É um problema para os nossos olhos, tão habituados à quantidade. E o outro problema que ela coloca é o da simultaneidade do tempo. É um problema para os nossos olhos, tão habituados ao tempo linear, contínuo e fluído. A escatologia é muito mais complexa do que se imagina. Neste preciso momento, acontece o “fim do mundo”. Acontece em alguém, para além do tempo contínuo em que vivemos. O sebastianismo, não é mais do que a crença em que existe um “alguém”, capaz de inaugurar essa outra Era, que será de Ouro, segundo a ordem cíclica. Como Sampaio Bruno bem deu a entender, esse “alguém” é abstracto. Numa época em que se procura controlar tudo de todas as maneiras (fonte da imensidão de depressões actuais), há elementos incontroláveis. Acontecimentos incontroláveis. Coisas que estão fora do nosso alcance, por mais que achemos que temos o controlo sobre tudo, é esse aliás, o timbre da nossa época: a oscilação entre o controlo máximo e o descontrolo total. Pelo meio existirá um descontrolo que é um controlo vindo do alto. É nesse seguramente que tudo assenta. Até a própria vida na terra. Neste momento, intelectualmente, dentro dessa tendência que assume a importância do papel de Portugal no mundo, temos sobretudo seitas, ora constituídas por apenas um individuo, ora constituídas por vários. A sua principal prática intelectual é mostrar que é intelectual, isto para além gostarem de revelar o profundo desentendimento que existe entre todos. Pelo menos é o que espelham, mesmo que depois acabem, como bons políticos, se encontrem em boas almoçaradas, afirmando as célebres e gastas palavras “há lugar para todos” e que nunca se percebe bem se são produto de uma democracia ou de uma anarquia profunda e inferior. Desta forma, a espera silenciosa e a crença oculta na verdadeira iniciação parece ser o único passo a dar, isto se queremos ser verdadeiros connosco próprios. E já é um passo, bastante grande fazê-lo. Por não ser fácil.

 

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Clima Geral

 


Quando acordo de manhã e me lembro, quase de imediato, do mundo adoentado como está, só me apetece voltar a dormir. As pessoas continuam e continuarão a votar em Bolsonaros, em Trumps, em esquerdas apavoradas com a Tradição, em blocos centrais que produzem e fazem a manutenção do próprio sistema levando as pessoas a votar em direitas e esquerdas que se alimentam, mutuamente, em seguida. Isto para uma monárquica, é impensável. Decido, todos os dias, aproveitar o conforto. Arrumar a casa, ler, desenhar, ouvir música, ver filmes e séries uns atrás dos outros e pensar o mínimo possível na minha falta de contribuição para um mundo melhor. Se não o fizer, entro em depressão. Ao meu lado, está sempre esta sombra de que não sirvo para nada. Nem a ninguém. E, como eu, existem, de certeza, milhões de pessoas a sentirem-se entre o inútil e o estupefacto perante tudo aquilo que este mundo oferece aos nossos olhos. Alguns pensam que mudam as coisas no Facebook, ou no Twiter, porque dizem a sua opinião. Na verdade, a maioria dos que pensavam assim, já se deu conta de que as opiniões se dissolvem na solução de um mundo que se auto-resolve, sem qualquer intervenção do alto ou deles mesmos. Outros, entregam-se ao voluntariado. Tarefa nobre, não direi que não, mas absolutamente inútil a longo prazo e extremamente útil a curto prazo. De forma que, este desconforto, não se dissipa. Agravou-se até com a pandemia. E como eu, há milhões de desconfortáveis por aí, por uma razão ou por outra. Os restantes, consideram-se heróis de uma qualquer causa. Escrevo no blogue para passar os dias e fazer meia com palavras que não agradam a ninguém.  E retiro-me do teclado do computador para me concentrar numa qualquer outra tarefa. Invento tarefas. Tal como o país, não tenho projecto nenhum. Não há dor que atravesse o corpo de Portugal que por mim não passe. Ou antes ou depois, tanto faz, porque o tempo não existe.


domingo, 25 de outubro de 2020

Ruína

 


Não há um notável pensamento que sustente um mundo a arruinar-se. As ruínas do passado são-nos nostálgicas. O pôr do sol em Roma é o resultado de palavras doiradas que caem sobre as pedras tombadas. Mas há o momento em que o edifício se torna ruína. O movimento e o momento de arruinar. Nesse instante, podemos ter as mais belas ideias sobre o mundo. Os mais precisos sistemas filosóficos, as manhãs mais gloriosas arquétipais, no entanto, a pedra desce e desvia-se do eixo gravitacional. E nasce a ruína. São chamados fins-do-mundo que estão muito mais na pedra do que em qualquer promontório porque estes são sempre uma promessa de vida e de viagem, aquém ou além da vida. O momento da transformação da pedra em ruína é a queda da própria ideia, o seu esvaziar, a sua insignificância face ao contexto. É um momento apenas visual. Cinematográfico. Alguma luz projectada num pano branco, sem profundidade ou sorte que não seja o tombo. A torre que tomba. O caos da dispersão das pedras, a aterragem delas, já rodeadas pela poeira que as irão fazer submergir em parte. Nesse momento, de morte de civilização, as ideias, como as almas, vagueiam, passam para outro plano, tornam-se fantasmáticas e ausentam-se até se evaporarem e passarem a ser apenas um espectro na memória. E o mundo não é sustentado senão por um ligeiro sopro de espírito. Uma brisa que traz e esconde a semente na poeira das ruínas. Uma chuva miudinha que a fará germinar. Uma pequena grande ideia a ser, com a reviravolta que irá dar em si, por si. Um raio de sol atento, preciso, que a irá iluminar. Quando cai uma civilização, restam as sementes guardas em ânforas de barro. Sementes que ainda nada são, na penumbra da poeira. Eis o retrato parado e esquecido do que já é esta civilização. Ao contrário das ideias, as civilizações morrem mesmo. As ideias, ausentam-se e estalam-se na memória. A queda da civilização é indiferente aos homens, às ideias dos homens. Ela já tomou corpo sozinha, já se fez grande, já foi do mundo, já decai, tomba e já se deixa adormecer na terra. E as almas dos homens de uma civilização em movimento de ruína, andam tombado com ela. Oscilam na rua como corpos em choque, o olhar triste e perdido de quem sobrou de uma guerra. A rua sem princípio nem fim, limitada apenas pela poeira. As mãos caídas sobre o corpo, como cadáveres de pé. A mente confusa e enublada, perto, perto do vazio de si mesma ou alucinando tardes de Verão junto à fonte das ideias, como um sonho ténue antes do último suspiro.


sábado, 24 de outubro de 2020

A Quinta da Regaleira e a celebração da Vida


 

Nenhum deles se auto-intitula de Mestre porque isso soaria demasiado a autopromoção, mas não se importam de se apresentar como autênticos mestres de cerimónias de opiniões e de sínteses do que leram como exemplo da sua superioridade. Na verdade, a preguiça de estudar é total. Antes ter quem nos debite as coisas. Tenho uma amiga divorciada a quem o marido pedia para que ela lhe contasse a história dos livros que ela tinha lido. Talvez fosse para poder brilhar, um pouco mais tarde, numa festa ou num convívio, brilhar como pessoa erudita ou talvez fosse a pura insistência em não ler, por ser coisa vagarosa e implicar tempo e disponibilidade. O problema é que a minha amiga poderia inventar uma história qualquer que ele a tomaria pela verdadeira. Os mestres de cerimónias neste mundo esotérico estão bem visíveis nas interpretações da Regaleira. Uns dizem uma coisa, outros dizem outra. Causam guerras. Guerras inúteis. Talvez o convite da própria quinta de Carvalho Monteiro não seja bem esse. Talvez nunca tenha pensado em mestres de cerimónias de opiniões. Talvez seja o de cada um sentir e ver com os olhos que tem. E quem fala na quinta, fala em muitas outras coisas. Também eu não me importaria de ser um Mestre de Cerimónias. Mas à moda antiga. Daqueles que organizavam festas e faziam delas uma obra de arte. Uma arte efémera inesquecível. E tomasse um cenário natural ou um palácio como base para a criação. É por isso que não encontramos criatividade nenhuma a não ser, provavelmente, nas interpretações dos mestres de cerimónias que ficam aquém de um verdadeiro Mestre de Cerimónias que se limita a conduzir as pessoas no voo da sua arte, da sua imaginação sem querer, com isso, proclamar a verdade do mundo e acabando, no entanto, por via da criatividade, por tocar nos pontos essenciais deste Mistério de estarmos vivos. Talvez, Monteiro e Manini fossem Mestres de Cerimónias à moda antiga e fizessem as pessoas voar nas suas asas com as asas que cada um tem.  Depois, vieram os herdeiros desses mestres, desfasados. A queda da Arte na mera explicação mecânica dos símbolos. Com tendência, naturalmente, para a imposição. São francamente mestres de cerimónias menores. São um produto deste tempo. Desta ausência de arte. Destes rebanhos de gente sem vontade e sem alegria que nos cercam. São produto do homem que se divorciou dos livros e da criatividade. Porque livros e criatividade deveriam andar juntos, ser inseparáveis e, por isso, a nossa relação com eles, deveria ser íntima e pessoal. Um dia emprestei um livro a um amigo. Apareceu-me no outro dia, com um ar ligeiramente zangado. Disse-me: “Li o livro de uma vez. Fartei-me de chorar”. Até hoje não sei que memórias ou em que ponto da sensibilidade do meu amigo o livro tinha tocado. Não lhe perguntei por que tinha chorando tanto. Fazia parte da sua intimidade. No entanto, sei, que a relação dele com o livro foi única. E fiquei feliz com isso. Mesmo que tenham sido lágrimas, foram lágrimas de ouro. Cansei-me de mestres de cerimónias de opiniões e sínteses. Os únicos válidos são os que erguem palácios e jardins, da raiz ao céu, partindo do céu para a raiz. Isso, sim, é uma verdadeira festa. Com esses vôos. Com os outros caímos num pantanal de guerras surdas. E a nossa alma cala-se. As festas não se fazem com desalmados. 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Interlúdio Interior


