terça-feira, 19 de setembro de 2023

Por ela


 

Não me trazem as ondas do mar, o teu sabor. O sal desta vida é demasiado intenso e apaga os perfumes outros que reservas em ti. Longe vão esses caminhos sem fronteiras, sem donos, esse espaço sem fim, essa curva no tempo tão imensamente esvoaçante. Todas as partes do corpo parecem sentir a Saudade. Procuramos novas do nosso amigo que é outro tempo e outra luz. Saudade, sempre com o seu manto longo, arrastando os nossos seres, olhando sempre mais além, sem que  consigamos adivinhar-lhe o rosto. Só a sentimos, agitada, tomando-nos, elevando-nos, e largando-nos com suavidade neste mundo frio.  A tristeza cai como uma noite imprevista. Somos selos e fomos selados pela Saudade. Não há segredo mais bem guardado e mais exposto do que o de a sentir em volta de nós, respirando, sorrindo, chamando. Se a sentimos viva é diáfana, se a sentimos morrer, é este frio do mundo tomando o seu lugar. Não alcançamos o seu percurso pelas estrelas neste mar de cristalinas rochas. Que lugar é esse, nela, no seu seu seio, bem no centro dela, animando-a para que nos anime e ela animando-nos para que não a esqueçamos. Que lugar este, para além dos limites do mundo agreste e frio, onde nos encanta com o seu mistério feito do mistério de todas as coisas? Que centro de nós atinge, que centro nela nos acolhe? Vem vê-la com o seu longo manto, com os seus cabelos em cascata e segue-a com o olhar em direcção ao futuro que é só dela. Adivinha-lhe os gestos e nos sonhos coloca-lhe uma grinalda de flores e ouro. E nos sonhos dança com ela, pela noite triste e imprevisível, até ser dia. Até ser o Dia. Faz tudo isto enquanto percorres essa noite fria e cala essa viagem e oculta essa dança ainda que o teu coração transborde dela, e seja ferida aberta e que não seja outra coisa.  Não durmas, dança e transforma o teu silêncio num brilho no olhar. Por ela, estás desperto.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

A lista de supermercado



O povo diz que é ter a cabeça na lua, mas não concordo. É ter a cabeça no sol. Há qualquer coisa de anómalo quando se passeia pelo supermercado com uma lista de compras numa mão e um carrinho para as levar no outro e, em simultâneo, pensar nos mistérios da vida, querer entendê-los, ali mesmo, por entre prateleiras com manteigas e peças de carne penduradas à espera de serem esquartejadas para um jantar qualquer. O pensamento divide-se entre o frigorífico e as estrelas com a mesma compenetração. Ainda muito cedo deu-se uma percepção da estranheza de se estar vivo à mesa de um restaurante e, desde aí, o quotidiano não mais foi comum, perdeu a inocência de ser apenas quotidiano e ganhou tonalidades que lhe são estranhas, como se houvesse uma invasão de extraterrestres que não permitisse mais a vida normal e o diálogo passasse a ser com outras vozes para além da senhora brasileira da caixa que sorri com gentileza e estende o talão escrito com palavras e números como se essa fosse uma proclamação firmemente impressa de uma verdade. Navegamos a olhar o sol e a nossa pele reflecte a terra que nos rodeia. Deixamo-nos embutir pela demanda visionária e pelo sonho e concluímos filosoficamente uma refeição quando contemplamos o pôr-do-sol, o grande acto mágico da natureza. Somos avatares de nós mesmos, como sombras triplas: a que somos, a que o sol projecta nesta areia fina e a outra que a terra faz de nós em direcção ao sol. Triplo eclipse onde algures, num qualquer ponto da geometria descritiva reside um quarto rosto que não vemos e que não se eclipsa. Tens a cabeça no sol, vives na lua e resides na terra. 


 

domingo, 17 de setembro de 2023

Diogo Vaz Pinto


https://sol.sapo.pt/2023/08/22/um-inedito-de-fernando-pessoa-num-tempo-em-que-seria-de-se-exigir-pao-para-os-vivos/ 

É absolutamente compreensível que haja um sentimento de indignação face ao problema do exercício de aproveitamento que se tem feito tanto com a obra como com a figura de Fernando Pessoa, no entanto, tanto a forma como o faz como as razões que Diogo Vaz Pinto apresenta para essa indignação são, no mínimo, bizarras. Parece o autor ter transbordado após a gota de água que foi a publicação numa revista de mais uns versos do Poeta, tornando-se esse acontecimento em notícia no jornal Observador e, enraivecido, coloca as mãos no teclado, sob o domínio de um espírito juvenil, revolucionário e vingativo e escreve um texto no jornal Sol, em pleno mês de Agosto, numa plena manhã no qual revela a sua fúria, perdendo as estribeiras e confundido tudo, a ver:

 

A notícia publicada pelo Observador sobre a publicação de um inédito do Poeta supracitado numa revista literária é referida como “espécie de publicidade” a essa mesma revista. Bem, se os jornais portugueses tivessem uma secção dedicada à publicitação gratuita de notícias sobre revistas literárias isso queria dizer que haveria potenciais leitores de revistas literárias e potenciais leitores de livros. Que todos os males fossem estes.