 (Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)


E lá foi a carquejar pela estrada fora, a galinha. Primeiro olhou-me com os olhos muito espantados pois nunca tinha visto nem uma pomba nem um pavão, sendo eu ambos, mudando conforme a luz do sol esteja a iluminar o meu corpo, depois pôs-se a dizer coisas porque pensava que sabia coisas. Mais do que isso. A galinha disse coisas e pensava saber coisas suficientes para brincar. Ora, nem uma coisa nem outra. Nem sabia coisas, quanto mais brincar com as coisas e, ainda muito menos, conseguir o meu estatuto de pomba e pavão na mesma pessoa. De maneira que, já em grande fúria, disse-me que não deveria passar por ali. Que aquele caminho era o percurso dela. E só dela. A galinha estava com a mania que era a dona do percurso que ia da montanha ao vale, ou da montanha ao monte, como disse o poeta. O problema é que ela não conhecia os desvios. Os atalhos disfarçados de desvios, direi antes. E, um deles, desses desvios ou atalhos, se assim poderemos dizer, estava nesta estranha capacidade de se conseguir ser pomba e pavão em simultâneo, sem ser nenhum dos dois, no íntimo. No íntimo apenas uma ave abstracta parecia esvoaçar por onde queria. A galinha tentava captar todos os meus gestos. Como se tivesse a ver alguma coisa com isso. E tinha dias. De vez em quando, passava por mim furiosa. Parecia uma galinha tonta, nessas alturas. Noutras, até dançava no meio da rua. Só para eu ver que sabia dançar. Pois é. Mas não sabe. Parece na mesma uma galinha tonta. Outras vezes lançava sobre mim os pintos que considerava macacos amestrados. Lá vinham eles a fazer macaquices e a imitar a galinha. Mas não lhes servia de nada. O pavão ou a pomba, conforme a luz do sol, continuava o seu caminho independentemente das pantomimas e da galinha tonta que persistia em afirmar ser dona do percurso. Não há nada como uma fábula para mostrar o caminho, os desvios e atalhos, e toda a fauna louca que por lá passa e que pensa que sabe coisas sobre aquela que, passando não passa e não passando, passa pois, sendo pavão, passa como pavão, mas não como pomba e, sendo pomba, passa como pomba, mas não como pavão e é dessa forma que a galinha tonta não percebe que ali não passa nem pomba nem pavão em simultâneo e que, como o ser é pleno e não fica a metade do que é, tenta, em vão, perceber quem lá passa, carquejando que aquele caminho é só dela, num acto tresloucado. É caso para dizer que a galinha vê coisas. Mas nunca vê na totalidade. Porque não voa. Dá uns pulinhos aqui e ali. Foge e dança tonta para os galos, mas pouco mais do que isso. Na verdade, o caminho sempre foi meu porque me foi concedido. Dei com ele naturalmente. Como quem se perde e se acha. Foi assim que descobri tantos caminhos, tantos quantos os raios de sol que sou. Nunca reivindiquei nenhum raio de sol. Foram nascendo, como penas, leves e capazes de atravessarem as tormentas. E a galinha, engana-se, quando pensa que só conheço aquele caminho do qual se julga dona. Eu sou o sol que me ilumina e lhe concede a visão do pavão e da pomba. Eu sou o sol nascente no Horizonte. Que nasce Oblíquo. Que ascende na Vertical. Assim, sou todas as distâncias e caminhos que a galinha não conhece, pois só conhece a recta da sua rua. A linha do adormecimento. Onde dorme e sonha com pombas e pavões. Onde oscila as asas e julga dançar. Onde Deus pôs um ovo para que fosse galinha e nada mais do que galinha, como condição da sua vida obscura, num galinheiro escurecido pelo tempo, apenas acessível aos homens com fome de corpo e não de Espírito.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A colina


 

Estou a ver um filme sobre terroristas. Escolhi ver esse filme. Não é bom ver filmes sobre terroristas. O terrorismo não é bom. Por que vemos filmes que não são bons, nem nos fazem sentir bem? Porque são importantes. Porque é importante saber. Os filmes têm um terreno próprio que não é o da pintura. Excepto Akira Kurosawa que é outra louça. Na Pintura só quero luz. Na Arquitectura também. Na Música já aceito a tristeza. Na dança aceito as emoções variadas. Nos filmes aceito tudo. O olhar que deitamos sobre as coisas é à portuguesa, isto quando conseguimos ser verdadeiramente portugueses e alcançamos a colina. No íntimo, no Portugal profundo que poucos conhecem, os portugueses são, em cima da colina. Poucos. O estatuto de louco é superior. O seu olhar também. Paira. Entende e paira. Eckart disse: "O olho pelo qual vejo Deus é o mesmo pelo qual Deus me vê". Falou em Deus, não falou dos homens. A sobranceria de pensar segundo os termos de uma psicologia barata quando afirma que vemos nos outros os nossos próprios fantasmas nega a loucura de ver os fantasmas que são exclusivamente dos outros. Um olhar de um louco português que alcançou a colina é precioso. Não necessita de romances sucessivos de telefilmes. O que vê é único. Um louco é desassossegado porque não está bem no mundo. Nem é do mundo. É da colina. E é a colina. Um louco não quer coros lamechas de emoções enternecidas nascidas da raiva. Quer emoções que sejam iguais ao nascimento delas. Um louco não finge que não ouve. Um louco não cai porque é a colina e a gruta que a acompanha. O seu olhar é límpido e fresco e não se envolve no que vê. É o que vê, no momento em que vê e não no recalcamento do passado do que é. O mundo não é uma pastelaria onde se escolhem os melhores bolos. O mundo é a pastelaria e a cozinha da pastelaria. Essa é a diferença entre o cliente e o pasteleiro. A diferença entre os desalmados deste mundo louco e os que têm a alma do mundo. Um louco não está na escola primária. Não está na Universidade. Está consigo no alto da colina, além do ensino. O olhar que deita às coisas constitui a sua sabedoria. A sabedoria não é um bem estar. É a liberdade. Está acima do bem estar. As crianças precisam de professores. Os raros exemplares adultos deste mundo necessitam de loucos. Os loucos nunca estão onde os que não são loucos pensam que eles estão porque os que não são loucos pensam sempre que os loucos estão mais abaixo e isto porque não alcançaram a colina. Nem a vêem sequer. 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Índia


 

Ainda me converto ao hinduísmo e me vou embora daqui. Ainda me converto ao hinduísmo e vou-me embora daqui. Farto-me de repetir esta frase como uma espécie de ameaça contra um inimigo invisível. Onde vivo, dantes, há muito tempo, esta zona, chamava-se Quinta do Anjo. Uma quinta onde vivia um anjo. Provavelmente fartou-se e foi para a Índia. Depois, veio o Inverno. Janeiro. E assim ficou, um Inverno permanente. Como é que sei? Sei lá como é que sei. Nem quero saber como é que sei. Não utilizei meios ilícitos para saber isto. Foi a memória que irrompeu porque quis. A memória e os sonhos são parecidos nas suas aparições. O que sei é que as demandas solitárias, por vezes, me parecem intragáveis. Fatigantes. Exasperantes. Retiro-me a olhar para as coisas estupefacta. Nem cheguei a estar no mundo, por ele andei sempre estupefacta. Um dia um médico perguntou-me porque tinha os olhos tão abertos. Respondi-lhe que andava espantada com o mundo. Ele, que era Conde, um médico Conde, riu-se com gosto e disse que me compreendia perfeitamente. O Conde e eu, num consultório a rirmo-nos com gosto do nosso próprio olhar e da nossa falta de jeito para compreender o absurdo. Já partiu, esse médico. Era um velho Conde na altura. Olhou para as minhas análises e não viu nada. “Não tem nada”. O velho tique dos médicos, à procura das doenças. Não tinha nada a não ser “falta de adaptação ao absurdo”, podia ter acrescentado, uma vez que ele também sofria do mesmo. E assim foi o diagnóstico que se mantém até hoje. O Inverno mantém-se e o anjo da quinta foi para a India, o esperto. Deixou-me aqui a chamar por ele. Ou a fazer as vezes dele. Que lata! Se eu fosse um anjo, não estava aqui estava na Índia a subir degraus da escada de Jacob. Agora aqui? O que se passa aqui a não ser as estações do ano? Umas atrás doutras, sem muito para contar. Sem muito para dizer. Em terras de anjo, num só dia, chega a haver quatro estações que disfarçam o Inverno que os ciclos são, sem possibilidade de espiralar.  É preciso muita paciência para não perdermos a paciência. É certo que há o mar, mas o mar não é todo ele uma promessa de Índia? O mar é uma provocação constante, com as ondas a dançarem o fandango à beira-mar. E os pássaros que me vêm bater no vidro da janela a dizer coisas. “Entrem, entrem. Sentem-se. Vamos tomar chá”, bem lhes vou dizendo. Mas eles debandam, desinteressados. São como as ondas do mar, pousam na janela a provocar, com o seu voo simpático. Que querem, afinal? Já os ouvi dizer que querem a minha opinião sobre a política nacional. A política nacional? Querem que desça ao nível do chinelo, ao nível da política Nacional. O meu médico é Conde. Conde! Estão a ouvir? Os democratas nunca suportaram aristocratas. E ainda menos os anjos. Opõem-se às hierarquias e depois vem-me pedir contas, satisfações, opiniões. Mas eles têm tudo isso às mãos cheias. Não há um democrata leigo. Nunca encontrei nenhum. São todos conhecedores de tudo e têm a Panaceia Universal nas mãos que vão vender aos mercados internacionais. Um dia destes vou para a Índia e de lá não saio. Garanto!