Em seguida, Diogo Vaz Pinto cita Cesariny, o mesmo que escreveu “Tanto Pessoa já enjoa” e que, embora este se queixe da falta de espaço para a diversidade, sempre teve o seu lugar assegurado no salão do meio literário entrando pela porta, tantas vezes facilitista, do surrealismo. Parece-nos sim, que esse autor sofria de uma certa inquietação própria dos talentosos inseguros. Indica o escrevinhador do artigo, após este breve apontamento sobre a indignação de Cesariny, e esta parte é muito importante como veremos, que Zenith aponta para o facto de estes versos de Pessoa em causa,  na sua forma, corresponderem a um determinado formato poético vindo da Pérsia não sem antes ser esta pequena composição de Fernando Pessoa apelidada pelo cronista de Verão como “breve e banal”, adiantando que o Observador nem reproduz nem se pronuncia sobre os versos em questão talvez para não estragar a surpresa comparando esta atitude às séries de streaming que alimentam espectadores passivos. Talvez tenha alguma razão, mas não parece ser grave a existência de uma notícia sobre uma publicação de uma Revista. E eis, então, que o especialista em poesia lança uma lança.... em África quando nos remete para um poema (?) escrito pelo mexicano Fabio Morábito e que segundo o seu juízo literário bem poderia passar como tendo sido escrito por Pessoa através de um dos seus heterónimos e passamos a citar o brilhante “poema”: “Pedem-me sempre poemas inéditos./ Ninguém lê poesia/ mas pedem-me poemas inéditos./ Para a revista, o jornal, a performance,/o encontro, a homenagem, o sarau:/ um poema, por favor, mas inédito./Como se soubessem de cor o que escrevi./ Como se estivessem cheios da minha poesia/ e precisassem agora de algo inédito./ A poesia é sempre inédita, disse o poeta no poema,/ mas eles ignoram-no porque não lêem poesia,/ só pedem poemas inéditos.” Gostaríamos de afirmar que este poema de Fabio Morábito é prosa e não poesia e nem sequer tem grande qualidade. E gostaríamos de perguntar a Diogo Vaz Pinto qual seria o heterónimo de Pessoa de sua escolha para o contemplar com esta prosa que de verso só tem a forma? Não encontramos nenhum, nem sequer aquele que à primeira vista seria o mais adaptado: Álvaro de Campos, fervente em pouca água, mas que nos leva na sua vertigem em espirais até ao céu. Poder-se-ia dar o caso de encontrar tal mexicano por entre os  semi-heterónimos e figuras criadas pelo poeta aos quais se pudessem atribuir estas linhas, mas o mesmo se passaria com as quadras de Aleixo ou alguns versos de Sophia de Mello Breyner. A Grandeza de Pessoa é evidente e variada. E se “A poesia é sempre inédita”, não percebemos a indignação à volta destas linhas de Pessoa. Perante os versos mexicanos, os versos portugueses do nosso grande poeta, são, segundo Diogo Vaz Pinto, uma desilusão e prossegue numa sumptuosa descrição do comportamento que se tem face aos grandes mestres da poesia para que o efeito teatral de apresentação de uma nova “tortura diária do lugar-comum (...) nos provoque agora a sensação de uma epifania qualquer”. Não contente com isso, ainda nos fala da poesia de Pessoa como utilizando recorrentemente a organização de “um percurso recomplicado por meio de uma  série de abstracções, produzindo um efeito de profundidade e uma espécie de melodia e sageza no tom, sem chegar a dizer nada, apenas glosando um mote há muito empalhado... " sendo isto  "...um dos efeitos retóricos mais comuns na mais estafada das poesias. O problema só se põe devido à monumentalização da Obra e da própria figura de Fernando Pessoa”. É, natural, dizemos, nós, pois a obra de Fernando Pessoa é monumental e a sua figura, impõe respeito: sacrificar a vida pela obra é, de facto, obra! Quanto à técnica que o cronista tenta descrever de forma rebuscada e que se resumia apenas em psíquico-labiríntica (muito à imagem do próprio cérebro, aliás) e ao facto de referir a sua banalidade e a sua falta de conteúdo, diremos apenas que é a opinião do cronista, em dias de hoje, diluída em tantas outras neste imenso turbilhão de colecções de 15 minutos de opinião.

Indigna-se também, e une-se a Alexandre O'Neill nessa indignação, com o culto ao Poeta, mais prolixo e duradouro do que o próprio acto de ler os seus poemas, cita-o nessa união, mas cujo tom é mais o de um lamento sobre esse culto do que propriamente a crítica a Pessoa que é inexistente nessa citação. Que se diferencie, por favor, o culto ao poeta da qualidade da poesia, algo que Diogo Vaz Pinto não faz, utilizando o culto para diminuir a obra do cultuado, chegando mesmo a afirmar algo, isso sim, anedótico, que o culto “torna impossível ler e avaliar com algum critério a infinidade de textos que escreveu, tantos tão desnecessários que deveria haver mais cuidado sempre que se cede à tentação de dar mais outro à estampa”. Contemplamos assim, nestas palavras, aquela pena antiquíssima, não tanto como a noite, mas, ainda assim, com considerável idade, que escreveu o Índex e mais tarde, fénix renascida, passou pelas mãos da Censura, apenas pintando os “papéis com tinta” com aquilo que era conveniente na altura. Estas novas gerações parecem ter nascido com um ditador sempre pronto a saltar... Enfim, alonga-se mais ainda, Diogo Vaz Pinto, como pioneiro na denúncia da bastardia de Pessoa, evoca Negreiros cuja contemporaneidade a Pessoa lhe permitiu a rebeldia de abrir os reposteiros de veludo pesado e vitoriano e arejar a casa da poesia. Se Negreiros abriu um reposteiro, Pessoa abriu o outro e a vanguarda entrou pelo avarandado em forma de raio de luz iluminando a Tradição... que se encontrava calmamente sentada a beber chá e a fazer acontecer tudo à sua volta,  mas isto são outros tantos que Diogo Vaz Pinto desconhece, e, ao evocar Negreiros, alonga-se na sua tontura “despessoada” (todos aqueles que têm falta de Pessoa) e afirma que os gestos de reconhecimento tapam a obra dos poetas e também as vergonhas de um país (para isso cita O´Neill) que não soube reconhecer o poeta enquanto era vivo e toma nos braços Pessoa como vítima da ferocidade com que alguns se açambarcam com “bolsas, viagens, congressos...”. O´Neill indigna-se, e bem, com os abutres, não com o poeta. Mas, despessoado como é, Diogo Vaz Pinto, aponta imediatamente a “esterilidade dos inéditos que ainda vão surgindo” e a “dificuldade em se estabelecer uma linha entre o que é dele ou não (no facebook isso acontece com todos, dizemos nós), aquilo que é material novo (estamos cá para investigar, dizemos nós), velho (velhos são todos os poemas e escritos, já têm uns aninhos, observado por nós), requentado, ou mais algum borborismo sem o menor interesse...” para o cronista, claro, afirmado por nós. Quanto ao requentado, fez-nos lembrar um professor universitário que tivemos que se mostrou muito irritado por andarmos a ler Mircea Eliade, acusando-o de estar ultrapassado (a velha mania compulsiva  das ciências antropológicas de se pensarem como ciências exactas), levando-nos a perguntar-lhe se Platão também estaria ultrapassado. Poesia requentada, por vezes, é como o vinho do Porto... em repouso em velhas arcas de madeira, mais tarde descoberta como rubis no fundo da terra. E conclui com Eugénio de Andrade que se mostra incomodado com a incapacidade de Pessoa ser ele próprio. É isso que lhe dá a graça, dizemos nós e ainda andamos à procura de alguém que seja igual a si próprio.

Por fim, a grande mágoa revela-se, aberta em penas de pavão: “... quem paga o preço são os poetas vivos, e sobretudo os jovens, que têm de contender e reger-se por esta forma de astrologia e de veneração do brilho cada vez mais distante de astros mortos.” Espantoso! Enterremos definitivamente os mortos depois de os matarmos outra vez, retiremos-lhes o brilho para que os jovens possam tomar o seu lugar porque este é um mundo cão, competitivo, destronador de antigos e distantes astros, um mundo que se quer novo, asséptico e sem ponta de História por onde se lhe pegue. Afirma o cronista solar, encadeador de outros sóis, em pleno Agosto, numa linda manhã de Verão, que nos deixamos influenciar pelos estrangeiros. Deduz-se que são muitos os estrangeiros que apreciam a obra de Pessoa e que só por causa disso o veneramos, porque somos naturalmente imbecis, se pensássemos pela nossa cabeça nunca veneraríamos Pessoa. Temos pois, a vanguarda das vanguardas, o paradoxo nacional e juvenil contemporâneo na sua glória: gostar de nós é não gostar de um dos nossos maiores poetas! Espantoso. É a nova geração em pleno, de boné poético colocado ao contrário na cabeça, com gestos de Rap e danças amacacadas. Pessoa? Esse “grafomaníaco que era menos de inventar do que se fazer passar, traficar, falsificações e cópias, redundâncias ao infinito...” Yah! Este Yah é nosso porque nos encontramos a ler Rap.