terça-feira, 20 de outubro de 2020

Nevoeiro


 

O tempo está parado e quadrado. Parece que não se mexe. Nevoeiro denso que envolve e aniquila o horizonte. Penso no que vi e vivi e para quem servirá a não ser a Deus como testemunha. Deus consola-nos por ser testemunha. Ouve alturas em que o olhar estava alterado, mas outras em que estava límpido como cristal. De que somos feitos? De que memórias, mais do que de histórias? Porque as histórias escritas encerram um final, as vividas nunca estão acabadas. Pulsam como no primeiro dia em que vieram à luz. Parece que queremos escutar sempre qualquer coisa no intervalo em que alguém nos escuta e vice-versa. As proporções variam como uma mistura de tintas ainda não totalmente acabada, com veios de cores claras que se envolvem com as mais escuras. A minha filosofia é demasiado prática e a minha prática demasiado filosófica e nunca encontro bem a verdade. Ela aparece-me sempre pouco precisa num lusco fusco. Daí que nunca consiga afirmar coisas como a última e derradeira verdade. Quando o faço, a isso chama-se crença e a crença é sempre um salto no escuro. Verdadeiro, mas é um salto. O tempo hoje está parado e quadrado. Ouço carros ao longe a deslizarem sobre o asfalto molhado. São mais audíveis em dias de chuva. Sobrevaloriza-se tanto a prática como a filosofia. Deviam ambas ter um meio termo. É por isso que só me encontro com artistas. Aquilo a que se chama encontro. Com filósofos ou gente que só faz e pouco pensa, parece que fico no silêncio interior, sempre à espera que alguma coisa aconteça. E, normalmente, nada acontece. Seguem o seu caminho alegremente. Quer no caminho das ideias, quer no caminho das coisas práticas. Imagino-os num caminho alegre, debruado de flores, tão diferente do meu, cheio de abismos e de estrelas incríveis visíveis na abóbada celeste. Cansei-me de fazer ensaios. Podia pegar num qualquer texto de um qualquer autor e fazer um ensaio. Uma interpretação. Dizer, por outras palavras o que ele quis dizer, e reuni-lo a outros autores em pontes várias, chamando a atenção para as diferenças e semelhanças. No fim dizer. “muito interessante”, mas é só isso. Os ensaios são muito interessantes, mas, com o tempo, esquecem-se, perdem-se nesse mundo das ideias enquanto procuram um porto onde possam ancorar e tornar-se coisas. Todas as preocupações de todos os condutores dos carros que ouço ao longe são diferentes das minhas. Nenhum se preocupa por estar um dia quadrado e com demasiado nevoeiro para se ver o horizonte. Ninguém deu o nome ao dia de “quadrado”. Nenhum ficou preocupado com isso. Só a mim essa palavra me faz cócegas. Me chega a amedrontar até. Tudo produto da imaginação. Deste silêncio onde ela ecoa. Agora são os cães que ladram a alguém que passa na sua rua. Querem dizer qualquer coisa, mas ninguém entende o que dizem. O que dizem na sua imaginação que ecoa no silêncio da rua, quando alguém passa. Tenho uma tonelada de livros para ler. Já não os vejo bem como livros. Os livros são sempre romances. Aquilo que tenho é uma pilha de ensaios para ler. Uma série de autores que resolveram ensaiar. Os ensaios não são livros. São fardos de palha onde procuro sempre uma agulha, qualquer coisa que acrescente um conhecimento a uma outra pilha de conhecimento que não está escrita, reunida. O meu conhecimento nunca é muito sólido nem solidificado. Parece que se instala no olhar que deito às coisas. Refugia-se aí para não ser apanhado pelas letras e pelas leituras. É a forma como olhamos para as coisas que nos diz o que realmente conhecemos. E os meus olhos, neste dia quadrado e cinzento parece que esperam qualquer coisa. Um raio de sol qualquer que atrevesse todas estas nuvens, como a alma quando se eleva e consegue atravessar as nuvens em direcção à luz. Como se esperasse assim a alma do sol, numa viagem feita ao contrário, de cima para baixo, em vez de ser eu a ir ter com ele.

 

domingo, 18 de outubro de 2020

A Arte e a Flor Azul


 

Há um certo ambiente que quase já não existe. O da criação. O da criação nítida e assertiva. Vi dois filmes nos últimos anos cujos argumentos não se deixaram enredar pelas malhas filosóficas estéreis. O primeiro foi um filme belga de Roland Joffé, com o título “Vatel” e o segundo com o título “A Little Chaos” (em português com o título “Nos Jardins do Rei”) realizado por Alan Rickman e ambos têm como tema central a Arte. E ambos possuem um determinado ambiente onde só alguns podem hoje nadar e entender. Normalmente só vemos as obras de arte e raramente vemos para além dela, a sua própria elaboração. Os documentários sobre arte procuram mostrar os artistas por detrás das obras e certas leituras das mesmas, tanto ao nível da técnica como ao nível da temática. Resultam sempre um pouco técnicos e frios esses documentários. Por seu lado, as séries e os filmes sobre os artistas são sempre romantizadas e intensas para poderem conquistar algum público. A arte em si, raramente aparece. Nos dois filmes que referi a arte encontra-se sobretudo num determinado ambiente e é lá que deve estar em primeiro lugar. Existe um impulso natural em direcção à perfeição, tanto por parte do personagem Vatel (interpretado por Gerdard Depardieu) que organiza um banquete no primeiro filme supracitado, como por parte da personagem feminina e principal do segundo filme mencionado, interpretada por Kate Winslet, personificando uma desenhadora de jardins. Caminham ambos pelos mesmo trilhos de uma arte efémera (um jardim é efémero porque está sempre em movimento). No primeiro filme a arte preenche todos os gestos do personagem principal, no segundo, a arte aparece como horizonte último onde reina mais do que o símbolo: a materialização celeste. Existem coisas que, de facto, não podem ser descritas (nem sequer num texto para um blogue) porque pertencem ao domínio do éter, da essência das coisas. Ninguém consegue descrever a essência de um perfume. Podemos dizer que é frutado, amadeirado, amendoado, etc… Mas ninguém descreve a essência das coisas. O éter é indiscritível, mas é apreensível. Às vezes dá-me vontade de me dedicar ao silêncio como consequência natural do indescritível e limitar-me a ver o mundo, silenciosamente, com os olhos alterados pelo facto de ter experimentado certas vivências que estão implantadas na alma. E tenho saudades de outra personagem que poderia ser: com vastas paisagens por recriar, com vastos banquetes para organizar. O ambiente deste planeta não permite, por agora, a expansão do que a arte é. Está demasiado desfigurado e as almas são demasiado jovens. E ninguém entende nada do que tento dizer. Para isso seria necessário o silêncio interior que escuta. Vivo silenciosamente magoada em busca do belo. Porque, como já escrevi, o belo, quando é Belo, encerra em si a Sabedoria e a Graça (podemos dizer que a Sabedoria é bela e cheia de Graça ou que a Graça é Sábia. No entanto, é mais fácil (e entende-se melhor) quando dizemos que a Beleza encerra em si a Sabedoria e a Graça. Cada vez me identifico menos com este planeta que está cada vez mais longe da sua essência. A pobreza interior grassa sem graça por todos os campos e confunde-se a capacidade de falar com a capacidade de criar com uma facilidade estonteante. E confundem-se todas as imagens com arte. Na verdade, já poucos conhecem o processo artístico em si mesmo, com aquilo que tem de cosmogonia. O cosmos passou a ser algo de utilitário, de qualquer coisa a explorar como se tratasse de “mais uma imagem”, quando o cosmo é o nosso lugar no mundo… daí que dantes o homem fosse entendido como microcosmos. Mesmo no mundo esotérico e filosófico encontrei, sobretudo, cabeças baralhadas com leituras sucessivas do que nunca entenderão. Não digo isto com um sentimento de superioridade, mas sim com um sentimento de inferioridade uma vez que eles são mais vistosos e maiores em número. Às vezes pergunto-me porque nasci assim, e porque me foram dadas determinadas experiências tão de acordo com a minha alma se não consigo comunicar o que seja. Mas talvez não seja para comunicar e seja para silenciar. Talvez tenha uma espécie de “complexo de serviço” que me diz que tudo o que me é dado tenho que dar. Mas sei que isso não é verdade. Não pode ser. É uma espécie de complexo provindo de uma cultura que se quer “caritativa” para que se possa “salvar” a “alma”. Na verdade, aquilo que a uns salva a alma a outros só pode dificultar essa suposta salvação. Ou antes, para alguns, é necessário o consolo de alguém que lhes diz que a sua alma “está salva” ou “a caminho da salvação”. Talvez seja esta a marca cultural mais funda aqui no Ocidente e, por ser uma marca cultural, é também uma marca “social”, o que não deixa de constituir um estorvo para quem nasceu para criar, ou seja, para sair da sociedade. Um criador nunca está em sociedade, está sempre no seu casulo a criar ou a chorar e a gritar quando não pode criar. Tenho saudades de certos ambientes que já não existem. Talvez seja uma tradicionalista inveterada e tenha nascido simplesmente assim: com memórias e saberes que não são desta época. Quanto aos filmes que mencionei, esses sim, mostram um determinado ambiente que reconheço. Reconheci logo. E fiquei contente. No entanto, nem sei se aqueles que realizaram os filmes souberem o que fizerem. Se calhar fizeram inconscientemente ou foram encaminhados por mãos divinas… como um sopro invisível. Mas sei que, quando Vatel coloca aquela flor azul, sabe perfeitamente o que está a fazer.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

O quê?