Ora, segundo este cantor de novos poetas a haver, o poema de Luís Filipe Parrado publicado na referida revista e que se encontra à esquerda (a esquerda não deve ser por acaso) das linhas de Pessoa é muito mais curioso e versa assim: “Nos seus poemas/ os poetas dizem muitas vezes/ que o mais importante,/ o que marca uma verdadeira diferença/entre o antes e o depois/ é o apelo da beleza e do terror,/ o ímpeto de rasgar o véu da carne/para chegar ao osso./Aí, onde dói./ Aí, onde o excesso de luz cega./ é o que dizem os poetas./ muitas vezes. /Nos seus poemas./ Mas, para além de Homero/ e de Borges, diz-me tu, / que outros poetas cegos conheces?”. Temos más notícias, isto não é poesia, de poesia, e mais uma vez, só tem a forma. O urinol de Duchamp já entrou na meia idade e, desde ele, a arte é arte quando, das duas uma, ou o autor diz que é arte ou quando está presente num espaço de exibição de arte e é por isso que as artes plásticas estão como estão, uma desgraça. O mesmo se passa aqui, não é por ter a forma de um poema que é poema, mas a modernidade diz que é. A antiguidade diz que não. E andamos nisto. Estou em crer que Diogo Vaz Pinto aprecia muito prosa, pela amostra dos dois poemas que escolhe transcrever, beneficiados com a sua crítica benigna, o mexicano e este português. Em comum: não são poesia. Como já estava muito à esquerda e, não vá o diabo tecê-las, conclui a sua opinião com um exemplo do que se passou na época de Estaline, quando uma geração de poetas foi “delapidada” por causa deste hábito irresistível de venerar os mortos. Assim, os pratos da balança ficam equilibrados. Os Russos também fizeram o mesmo. Nada como os estrangeiros para nos apoiarem... e, mesmo no fim, deixa-nos um apelo escrito pelo russo Maiakovski que acaba assim: ”Abandonem de uma vez por todas a veneração por meio de jubileus, centenários, a homenagem por meio de edições póstumas. Artigos sobre os vivos! Pão para os vivos! Papel para os Vivos!”. Pois, o Rei morreu, viva o Rei! Mas isso é numa monarquia... com Reis (um pouco diferente de meros presidentes, porque quanto há lugar para todos nos retratos reais e na memória do povo, algo que a Democracia actual desconhece). Viva a Revolução!

Então, vamos dar uma olhadela a essa “decepção” que são os versos de Pessoa e que incomodou tanto Vaz Pinto, rezam assim:

 

A ave canta livre onde está presa.

O servo dorme e o sonho lhe é surpresa,

Liberta-te, mas nega a liberdade.

Poder e não querer, eis a grandeza.

 

Não é necessário estudar muito Fernando Pessoa para se compreender que, mais uma vez, se trata de um poema iniciático. Vivemos, cantando presos na nossa prisão, que é corpo e terra, somos servos com a capacidade de sonhar e o sonho pode ser uma porta para a Libertação (vide o que é a libertação em termos iniciáticos), atingida a liberdade esta só é total se a nossa vontade prevalecer para além dessa mesma liberdade. Curiosa é a utilização da ave e a tal forma em estilo persa, sabendo-se de cor a importância das aves nessa cultura arcaica à qual Camões não foi indiferente e também curioso é o papel dos sonhos na Iniciação tão bem estudado por Henri Corbin. E diríamos que este é apenas o primeiro véu a ser retirado destes versos. A Grandeza reside na Vontade e a liberdade, abaixo dela nunca se perde. A Vontade é condição sin qua non (as minhas desculpas a Diogo Vaz Pinto pelo latim que é antigo) não há iniciação. A iniciação é grandeza. Vai um pouco na esteira daquilo que é dito por alguns budistas “Se vires Buda no caminho, mata-o!”. O mesmo princípio, Tradicional. A Iniciação é, aliás, Tradição e, das duas uma, ou andamos nesta terra para sermos jovens e experimentalistas até aos noventa anos de idade ou, a determinada altura do percurso de vida, tal como aconteceu com Almada Negreiros, damo-nos conta de que há mais. Este poema diz-nos que há mais. Eis a grande reviravolta na vida, maior e com mais grandeza do que aquela que há em qualquer Revolução. Revolucionários há muitos. Iniciados, poucos. 


sábado, 16 de setembro de 2023

O lobo mau


 Cada vez mais, está o mundo povoado de pequenas guerrilhas relativamente às quais o grande declínio da humanidade é perfeitamente indiferente. É por isso, Professor Marcelo, que é cada vez mais difícil governar. As marchas de luta são dispersas e extremamente cirúrgicas, uns lutam por melhores salários, outros por casas, outros por médicos, outros pelo clima, outros por outro treinador de futebol e os governantes só tem duas opções: ou ficam indiferentes ou, caso as eleições estejam próximas e em jogo, lá vão, quais bombeiros demasiado gordos para andar habilmente, tentar apagar pequenos fogos a troco de alguns votos. É assim aqui, é assim em todo lado onde haja democracias. O grande papão que é o declínio da própria espécie nem sequer é lembrado ou questionado acerca da sua existência. Torna-se, portanto, um pouco doloroso acordar todas as manhãs pois metade do corpo agradece por estar vivo (o lado egoísta) e a outra metade (o lado altruísta) olha em volta, assusta-se, leva as mãos ao rosto e diz: “Oh, não!” e o primeiro instinto é o de voltar a adormecer. E, durante o resto do do dia, andamos coxos, a não ser que se encarem as coisas como sendo perfeitamente normais dentro de um contexto de queda geral. Quando vamos a cair de uma grande altura, parte de nós sabe que ainda está vivo, e parte de nós adivinha o destino final. Sabendo isto, até se pode sorrir e dizer o quão são detestados os seres humanos no estado em que se encontram. Depois? Depois é só viver e fingir que se obedece aos mega-estímulos que nos rodeiam: ser educado, atencioso, acenar que sim, em concordância absoluta quando se fala com alguém que se encontre numa qualquer guerrilha, praticar algumas boas acções que ficam connosco, sem publicidade, não votar de uma ou de outra forma:  ou nem sequer pôr os pés nas urnas ou aproveitar o domingo soalheiro para um passeio, passar pela urna e escrever algo como: não me apetece votar. Estivemos lá, mas não estivemos. O alheamento profundo é, nesta época histórica, necessário e conveniente se quisermos viver com sanidade mental. O estado morto-vivo é a grande glória da sobrevivência é, aliás, o estado normal de qualquer ser vivo que esteja em queda livre: ainda não morreu, mas está lá perto. Chamo a isto o alheamento superior, depois há o dos loucos que ou caem na depressão e drogas concomitantes, ou no seio de uma qualquer guerrilha ou ainda na alegria genuína (ou loucos são genuínos) de se pensar que vivemos no melhor dos mundos, na melhor das épocas e que no tempo da outra senhora e do outro senhor era bem pior porque não tínhamos nem água em casa, quanto mais água quente! São os chamados loucos por conforto e estão habilitados a fazer publicidade à Conforama. É isto que se arranja neste momento. Se se observar bem, aqueles que nos rodeiam estão sempre num ou noutro espectro e até podem saltitar, da depressão à guerrilha, da guerrilha ao conforto, normalmente até é este o percurso, mas também há casos em que são capazes de viver em simultâneo em dois ou três planos desses tipos de alheamentos, são os bi-polares e os tri-polares.  O alheamento superior, por seu lado, pode descer ao nível de qualquer outro alheamento que lhe esteja abaixo, por quanto tempo for necessário, isto se estiver a morrer de tédio. O tédio é o grande problema do alheamento superior. Convenhamos, é superior, mas não é perfeito. Tem as suas coisas, os seus humores e pode ser impaciente por não ver melhorias em nada. Também tudo isto é normal e faz parte do declínio. Qualquer alheamento, por muito superior que seja não escapa à queda, a essa grande onda, a essa grande boca do lobo mau, escancarada com todos nós a escorregar pela sua goela, em queda livre. E Jonas a rir-se, cá fora, à espera de alguém que saia para lhe dar um grande abraço.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