 


A cara dos meus cães depois de ouvirem dizer que os Templários não existem logo a seguir a aparecerem no Jornal da SIC muito bem aperaltados. Deve ter sido incubação a mais, das duas partes, evidentemente: dos que dizem que não existem e dos que dizem que existem. Eles que se entendam. Tomem lá um osso. Duro de roer que é para levar mais tempo. 


Súbita dança de um só braço (vídeo)

https://photos.app.goo.gl/pa2Lp8gKT9L8cdgu5 



 

Escrevo para o boneco e dou festas aos cães. E o que é mais verdadeiro? O boneco, as festas, os cães ou o que escrevo?

Fim de tarde


 

Até percorreria todos os ambientes de que me lembro. Bares com bancos altos e pernas cruzadas. Um cigarro, uma boquilha e os espelhos na parede do bar onde espreitam os rostos, os vestidos cor de pérola, os fatos escuros. Como num filme. Sim, como num filme qualquer. Qualquer imagem serve. Uma casa no cimo de uma ligeira elevação no terreno. O verde das ervas e as searas competindo pela fotografia e o sol já do fim da tarde tornando esguias todas as sombras. Ou o gelo por onde vagueia um urso. Qualquer imagem que me sossegue.  E tudo o que escrevo me parece ser menos importante do que aquilo que penso, nos intervalos em que escrevo, enquanto olho pela janela e deixo que os pensamentos fluam como as águas da grande cascata. Este fim de tarde esquecido de si entra pela minha paisagem interior quando não espero. E dentro de mim, as sombras esguias, não são negras, mas possuem um brilho que se distancia do sol. E dançam num outro sistema solar, feito pelos planetas interiores e pelas luas que são pássaros que cantam os sorrisos sortidos e intermitentes do brilho dos planetas.

O Cânone

 


Há uns anos, na Universidade, uma professora de Mestrado ensinou-me a problemática do cânone. Desde as suas origens, à sua diversidade, passando pela sua perpetuidade ou não. Desde aí que assisto a autênticas invasões, por parte do cânone, em todos os territórios. Tornei-me mais atenta ao cânone que não se confunde (embora, por vezes pareça) com moda. É frequente nas redes sociais, apelar-se à publicação dos “livros mais importantes da minha vida”, uma espécie de cânone pessoal que pode servir para comparar, para estabelecer um determinado perfil sobre a personagem que editou a publicação, para dar ideias de leitura. Há diversas possibilidades de utilização. Mas o mesmo se passa com tudo. Facilmente uma opinião, hoje em dia, é entendida (pela veemência com que é debitada) como uma espécie de cânone ou modelo exemplar, absolutamente incontornável e motor de acções vindouras. O problema é que há de tudo para todos os gostos e, tal como aconteceu ao cânone das artes, o mesmo acontece às vozes: uma dissolução na multidão delas com pequenos agrupamentos, aqui e ali, em torno de uma delas, tal e qual o “cânone”. Praticamente somos todos canonizáveis assim, basta ser independente de qualquer instituição que canonize institucionalmente. Este tipo de comportamento aproxima-se a passos largos da anarquia. Já escrevi várias vezes que existe uma anarquia superior e uma inferior. A inferior é visível no dito popular “cada um é como cada qual” e a superior também é visível no mesmo dito popular. No entanto, na sua forma inferior, a anarquia procura e exige o reconhecimento pelos pares. Na superior isso não se passa. Digamos que a primeira tende a auto aniquilar-se em si mesma na constituição de critérios comuns quando procura e/ou exige esse reconhecimento, o que equivale a dizer que o “individuo” tende a desaparecer em função desses critérios e desse reconhecimento. Na anarquia superior, o diálogo é sempre feito com o centro de “cada qual”, independentemente dos cânones impostos pelo exterior. Se há um exterior ao indivíduo, esse “exterior” está num plano individual e não colectivo. Entendendo isto, poderá compreender-se melhor o princípio da causalidade superior uma vez que, segundo a lei universal da intensidade, quanto mais perto do seu centro um individuo se encontra, maior repercussão têm as suas acções por mais diminutas que pareçam à luz dos cânones que lhe são exteriores. Penso ter respondido a uma série de gente.


terça-feira, 13 de outubro de 2020

Símbolos


 

A ausência de símbolo incomoda-me tanto como uma pedra no sapato. Quase não me deixa andar. É isso que mais me assusta na nova arte. A falta de linguagem simbólica. Quem vive e está num jardim vive rodeado de símbolos. Esses símbolos estão todos ligados à fonte. São portais que se abrem. Sucessivos. Uns a seguir aos outros. Um jardim é como o Nilo. Desagua a Norte. Desagua na fonte. Sempre pintei símbolos. Sempre vivi num jardim. Sempre fui quase invisível como são os jardins. Quando vou num jardim e encontro um vaso tombado pelo vento, levanto-o sempre. Não o piso. Levanto-o. Um vaso tombado pelo vento é muito mais simbólico do que aquilo que se pensa. Muito mais forte do que aquilo que se pensa. Um vaso tombado num jardim é o início de muitas coisas e pode chegar a constituir o eixo da integridade. Pode ser o encontro inato com o jardim. Pode ser a natureza a desvendar-nos a nossa própria natureza. Pode ser o silêncio donde brotam palavras d’oiro. O mistério de Portugal é o jardim que é.

sábado, 10 de outubro de 2020

Vocação e Destino


 

Pus-me a ler o prefácio que Ananda K. Coomaraswamy escreveu para  Related Arts de Mary Noreen e, às primeiras páginas (são poucas, vinte), não estranhei nada. O pensamento acerca da natureza da arte como algo tradicional versus este pensamento moderno sobre ela é o ar que respiro. Podemos ser frutos da nossa época e desta cultura enraizada nas terras pantanosas do individualismo mas, por vezes, podemos ser fruto de outra sem sabermos e só descobrimos que não somos loucos mais tarde. Quando Dalila P. da Costa, com o seu olhar puro sobre as coisas, observou a minha pintura afirmou, quase imediatamente, que eu era indiana. E talvez seja se isso significar que nasci com a marca artística e que não tive que a adquirir com esforço. A vocação funciona e é imprescindível para estas coisas da arte. O problema é que a vocação deixou de existir numa conversa normal. O termo é, em si, considerado bafiento, coisa do passado, uma espécie de condenação sem se ter culpa. Bem lá no fundo, aquilo que a nossa educação nos diz é que escolhemos a nossa vocação o que é o oposto da vocação. Também há quem confunda vocação com destino, mas são duas coisas diferentes. Na verdade, quem nasce com uma vocação pode ter um destino que nada tem a ver com a sua vocação. Continua vivo e a respirar e a cumprir ou antes, a pensar que está a cumprir um destino. E está. Se o destino for considerado um caminho. Um caminho onde a sua vocação não está presente, ou porque não pode ou porque nunca a descobriu. Em última instância todos cumprimos o nosso destino, no entanto, nem todos se cumprem na sua vocação e daí que ponha sempre muitas reticências relativamente ao chamado “destino”. Quantas vezes ele serve para justificar qualquer acção. Qualquer uma. E nunca serve para justificar uma vocação. Na verdade, é a vocação que justifica o destino. Apenas isso. É muito curioso que a vocação esteja ligada às artes e às coisas da espiritualidade. Como se a vocação fosse superior sobretudo construtiva. E é. Como é superior e construtiva, foi retirada do nosso vocabulário. Em vez disso apareceu a palavra “escolha”. A palavra escolha significa que se escolhe aleatoriamente ou não por entre determinados elementos. Há um caldo inicial e escolhe-se isto ou aquilo. A liberdade é total. O resultado é a existência de muitos destinos e de poucas vocações e isto passa-se porque a vocação tem muito mais a ver com a audição do que com a visão. Quando pinto o elemento “audível” é muito mais importante do que não parece. Digo “não parece” porque esse elemento não se vê. Eu ouço a pintura. Escuto-a, antes, durante e depois de a fazer. A “escolha” implica muito mais a visão. Escolhemos entre o que vimos, mas não escolhemos aquilo que ouvimos. O som é franco, a vista é fraca sem o som. É por isso que qualquer pintura nasce do que se ouve e vem cheia de palavras. É por isso que não havia distinção entre escrever e pintar. Dantes. E é por isso também que o som com que se pinta é um equivalente ao início da Manifestação. O som vem directo, surge puro, é tão essencial como um qualquer arquétipo de Platão quando ecoa na escuridão do cosmos. Aliás, toda a vibração desses arquétipos visuais é audível. Nada que Pitágoras não afirmasse. A mentalidade contemporânea está ausente de todos estes valores (isto são, são valores e não essa coisa transitória que é a moral) e, por isso, a arte é desvalorizada, por um lado, sobrevalorizada, por outro, no que toca ao aspecto monetário, e sem valor no que respeita à maioria das “obras” que por aí se vêem. Na maioria dos casos, os “artistas” cumprem o seu destino, mas não cumprem a sua vocação. É a inversão das coisas. É o destino a justificar a suposta vocação e não a vocação a justificar o destino. Por isso, quando me falam em destino, desconfio. Bastante. E ou me explicam as coisas como deve de ser ou então fico na mesma.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

O Governador de Tunes


 

Hoje vou comprar um livro e fugir para dentro dele. A realidade é absurda demais. Os livros são abusrdíces consentidas e não me apetece consentir esta realidade. Nada é suficientemente suficiente, ao passo que nos livros, as palavras bastam por elas mesmas, são pequenas ilhotas que emergem do absurdo real. Gostava de ser elogiada pelo que faço. Não porque eu goste de ser elogiada, mas porque isso seria sintoma de bom gosto e de capacidade de leitura. Os parvos dos esoteristas nunca perceberam isso. Têm o umbigo nos olhos e por isso é que são todos tão competitivos. Como as empresas. Ontem a minha amiga disse-me que eu parecia o Eça de Queiroz no dia em que não sabia bem o que escrever para o jornal onde tinha uma coluna. Com pressa, acabou por desancar o Governador de Tunes, tema que não interessava a ninguém. Estou sempre a desancar o governador de Tunes. E agora ele nem sequer existe. Gosto de desancar pessoas. De as apanhar nas fraquezas e contradições. É um passatempo como qualquer outro e, como ninguém lê, não aquece nem arrefece aos desancados. É um hobbie como comer pastilhas elásticas que sejam apenas cor de rosa choque. O que é que se pode dizer deste lamaçal a não ser dizer que é um lamaçal? Estamos reduzidos ao ponto zero da crítica. A crítica construtiva é inútil numa altura em que está tudo a ser destruído. É uma espécie de nova crença, de uma nova religião, de uma nova língua como o esperanto. A crítica construtiva não passa disso e, como não passa disso, é new age, já nasceu estragada. Ando sempre a falar com Deus, mesmo quando não ando a falar com ele. O facto de universo responder é sempre uma resposta vaga. Também já escrevi sobre isso no primeiro número duma revista de Filosofia auto-denominada de Extravagante. As coincidências correm o risco de entrar no reino do absurdo. São uma espécie de teia. Ultimamente tenho preferido fugir para dentro dos livros. Têm capítulos e estão bem arranjados. São decentes. Abrimo-los e sublinhamo-los. Gosto de sublinhar os livros e depois de tirar apontamentos dos sublinhados. Acabo por ler duas vezes. Dá-me tempo assim para os digerir. Ler livros parece-me ser a única solução disponível quando o tédio se instala. Interpretá-los. Fazer associações de pensamento. Procurar. Procurar entender numa época de especializações. Houve uma cientista portuguesa que ganhou um prémio por ter feito um plástico transparente que pode ser aplicado numa série de coisas. Passou horas e dias e meses e anos da vida dela à procura do plástico. É preciso paciência. Admiro, sobretudo, a paciência dela. Eu não tinha. Gosto demasiado de pensamentos grandes, de grandes sinfonias, de grandes vias abertas ao céu. Fico quase ausente por causa disso. Vou ao céu, por causa disso. A um céu desconhecido dos aviões feitos de plásticos especiais. Onde não há plástico. Escrevo por descarga de consciência. Quando morremos há uma descarga de consciência. Dizem que ela ascende. Escrever é estar um pouco morto, a descarregar a consciência só que ao contrário. Materializamos as coisas em palavras. É uma morte de pernas para o ar, o que não deixa de ser engraçado. Escrever é engraçado. Quase lúdico. Só não é porque há leitores. Os leitores fazem com que essa parte lúdica desapareça. Começam logo a intervir, a pensar, a antever, a reflectir sobre o que se escreve. Até quando riem, riem a sério, nunca a brincar. É por isso que a realidade é tão absurda e que fujo para os livros. Para ver se me trono um pouco absurda também. À procura de qualquer coisa. Não é bem de qualquer coisa. É qualquer coisa de concreto que me retire do absurdo que sou. Parece uma pescadinha de rabo na boca, mas não é. As pescadinhas de rabo na boca são miméticas. São o símbolo do mimetismo. Do símio. É por isso que os revivalismos raramente trazem qualquer coisa de novo, de fresco e, quando o trazem, deixam de ser revivalismo e só têm duas hipóteses: ou trazem qualquer coisa de novo e isso é new age, ou estão inseridos da Tradição e isso é “out of age”. O velho Shakespeare tinha razão: “Ser ou não ser, eis a questão”. A grande questão. Se se for um criador essa questão não se coloca sequer. Essa questão é para os que não sabem o que fazer consigo mesmos. Uma espécie de quebra-cabeças. De passatempo. Quem havia de dizer que essa questão é irrelevante. Só mesmo um grande criador para a colocar.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Os ditadores tolerantes





 

Quando há uma tendência inata para se possuir um espírito Inquisidor, ou Totalitário, essa tendência encontra, nesta época, terreno fértil para a sua idiotia e por via do mais absurdo dos argumentos: a tolerância e o suposto “respeito” por ideias divergentes. A falta de coluna vertebral é disfarçada com princípios vagos de tolerância. Esses princípios são vagos e sem fronteiras definidas a não ser por cada um que é, no fundo, ditador. Um espírito tolerante é aquele que aceita tudo, mas cuja própria vontade está acima de qualquer outra alternativa. Sempre detestei a palavra tolerância porque nasce e vive numa espécie de violência contida, na chamada violência passiva que consegue ser mais enervante do que a efectiva. Isto a propósito dos republicanos que não toleram os monárquicos. A ética republicana (que não tolera clientelismos… boa piada, basta ver o que se passa em Portugal e o que se vai passar agora com os fundos comunitários que estão a chegar), tolera os monárquicos remetendo-os para o silêncio. Para a prateleira dos “coitadinhos”, às vezes mesmo, de uma forma brejeira, para a prateleira dos “ridículos”. Os seus argumentos são simples: os monárquicos compactuam com o clientelismo, os monárquicos não possuem ética porque o sangue está acima de tudo, os monárquicos não têm o direito, nem natural (quanto mais divino) de governar. Os detentores do futuro, de uma sociedade justa, equilibrada e tolerante são os republicanos. Os monárquicos são chão que já deu uvas. Isto num país cujas republicas nunca tornaram o país grande e nem sequer toleraram o pensamento que, como país constituído há quase um milénio (na minha perspetiva o país está constituído há muito mais tempo do que isso: somos o caso típico da pescada que antes de o ser já o era), possa ter um papel único relativamente aos outros países porque, segundo os republicanos, as repúblicas são todas iguais. A marca distintiva fica apenas para os nomes dos Presidentes da República que vão instalando arraiais em Belém. Os republicanos usurparam o nome do país e substituíram-no pelo seu, temporário e frágil e que vêem nesses anos diminutos que variam entre cinco a dez anos a marca da eternidade… ou da eternidade que conseguem alcançar. Há uns anos, um grande republicano, Miguel Real, escrevia sobre a “morte de Portugal”, e talvez seja esse o desejo inconsciente de um republicano convicto. Se as repúblicas são todas iguais e se elas, num grau último se podem fundir em Estados Federados, as pátrias deixam de ter qualquer importância e a família real é patética no meio de tantas famílias, todas iguais e bem definidas no seu mundo indefinido, dissolvidas no pantanal das leis. Os pantanais das leis donde normalmente se esquivam os corruptos, os desordeiros, os malfeitores. Ainda ontem, numa série de televisão alguém comparava as leis a uma teia que só apanhava moscas e mosquitos deixando fugir os besouros e abelhões… a república tem a lei do seu lado, nunca o símbolo porque o símbolo serve a grandes e a pequenos, é um farol acima da lei. A apropriação dos símbolos nacionais pelos Presidentes da República tem em vista o enaltecer dessa Lei (que nunca é símbolo) onde pairam, acima dela, bandos de clientelas, de compadrios, de capelinhas, de instituições corruptas. Normalmente, o argumento dos republicanos não vai além do simples “sou melhor do que tu” porque não há muito mais a dizer. Queixam-se de que nunca viram uma monarquia exemplar e esquecem-se de que nunca houve uma república exemplar. Em Portugal é frequente vermos monárquicos não assumidos publicamente (cai mal dizer-se que se é monárquico, entra-se mesmo na esfera do detestável e, por vezes, do “coitadinho está desfasado do tempo") que dizem coisas como “ há que ser tolerante e respeitar os republicanos ainda que eles dêem cabo da monárquica que sonhamos”, esta última parte da frase fica omissa, no lugar do silêncio onde os republicanos querem que fique. Há também muitos monárquicos que não dizem que são, por vergonha. E há os idiotas e perigosos que dizem que o são, mas que não são outra coisa a não ser pessoas (caminham para deixarem de ser pessoas a passos largos para se tornarem robôs) formadas pelas ideias tanto do Facebook, como pelas ideias da Extrema Direita, provinda do Nacional Socialismo, socialistas portanto… (basta estudar um bocadinho para se ver o que são os socialismos de esquerda e de direita, e, para quem não percebe, a palavra “ socialismo” provém de social, ou seja “das massas” e isto é ponto assente). A extrema direita nunca toleraria uma monarquia porque a esta lhe falta as massas que elegem o ditador a partir de elas próprias e não a partir de uma família real (antigamente o rei era aclamado, ou seja, adoptado pelo povo, por entre os candidatos ao trono provindos de famílias nobres, e essa pequena diferença é a que existe entre uma elite e uma massa de gente: a proveniência do governante).  Os monárquicos não assumidos e os republicanos assumidos, entendem-se perfeitamente porque são frutos da mesma árvore. Os primeiros deitam-se e rebolam-se às ordens dos segundos e vivem felizes para sempre. Dizer abertamente que se é monárquico (sem se ser de extrema direita ou doutro partido conservador qualquer) normalmente provoca uma ira inflamada, mais ou menos visível no republicano (o sonho interior de qualquer republicano é exercer o poder, mesmo  que não tenha qualificações para isso e delega, por isso, essa possibilidade a alguém que é “um dos seus”, um irmão da mesma ninhada, um compensador, “não estou lá eu mas está o meu irmão”, ou seja, a raiz do próprio clientelismo) e provoca um silêncio embaraçado nos monárquicos não assumidos. Entre a ira e o embaraço, entendem-se todos, encontram-se nas urnas na hora de votar e a seguir vão almoçar brindando à fraternidade. Evidentemente que o mais importante fica por dizer porque não há discussão possível. Aliás, como bons burgueses, não querem discussões, querem manter as aparências. Quando dizem que “monárquicos e republicanos se devem respeitar”, lembro-me do respeito que houve aquando a mudança de Regime. É sabido que a transição de Regime foi pacífica. Feita com um enorme respeito. Muita honra. Os republicanos silenciaram os monárquicos com promessas de um mundo melhor e mais justo. Foi só isso que aconteceu. A “tábua rasa” da História, apanágio de espíritos ditatoriais. Mais valia dizerem para os monárquicos estarem calados, era mais franco. A “tábua rasa” da História prevê e deseja o fim de Portugal. É só isso. E esse fim é feito e tecido por gente sem coluna vertebral por mais colunas que possam ter certos templos seus. Ser-se monárquico é outra louça. É estar sozinho trazendo o povo no coração. Nunca vi isso num republicano. Normalmente dizem “juntos somos mais fortes”, o número a vencer e a convencer. O coração ausente, substituído pela euforia da batalha na cruzada contra Portugal. E a coragem também está ausente, substituída pelos corpos dos outros. Respeito? Respeito quem merece.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A "elite"