O estranho caso da filosofia expectante


 Dei-me conta do estranho caso da filosofia expectante quando subi ao monte e ali fiquei a viver. Sob aquele ângulo, era possível ver as coisas de outra maneira. Digamos que a filosofia nunca foi uma mulher jovial, mas, contemplada dali, parecia ainda mais velha. Não uma velha qualquer, mas daquelas que nunca casaram ou enviuvaram muito cedo e muito cedo também se deram contam de que estavam no mundo um pouco solitárias, por opção ou por destino. Como elas, a filosofia tinha duas tendências, ou a de se sentar nos cafés ou a de ficar em casa, isolada dos seus semelhantes e rodeada pelas suas dezenas de gatos, ou seja, ou tinha pensamentos que trocava e divulgava através de seres humanos que se pré-dispunham a uma convivência social e a falar sobretudo uns para os outros, ou encarnava em filósofos solitários, rodeados pelas suas dezenas de pensamentos, num labirinto de cabeças e caudas onde vivia feliz, mas alheada do contacto social. Nunca foi jovem nem jovial, a filosofia e sempre foi altamente desconsiderada sempre que desaparecia. O que mais me espanta, vista daqui, é que, embora não sendo jovial, ela conserva uma memória perdida dessa juventude traduzida na capacidade de ser expectante. É isso, aliás que a anima, senão encarnaria em gente vulgar, a duas dimensões e só se preocuparia com a lista para o supermercado. O que espera, então a fiosofia? encontrar a sabedoria. É assim que se auto-define e o filósofo é uma espécie de amante cortês que deseja “tornar-se no objeto amado”. Para isso, anula-se um pouco (nunca demais) e deixa que essa filosofia, envelhecida pelo passar do tempo, tome conta dele. Com ela vem em primeiro lugar, essa expectativa, essa sim, sempre jovem e fresca, de encontrar a virtude da sapiência. Há pessoas que conseguem estar assim a maior parte da vida, porque aquilo que têm em comum com a filosofia é exatamente essa capacidade de criar expectativas. A fiosofia e os filósofos foram feitos uns para os outros. Estão bem uns para os outros, como se costuma dizer, quando as coisas não correm muito bem. E com a fiosofia as coisas nunca correm muito bem. Podem parecer que correm, quando saem em formato de livro e brilham ainda provindas do calor da forja, ou podem parecer correr bem, nas trocas de ideias entre filósofos sentados na mesa da santa tertúlia (esta é uma santa muito especial para os filósofos), mas depressa se vê que há algo de artificial nas suas atitudes. Como algumas velhas, sentadas à mesa do café ou encerradas na rotina caseira, repete-se muito. Embora aquilo que a anime seja a expetativa, a noção de devir, esbate-se a pouco e pouco, com o passar dos anos. É por isso que a filosofia é velha e não jovem. Os jovens não tem expectativas, movem-se pelo devir fora com a certeza de que vão encontrar alguma coisa. A filosofia, sofre de alguma insegurança e, por isso, ou precisa dos outros na sua mesa de café ou precisa dos gatos espalhados pela sala, pelo quintal e pelos telhadas. Não sabe estar só. O lugar da solidão não é o da filosofia, por mais que os filósofos se digam incompreendidos ou desacompanhados, estão sempre acompanhados ou pelos seus pensamentos ou pelos pensamentos dos outros. São velhas carentes. A sabedoria, por seu lado, é tão jovial que se entretém sozinha sem necessitar de ninguém e está embutida no devir. Aquilo que os filósofos mais almejam é exactamente aquilo que não são. E pressentem, nervosos, que se encontrarem alguma vez a sabedoria ficarão inevitavelmente condenados à morte. É por isso, que, daqui do alto do monte contemplo com estranheza estes estranhos casos de filosofia expectante e, sobretudo, a sua longevidade. É admirável conseguir passar tantos anos sem fazer coisa nenhuma a não ser pensar para si própria ou para os outros. É do alto dos montes que se tem uma melhor visão sobre o que se passa lá em baixo. Felizmente, Camões também escreveu: “Portugal é um outeiro”, mas Camões era um poeta, não o filósofo perdedor de tempo. E, com os poetas, a sabedoria mantém excelentes relações ao passo que não conhece nenhum filósofo, nem sequer para trocar algumas cartas. Algumas dessas cartas são muito conhecidas. Até pelo povo miúdo que parece viver sempre apenas entre duas dimensões. Mas não vive. Vive apenas alheado da filosofia porque isso é coisa para doutores. Mas canta por esses campos, a poesia viva que brota do seu coração. E canta bem, como os pássaros. É por isso que Portugal é uma país de poetas, não de filósofos e se algum português é filósofo é porque meteu a pata na poça. Às vezes fica tão lamacenta que se torna areia movediça, e de lá não sai. Aliás, esse é o problema da filosofia: não tem saída.