 

A páginas tantas da sua extensa obra (extensão, neste caso, não indica quantidade), René Guénon afirma que o povo, quando não há condições para que a Tradição esteja visível (é mais ou menos esta ideia do binómio visível/invisível), é o maior refúgio para quem a guarda. Esta afirmação é também muito extensa porque tem vários níveis de leitura. Quando as elites se perdem na política (ainda ontem alguém numa série televisiva citava um qualquer autor que escreveu “quem entra para a política fica imediatamente desqualificado”), entram no universo de Sodoma e Gomorra e começam logo a meter as mãos pelos pés, sobretudo nestes tempos de pensamentos totalizantes, sem profundidade nem capacidade de pensamento. Este refúgio é extraordinariamente verdadeiro e pode ser apenas a possibilidade da passagem de testemunho adquirido de forma inconsciente pelo povo que em seguida vai manter as informações e replicá-las ao longo de gerações através da cultura popular. Neste caso, estamos perante a passagem de testemunho ao longo da linha horizontal do tempo. Mas essa passagem de testemunho, também é feita através do eixo do tempo vertical, o tempo do kairos, e aí, todo o povo que aceitou ser concha protectora, participa nos ensinamentos consoante as suas capacidades. Ai temos fixada a “esperteza saloia” que não é mais do que uma forma muito inteligente de estar. O que torna o saloio esperto é o seu interesse, o seu genuíno interesse em aprender. Nesse momento pousa a enxada e escuta. Com a máxima atenção. É o verdadeiro aprendiz de uma voz superior e que entende, por intuição, que essa voz, é de facto superior. As duas vozes, encontram-se na humildade. Mas isto passa-se quando as elites já não possuem elas próprias essa capacidade de serem humildes e essa capacidade é transversal a todas as classes intelectuais. E por não possuírem essa capacidade, que é espontânea, nunca poderão participar nesse tempo vertical que exige a total transparência por parte dos intervenientes. A depreciação da “esperteza saloia” passa-se quando, incapaz de humildade, longe já da Tradição, a elite intelectual portuguesa espezinha por instintos malignos, o único reservatório disponível para o conhecimento e fá-lo com o maior descaramento: aproveita as uvas (que nunca cultivou), coloca-as sobre a mesa do banquete, aproveita o vinho (que nunca produziu) e coloca-o também na mesa do banquete. Banqueteia-se e acaba bêbedo com os seus próprios discursos e com as suas próprias palavras (é a chamada vingança do saloio) e isto porque, nem lançou sementes, nem produziu vinho alguma vez na vida e se limitou a deambular por literaturas várias sem nunca pisar as uvas com os pés bem assentes na terra. Permanecem como elite, mais por convenção do que por sabedoria. A característica mais forte das massas é a preguiça e, como tal, nunca muda a “sua elite”, primeiro, por desconhecimento (via preguiça amorfa) de que exista, segundo, porque as massas, na sua preguiça mental, nunca questionam absolutamente nada nem querem saber absolutamente nada. O seu domínio é o da acção, pura e dura, traduzível numa espécie de pasta que vai crescendo lentamente por via da fermentação até á bebedeira final e conduzidas por uma suposta elite que nada mais é do que uma excrescência de si mesmas e altamente desqualificada por via da política. 

domingo, 4 de outubro de 2020

Pela manhã


Nem me dá vontade de acordar de manhã. Para se ser herói ou anti-herói por via da estupfacção com o azar das gentes. Está-se melhor a dormir, longe, longe. Portugal só foi grande em tempo de reis, depois, embarcou no barquinho republicano e ficou a dar às costas e às sortes. Há muita filosofia por aí que disfarça que é política e muita divulgação das almas nobres que encobre vícios obscuros. Pela manhã, rolas e pardais partilham biscoitos no relvado das letras, serenos como o pôr-do-sol que há-de vir. Só me animo a mirar o mar, suficientemente grande para os meus olhos. Os meus companheiros de pensamento passaram a ser os cães que abanam a cauda com as palavras que lhes digo. Não sabem do significado, mas conhecem o coração das palavras o que é o suficiente. Os outros sabem todos os significados, mas desconhecem o coração. De que lhes serve? É por isso que nunca abanam a cauda nem se sentem felizes quando me vêem. É tudo tão mental que enjoa. Os cães, pelo menos, são uns trapalhões mentais o que lhes dá graça e fazem-me rir com gosto. Os outros, fazem-me rir com desgosto. São cassetes e cassetetes, cansaços extremos. Não sinto saudades deles. Da presença deles. Se sentisse iria a correr e arriscar-me-ia a tudo. Mas não sinto. Não posso fingir o que não sinto, não me apetece ser meio poeta e ser poeta pela metade e fingir o que deveras não sinto. Estou melhor no reino dos sonhos onde tudo é possível do que aqui onde tudo é impossível. O planeta dos anti-milagres. Dos homens dos olhos tristes e das mulheres protagonizáveis ao mínimo engano dos projectores. 

sábado, 3 de outubro de 2020

Renascer


 

Não é só a classe política que vive num mundo à parte. Também os pensadores, os que procuram a sabedoria (habitualmente apelidados de filósofos) vivem nos mais destacados casulos pendurados na árvore do conhecimento. Assumem formas gregárias quando querem divulgar o pensamento ou a sua posição perante o mundo, e depressa retornam aos casulos onde vivem tecendo as suas asas. Estamos numa queda de civilização acentuada e não temos consciência do grau do ângulo de declive porque, enquanto caímos, não fazemos grandes medições e o conforto facilmente se confunde com evolução. Ora os homens não evoluem, passam apenas de um estado para o outro onde certas características passam a estar mais acentuadas. Quando não deixam o mesmo estado estão simplesmente no mesmo estado rodeados de um cenário mais ou menos confortável que, esse sim, vai mudando e pode parecer mais evoluído. O sofá de hoje é mais confortável do que o sofá de ontem, mas não deixa de ser um sofá. O lixo planetário, a poluição maciça são o sofá que parece confortável, mas que talvez não o seja porque nunca houve mudança de estado efectivo no homem. Neste estado, somos efectivamente parecidos com aquilo que nos rodeia. Neste estado, o que somos, confunde-se com o cenário. Daí que seja tão fácil confundir pessoas com quase nada, com números, cadeiras, lugares, assentos, posições no espaço. Esvaziar as pessoas é tremendamente fácil numa altura em que já se encontram vazias e o conhecimento se tornou numa espécie de caça ao facto que é sempre contabilizável e ao mecanismo causa-efeito, que também o é. Como dizem os chineses “se funciona” é bom, mesmo sabendo que o mundo não se reduz ao funcionalismo. É desta forma que encontramos termos como “famílias funcionais” ou “pessoas resolvidas”. O grau de exigência é nenhum, mas muito face ao objectivo: equações resolvidas que possam funcionar no mundo real. E não se passa disto e é este o cenário de sonho criado colectivamente. Termos como a “libertação” estão completamente fora do vocabulário porque não é esse o objectivo. O objectivo é uma equação matemática que funcione em direcção, presume-se, a uma felicidade contínua arrastada no tempo, sendo a felicidade altamente volátil e contextualizável, ou seja, extraordinariamente pouco livre relativamente ao contexto. A liberdade é um conceito político que se confunde com o de felicidade, a libertação, por seu lado, é um conceito vindo da metafísica (é mais do que um conceito, é um verdadeiro estado). Nesta queda da civilização que todos vivemos e a que todos assistimos, esses conceitos de felicidade aproximam-se cada vez mais daquilo que são os fantasmas “mal resolvidos” (como se diz agora) de cada individuo. Quando esses fantasmas coincidem nas dores temos um grupo em funcionamento. Político ou não. Os homens em queda unem-se conforme as dores. É por isso que encontramos tantas associações especializadas em determinadas dores. As associações das maleitas são uma espécie de um membro extra que cresce em cada um dos seres unidos em redor da fogueira da sua dor. Essa dor, é algo que funciona mal face ao conjunto da maquinaria. Os seres são máquinas, disso não restam dúvidas. Programáveis, direcionáveis, manipuláveis, substituíveis enquanto o sentimentalismo mais rasteiro deixa cair uma lágrima de crocodilo e diz que não, que “ninguém é substituível”, e depressa volta a rir e a ser feliz, noutro contexto mais propicio muitas vezes só possível com o apagamento da memória, uma tábua rasa que invade todos os planos necessários para que a felicidade seja readquirida, como direito, aliás. Todos os homens têm direito a ser felizes, nenhum tem direito à libertação e isto prende-se com a noção de centro que está sempre ausente quando a sociedade funcional e o individuo funcional trabalham um em função do outro. Quanto muito a função é o centro, a pele da própria pele, uma superfície tão superficial que nem chega a separar as águas superiores das inferiores, ou, por outras palavras, a abrir o ovo do mundo em duas partes para que um novo estado seja possível. Até mesmo, as ideologias de direita que se dizem conservadoras, quando falam no “direito à vida” falam disso com a tónica funcional que a vida adquiriu numa espécie de jogo binário: vida/morte como se fossem opostos, quando na realidade não são. Se assim não fosse, não existia o culto dos antepassados…  A palavra nascimento está ausente, a palavra renascer ainda mais ausente. A vida é concedida, o nascimento é um milagre e daí para a frente a felicidade parece tornar-se o culminar de uma máquina bem lubrificada e em pleno funcionamento em direcção a “momentos felizes” que se querem o mais juntos possível no tempo e durante muito tempo, numa contabilização desenfreada cujo número absoluto é impossível de alcançar. “Básicamente”, como agora se diz, tudo se resume a esta “base”. A “base” é o pico da montanha. O máximo que a vista consegue alcançar. Sendo estes os “horizontes”, nem os degraus da escada são visíveis, quanto mais subi-la. E chegámos ao ponto em que nem a própria queda existe. Está-se na base, confortavelmente, com tudo aquilo que o conforto implica: o sofá de hoje é mais confortável do que o de ontem, o planeta de hoje é menos confortável do que o de ontem. Vive-se numa roda viva, numa pescadinha de rabo na boca, sem que se renasça porque não há “onde” nem “quando” renascer.  Talvez porque nunca se tenha sequer nascido como ser humano e sejamos vistos como algo dotado de vida funcional em função de uma sociedade funcional que tem de funcionar relativamente a nós. Mais rasteiro do que isto é impossível. E doloroso também. Não admira que existam tantas associações para as disfunções. Até os governos se tornaram numa associação para o funcionamento da sociedade disfuncional. Basta ver a quantidade de departamentos. E das reabilitações, termo que tanto dá para as coisas como para as pessoas porque as pessoas são coisas e as coisas são pessoas: o animismo puro e duro está de volta com o mundo virtual.  Renascer é um milagre a mais. Nem um nascimento, quanto mais dois.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O fantasma da ópera


 

Não convém ser-se muito pesado numa altura em que uma piada pode ser dificilmente entendida por tudo ser demasiado leve à nossa volta. Aparentemente isto é um paradoxo. As piadas deveriam servir para atenuar a dor. Pelo menos é o que se costuma dizer. Mas parece que o que é leve se torna facilmente pesado e aquilo que é pesado dificilmente é entendido. Talvez pense demais quando nem deveria pensar numa altura em que o pensamento é levado a mal. Quando temos um percurso sem folclore dificilmente passamos à condição de existência. O privilégio de se ser sem existir é apanágio do mundo invisível. Foi quando me tornei fantasma que o mundo começou a ser uma plataforma quadrada, um pouco elevada e cujo acesso a ela se dava por meia dúzia de degraus de madeira que procuravam ranger o mínimo possível quando alguém os pisava. A transição entre a plateia e o palco e vice-versa deve ser silenciosa senão essa fronteira torna-se demasiado audível e, quando isso acontece, parece deixar de existir diferença entre a plateia e o palco. Não é isso que se deseja. Gostamos de fronteiras bem definidas para que possamos entrar noutro mundo, saltar entre mundos por entre um eclipse de tempo no qual deixamos de existir. Nesses degraus não existimos. Apenas somos qualquer coisa de invisível entre cá e lá, entre a plateia da realidade e o sonho real. Dito isto, o esoterismo não tem muito mais que se lhe diga. Há entidades de um lado e do outro que se podem cruzar ou não e que se olham mutuamente quando os projectores não batem demais nos olhos. Este fenómeno luminoso serve para ambos os lados porque a luz tanto pode ser considerada como qualquer coisa de divino que preenche por inteiro qualquer extâse como pode ser considerado um simples foco de luz sobre alguém, tornando esse alguém o centro das atenções, o centro dos centros da atenção dos humanos, um humano demasiado cheio de si o que constitui uma autêntica blasfémia para todas as religiões. Todas elas professam o apagamento. Um estranho apagamento face à luz, o que não deixa de ser um paradoxo. A luz brilha e apaga o ego e os seres tornam-se uns simples receptáculos de luz, formas passivas gozando a beatude. Como se pode constatar o espectáculo acabou na mesma proporção em que nunca acaba. É muito sério, isto. Não devemos rir em voz alta. Nem cantar acima do coro. A uniformidade eleva-se por si, não necessita de primeiras figuras. Necessita de uma espécie de limbo onde todos dão as mãos. Somos todos pavilhões multiusos e, uma das nossas vertentes é dar-mos as mãos uns aos outros para nos fundirmos no todo musical. Uma espécie de suicido colectivo para que o coro cante. Ai, a vida é tão complicada. Deveras. Foi quando me tronei fantasma que comecei a ver o por do sol com a máxima atenção. A vida de um fantasma tende a descomplicar-se. É uma tendência natural. Está aqui e ali e prega uns sustos. Diz umas coisas que fazem os outros fugir. Alguns malucos chamam por nós. Sentam-se numa mesa, dão as mãos e alteram a voz. Já lhes tentei dizer que não é necessário alterar a voz. Nem gritar. Não somos parvos nem surdos. Mas prosseguem contentes a chamar pelos seus fantasmas de estimação. Sentem-se realizados assim. Aquilo que mais me tem custado ultimamente é o facto de dizer piadas e de ninguém as entender. Logo agora numa altura em que as “stand up” (é um termo estrangeiro) estão aí e em força. Os que levam a vida a fazer rir têm o papel de chatear os que levam a vida a fazer chorar e vice versa. Pelo menos é isso que parece. Por outro lado, parece não haver motivo para rir e, nessas alturas, quando isso acontece somos os que levam a vida a fazer chorar. As piadas têm um feitio intratável. Nunca se sabe bem quando dão uma volta de cento e oitenta graus e se transformam em tragédia ou em piadas de mau gosto. O mau gosto. Esse está por aí e venceu. É por isso que o por do sol é um eixo de beleza. Há quem diga que é só isso. Beleza. Um por do sol é belo, ponto final. Não há mais nada. Quem pensa que a beleza só é bela engana-se, tem padrões lá dentro. Harmonias. Cores combinadas. Equilíbrios. Sons. Palavras, memórias, histórias. E para além disso tudo a beleza é bela. A cereja em cima do bolo. A beleza comunica por si. Só os desatentos ao belo não veem isso e dizem que a beleza por si mesma não chega. Chega e sobra. Sobra para tudo. A vida é complicada, mas a de um fantasma é menos. Consegue subir os degraus sem que mostre que existe. Normalmente são muito observadores. E sabem dançar. Nunca estão quietos. Dizem que isso acontece por serem almas atormentadas. Mas os mesmo se pode dizer de um poeta. A diferença é mínima. É uma questão corporal. Uns são mais encorpados do que outros. Os poetas são encorpados porque são incorporados por fantasmas. Nunca poderão ser santos. Mas contribuem para ela, essa coisa a que se chama santidade e que se limita a brilhar e a curar doenças. Um poeta é um doente que provoca doenças de alma. Atormenta as pessoas. Torna-as fantasmas. Quem sabe se fantasmas de si. A vida é muito complicada. Complicadíssima. Mas um fantasma é menos. Limita-se a andar por aí e prega sustos. Pode incorporar um poeta e passa a pregar sustos com as palavras. A poesia é um susto, bem vistas as coisas. Afantasma os seres. Adoenta-os. Depois vem o santo e cura. É o fim da poesia. Acaba-se tudo. Até a vida se acaba no momento da cura. Fica tudo parado. Em beatude incessante nas saias do Senhor a ouvir os pedidos de ajuda. A ouvi-los sem parar. Eternos. Normalmente são para curar doenças, esses pedidos. Sim, na sua grande percentagem é um pedido para que a vida possa continuar e para que o poeta continue a escrever poesia, de boa saúde, por mais anos e robusto. Um fantasma raramente tem piada como a vida que é complicadíssima, mas isso é porque um fantasma é um vivente que não vive na vida. Na vida de todos os dias. Na vida corriqueira. É, de facto um ser à parte. Embora muito corra por aí, pouco tem de corriqueiro. E diz piadas que ninguém entende.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