domingo, 10 de setembro de 2023

A Beleza


Os cavalos avançam naquela praia. A forma como correm é em si mesma uma mensagem de liberdade. As crinas ao vento e aquele focinho comprido que, de vez em quando, inclinam para baixo numa expressão mista, entre a submissão e a rebeldia. Uma corrida desses cavalos é poesia pura, neles encontramos os nossos próprios movimentos, mais até do que nos pássaros, estes mais constantes. Mas os cavalos assim, velozes e com movimentos súbitos parecem traduzir a nossa instabilidade, a nossa inquietação e o nosso profundo prazer na liberdade. E há tanta beleza neste mundo que conhecemos por tão breves anos em absoluta consciência. Devia haver uma educação pelo silêncio e pela contemplação, mais até do que por aquelas modas que há hoje de colocar as crianças a meditar. O silêncio e a contemplação são muito mais acessíveis do que uma meditação herdeira de uma técnica ascética e complexa. Uma educação em que se dê a mão em silêncio só interrompido para chamar a atenção para as coisas lindas deste mundo. Uma paragem do movimento da alma, em que esta se une à paisagem estática e eterna. Pequenos gestos são maiores do que grandes teorias. Nem nos damos conta da importância deles e ainda bem. É por isso que, por vezes, nos lembram de qualquer coisa de que não nos lembramos. Podem ser as coisas mais inocentes e pequenas que fizemos naturalmente, mas que marcaram alguém que nos lembra delas. São paragens profundas no movimento da alma onde esta mergulha e daí retira uma verdade qualquer, daquelas vívidas, inseparáveis do ser. Lembro-me de passear por um centro comercial com Dalila Pereira da Costa e da sua paragem em frente a uma montra com serviços de porcelana. Parou, olhando para o padrão dos pratos e das chávenas como se olhasse para um tesouro. “Que lindo!”, disse, mas com tal alegria e maravilhamento que não mais me esqueci do serviço de mesa. A educação pelo belo parece-me mais importante do que a educação pela revolução. O belo não necessita de rebeldia, apenas de rendição. A rebeldia vem mais tarde, contra o inestético. Uma sociedade que não reconheça o belo está condenada a desaparecer e a nem sequer ter um vislumbre da sua perpetuidade. Desaparece como um mau sonho que se quer esquecer. A beleza é uma exteriorização da alegria do mundo. Não há volta a dar quanto a isto. Continuamos a admirar a escultura antiga, a arquitectura antiga e os ecos que nos deixam de uma outra época para onde viajamos sem querer, neste crepúsculo que nos rodeia. A beleza estende-se a tudo, tem uma capacidade enorme de ser a grande viajante do cosmos, de tocar com os seus dedos os recantos mais escondidos, de embalar as almas mais atormentadas. É a grande senhora do universo. A grande educadora, a grande conservadora e inovadora. A sua dança é maior do que a de Kali. É feita do ouro mais incorruptível e do cristal mais puro. Sabendo isto, as coisas são mais fáceis e as casas exalam a paz que as almas têm. E então, e só então, o espírito desce.


quarta-feira, 6 de setembro de 2023

sábado, 2 de setembro de 2023

A distopia da disruptividade



Depois de apresentar a sua pintura que consistia numa cara que ocupava toda a tela, feita com pinceladas irregulares, com um olho de cada cor e uns traços que esquartejavam a cara em locais perfeitamente aleatórios,  a pintora afirmou que seguia o seu próprio caminho, que adorava quebrar as regras e construir novas ideias. Em suma, o lugar comum de todos os que desejam ser artistas, mas não o são porque aquele dom estranho, que nada procura e tudo inventa, não lhes foi dado, para além de que um artista não anda à procura de novas ideias, isso andam os cientistas quando querem resolver alguma questão mais ou menos particular do universo que nos acompanha e que já tem em si todas as ideias de que é capaz. Mas insiste-se em ser-se artista porque se pode. E poder é querer e querer é poder. De maneira que a caratonha mal pintada, inestética e tosca lá foi vendida por alguns trocos a quem reconheceu na caratonha a sua própria fealdade de espírito. A arte, ou é assim, ou é interventiva e sem graça nenhuma. Anda o neo-Bordalo nessa vida de intervenção, de ativismo, seja contra as Jornadas papais ou contra as Touradas animais (que as humanas não interessam para nada), e eis a declaração, o protesto, a chamada de atenção que poderia ser feita de qualquer outra maneira: tanto dá colocar uma passadeira no chão com notas de euros, como passear nu no Rossio com um cartaz a dizer que o Papa vai nu por ser humilde e desapegado, o resultado é o mesmo: nulo. Todos juntos, estes artistas, embora se pensem únicos e muito originais, fazem parte um um movimento global, ao qual se poderia dar o nome de “distopia da disruptividade”, todos querem quebrar regras, colocar as “coisas” em “questão”, chamar a atenção para aquilo a que todos acham injusto, ter voz ativa e política nos centros de decisão, bater-se por uma causa, roçando, com mais ou menos vigor, as chamadas ideologias, digo mais ou menos, porque querem ter novas ideias embora nunca se consigam distanciar da utopia ideológica por completo. São distópicos e utópicos em simultâneo. Tanto a palavra distopia como a palavra disruptividade, estão na moda e são, de facto, acção concreta e não ideia fechada em livros poeirentos por encontrar numa qualquer biblioteca. São, estes artistas, verdadeiros ditadores, apoiados no poder da vontade e na vontade de poder.