A Quinta da Regaleira


 

A palavra “gnóstico” está para o universo esotérico como a palavra ciência está para a actual época. Serve para tudo. Para o bem, para o mal e para o assim-assim. Falar de conhecimento é um cliché neo-vanguardista que pode ir desde o simples concurso na televisão com perguntas e alternativas de quatro respostas com uma correcta apenas, até aos mundos mais invisíveis e de difícil alcance. Na verdade, Dante, estava sobretudo preocupado com a Igreja católica e com o destino dos bispos, se estavam mais ou menos acima no círculo infernal que ele mesmo criou, bem como com os políticos. O seu interesse por Beatriz não passa do facto de produzir energias sexuais estimuladas por essa mulher distante e aproveitadas para fazer a obra. Francamente, não vejo amor nenhum por Beatriz. Vejo antes, Eros a comandar toda a operação criativa em função de uma Igreja que sempre recusou esse deus e o tomou como maldito. Não falo do estilo, da língua ou dos poemas, falo do substracto. No fim, rende-se à Igreja Católica como bom italiano. Já Cervantes, parece ficar num limbo gótico tardio. No fundo, o seu entendimento da Idade Média é o de que era uma época cheia de fantasia. Cervantes é um moderno cujo enaltecimento medieval é apenas uma máscara que dissimula o seu fascínio por uma época “esclarecida” e, para isso, produz um hiato artificial entre a imaginação e a realidade. O maniqueísmo vence como força motora para a obra e todos sabemos que o maniqueísmo tem como base, Eros, exactamente o mesmo deus, com os polos atraindo-se e repelindo-se.

 Temos nós por aqui Camões, o navegador. E aqui o caso é outro. É provável que Camões fosse cristão novo, já alguns o afirmaram. Não sabemos se isso conta para o caso ou não. A realidade é que a sua grande preocupação não foi a Igreja Católica, nem a Idade Média, nem o Renascimento. A sua grande preocupação foi para com o povo português como se este fosse, em si, um caso único, situado para além da religião e do tempo. E é. Na sua gesta, o povo português está acima da época, transportando-as todas em barcos. As guerras medievais, as mulheres distantes que ficaram à beira-mar, as outras encontradas nas Ilhas Afortunadas. Há uma dispersão muito própria, como disperso é o próprio mar. E, nessa dispersão, há uma rota em direcção à recompensa concedida pela deusa. A deusa não é nem uma época, nem uma mulher que morreu e que ficou no céu a servir de guia em direcção à Igreja Católica como o é Beatriz. A deusa eleva-se acima das montanhas do espaço e do tempo e recompensa os navegadores com o conhecimento que nada mais é do que a visão da essência das coisas. Não foi nem a matriz erótica de Beatriz, nem a cisão do tempo entre a Idade Média e o Renascimento, a força que impeliu os portugueses. A ser alguma coisa foi esse apelo de diluição no mar em busca de uma rota, ou na construção de uma rota (busca e construção neste caso vai dar no mesmo, daí a tónica na “experiência”). Essa busca de rota, como constituição do ser-se português, provavelmente foi adquirida no Dilúvio. Não sabemos até que ponto as memórias nos ficam incrustadas nos genes (um chip não é nada face ao sangue). Essa busca de rota parte da ignorância de não se saber ao certo por onde ir. Dante e Cervantes possuem roteiros “à priori”. No primeiro, o imaginário é adquirido via catolicismo com um sentimento de culpa exacerbado, bem como o de pecado, o que é o mesmo. No segundo, o roteiro, é o próprio espírito renascentista que o encaminha para a Idade Média como coisa “outra” e perdida. O seu roteiro é binário. A aventura lusitana parte da esperança e da incerteza. Não existem “à priori” demasiado materiais. Os únicos “à priori” são essa deusa que nunca foi mulher carnal bem como todas as épocas que este povo concentrou em si, desde o dilúvio, como memória difusa e como apelo para regressar ao mar em busca de “algo” maravilhoso. E esse algo de maravilhoso é efectivamente encontrado. Essa é a marca de génio de Camões. Não está preocupado nem com a salvação (apenas com a salvação da diluição através da descoberta ou construção – as obras ”libertam da lei da morte” -  de uma rota-espaço- ao longo do tempo) como Dante, nem com o tempo como ilusão (como Cervantes) e essa despreocupação é aquilo vai fazer com que ambos, espaço e tempo sejam dados a conhecer pela deusa ao povo português como deve ser conhecido: com a Máquina do Mundo, ou seja, espaço e tempo indissociáveis. O problema do gnosticismo actual, afirmamos de novo, é confundir isto tudo. Tal como a ciência se confunde na fragmentação das certezas. Falar-se em gnosticismo ou em ciência é hoje a mesmíssima coisa e a opinião diverge apenas devido ao ângulo de visão. O bom, o mal e o assim-assim, funcionam como tábuas de salvação momentâneas num mar caótico onde nem sequer chega a existir diluição porque, de ambos os lados, já se partem com “a prioris” materialistas ou materiais. Sendo o “a priori” português, fora do espaço e do tempo isso torna as coisas muito mais interessantes. Da mesma forma de que quando falamos actualmente em ciência temos de perguntar “de que ciência estamos a falar?”, o mesmo se passa com o gnosticismo, “de que gnosticismo estamos a falar?”. E começam a surgir as respostas mais variadas e mesmo divergentes, por vezes. O caso português é atípico na sua base. Na sua parte mais material, existe o “apelo do mar”, da “saída de si”, como memória de um dilúvio, de uma forma de vida que desapareceu nos abismos do oceano, a tal ponto que, mesmo materialmente, esse apelo de regresso ao mar para o estabelecimento de uma rota é difuso o suficiente para não ser totalmente palpável ou material: o apelo é, na sua essência, misterioso e tem o seu quê de etéreo.  É nesse instante que toca a deusa e que ela compreende o povo português. O apelo português e a deusa são feitos da mesma matéria que é imaterial e material ao mesmo tempo. Esse “toque” é aquilo que é mais difícil de compreender pelos outros povos. Ele está na palavra saudade que se confunde, em mentes mais simplistas, com o fado cantado, embora o fado cantado seja o lamento ininterrupto do dilúvio. Uma prece permanente para o não afogamento e corremos o risco de, com ele, andarmos sempre de xaile negro… como negro ficou o céu quando caíram as águas (corremos o risco de nos afogarmos em lágrimas) e corremos também o risco de o povo português se confundir com isso o que seria, no mínimo absurdo. O fado é apenas um aspecto da Saudade e muito restrito no tempo.  Um entre muitos. Com esta moda dos gnosticismos corremos também o mesmo risco que corre a ciência: que venha algo de muito pequenino, como um vírus e toda a estrutura fica em risco. O gnosticismo é equivalente a “conhecimento”. E, a palavra em si, no fundo, não quer dizer nada. Podemos conhecer tudo, como a ciência, o bem, o mal e o assim-assim, já dizia a Bíblia. O gnosticismo ou conhecimento é apenas um dos aspectos da Saudade, apenas um. O aspecto mais importante da Saudade é a tentativa do povo português de sair dela em direcção a qualquer coisa onde já não a sintam. E a deusa, aí, distraída no seu passeio sempre matinal, repara, pára e concede.  Não há nada de Católico nisto, nem nada de Medieval. São dois factores absolutamente alheios a esta estranha relação que o povo tem com a sua deusa, mãe do mar, mãe de mar, mãe sobre o mar, mãe e mar, mater e matriz, a única capaz de nos levar a fazer uma rota, estabelecida com e nos quatro cantos da terra. As guerras absurdas sobre a “interpretação da quinta da Regaleira”, parece que têm em vista o esquecimento da figura mais importante desse complexo arquitéctónico. A menina que se ergue acima de tudo (e se parece soltar até da própria pedra) com pombas no regaço. As mesmas pombas soltas em alto-mar aquando as festas do Espírito Santo. Aquela que se ergue acima das montanhas e que “oferece” a libertação. O ponto central da Regaleira de que se fala e escreve “por alto”, sem efectivamente se olhar para o alto para a ver, e ao qual nunca se dá a devida importância. A menina-neta, o futuro. E, aqui para nós. O único possível. Em vez disso perdem-se as interpretações do cenário que não é mais do que um cenário de uma ópera, onde deuses se elevam em patamares e poços invocam à força universos dantescos, cenas de caça e um anjo que ri ao pés da cama enquanto anota os sonhos, uns atrás dos outros… de maneira a que todos se percam neles, nas ciências, nos gnosticismos, nas alquimias soporíferas, nas “Beatrizes” beatas, nos catolicismos baratos, nos ritos que imaginam, nas espadas que disferem e rasgam camisas em duelos, magoando-se e ferindo-se.  A grande lição deixada em pedra no século XIX, o século mais contrastante de que há memória com forças de tensão entre um “passado imaginado” e um “progresso imaginado”. As épocas e os presságios ficam sempre inscritos nas pedras. Enquanto andarmos divididos entre Dante e Cervantes, não lemos Camões, ou antes, lemos Camões com o coração e com os olhos de Dante e de Cervantes o que é desarmónico e nada tem a ver com ele.