Aquelas séries inglesas que se passam nas grandes propriedades, com a classe dos serventes a viver em baixo e a classe aristocrática a viver em cima são autenticas aberrações para os distópicos disruptivos. E se alguém conseguir ser a casa toda, e tê-la dentro de si, isso ainda é pior. Alguém que tenha a casa toda. passa com o pano do pó pelas madeiras retorcidas por aquele que aprendeu com outro, mais velho, o ofício de esculpir a madeira, trata dos tecidos com toda a atenção e vai polir as pratas até que todo o salão resplandeça nelas, isto num minuto, porque no outro, já fala com os agricultores que tem sobre a sua alçada nos seus domínios, resolve crises e participa nos partos dos bezerros, antes de se vestir, com a ajuda do criado de quarto, para o jantar, normal e de família, jantar esse que foi confeccionado por si com receitas vindas do fundo dos tempos acrescentadas com novidades improváveis dos maiores chefes da cidades das luzes. Alguém que tenha a casa toda dentro de si, a qualquer momento, a qualquer hora, terrenos limítrofes inclusive, é o verdadeiro escândalo silencioso e solitário neste mundo de analfabetos em arte. A casa toda dentro de si, com os retratos ao longo da escadaria, os gessos trabalhados dos tectos, as flores cuidadosamente escolhidas e dispostas em grandes jarrões tornando a casa num jardim invisível é absolutamente incompreensível para estes artistas modernos poderosos que não conhecem o espaço de liberdade numa casa toda. Possuem apenas uma fração da realidade e, cegos que são, nessa fracção intuem toda a realidade. Possuem todos a mesma linguagem, os mesmos argumentos, a mesma vontade de destruição dos velhos valores que desconhecem por completo e têm por isso um inimigo invisível, mas que os leva a estarem todos no mesmo barco nessa luta distópica e disruptiva em nome de uma utopia indefinida e maior. O belo não tem lugar, o equilíbrio não tem lugar, a história não tem lugar, o ambiente não tem lugar, a harmonia é o maior pavor, invisível, porque não a veem, mas suficientemente pressentida para se armarem cavaleiros inovadores e lutarem contra ela. O grande susto deles, é o belo. Torcem o nariz quando o veem e colocam-no num silêncio distanciado, numa urna parada no tempo, jamais desenterrada porque se fosse, isso seria largar os fantasmas malditos de um tempo sem ideologias nem ideias novas. Nascer com a casa toda dentro de si e percorrer os seus andares, desde a cave mais funda onde o vinho descansa até ao sótão mais alto onde as memórias se acumulam é estar demasiado perto de toda a realidade. E estes novos artistas, que não o são, detestam a realidade, debatem-se contra ela com todas as suas forças e nem sequer são vanguardistas porque se repetem uns aos outros como gritos de um bando de gralhas que passam e varrem tudo à sua passagem. Ficamos dentro desta solidão desta casa cheia de tudo, onde, para lá da sua extensão se ergue a grande ditadura. Mas a nossa casa é cheia de tesouros, daqueles sem fim, que se desdobram e se erguem à nossa passagem, e se revelam sempre novos, dependendo da luz que é sempre outra que não a de ontem. A perpétua novidade do antigo que pisca os olhos, enamorada, à eternidade. Maggie Smith, numa dessas séries inglesas, pergunta, espantada: “O que é um fim-de-semana?”, isto porque nunca tinha trabalhado. Os criados perguntariam o mesmo, porque trabalhavam todos os dias. Ter a casa toda dentro de nós, é isto. O fim de semana disruptivo não existe. E a distopia não é necessária a quem vive na utopia. A casa é o espaço da verdadeira liberdade, longe da escravatura de se querer ser qualquer coisa, ou de se querer ter poder para o que seja e o caminho para ela é só um: nascer já assim.