sexta-feira, 29 de julho de 2016

Essa esplanada tem vista para o mar? Todas têm...


 
Todas as palavras são o silencio do que vi. Vejo essas cadeiras espalhadas e nós sentados nelas, bebendo um tónico ou não, de perna cruzada, essa esplanada de gente que vem e se senta, que vem e que trás mais alguém que se levanta e sai, que se estende pela tarde na esperança de uma companhia morna. Vejo esse sentido de estar a olhar como se nele se procurasse a verdade no rosto deste e daquele. Vejo a alma calada que a todos vê, metida por dentro do silêncio que não retive.
Procuram saber todos os rostos que se cruzam, nesse passeio de fim de tarde tendo o mar como plenitude e os outros sempre por ansiedade. De se saber quem é, de se saber o que pensa, o que diz ou tem a dizer. Vejo multidões de gentes que tudo querem saber. Do outro, nesses passeios diversos da cidade, da praia, do campo que já pouco campo se sente assim com tanta gente que por ele passa.
E em mim, rostos param também, atentos aos meus olhos perguntando-me sem perguntar: quem é? O quê?
Todos se envolvem nessa explanada, nessa conversa de nada mas que tudo diz das crenças e dos dias onde tudo se passa onde tudo se comenta e se fala deste e daquele e da curiosidade que neles há. Nas perguntas dos pormenores dos trabalhos, onde estão, onde ficaram, para onde vão o que têm ou o que não têm, nos comentários sobre o estado do tempo que é sempre toda a gente embutida nele.
 
E olhamo-nos da mesma maneira que nos perguntamos porquê, mas se fizéssemos a pergunta “porquê” estremeceríamos de medo e então camuflamos o “porquê” nos outros e eles são todos os “porquês” que não ousamos perguntar porque a filosofia custa sempre uma lágrima qualquer e os outros talvez nos deem a possibilidade de um sorriso.
 
Dói perguntar porque a dúvida suspende-nos no ar quando é verdadeira. Porque é um primeiro voo de um pássaro…
 
Ah! Tantas caras e tantos olhos e tantas bocas e tantas perguntas sobre elas que são sempre as mesmas. As mesmas que trazemos do berço à cova, as mesmas esplanadas no Verão, as mesmas mesas de café no Inverno, os mesmos comentários, as mesmas horas sem uma rosa que nos trespasse.
 
E juntam-se alguns ao meu redor esperando um outro “porquê”, que seja diferente e que os tire dessas horas arrastadas das mesmas perguntas. E nada sei dizer porque só sei ver e de tanto ver apenas escrever. E tudo o que é sério só encontra lugar no papel porque as palavras ditas em voz alta fazem barulho demais no sossego que a alma tem se só lê. Porque todas as palavras ditas em voz alta soam a teatro e a cenário e a voz é como se nunca fosse tão perfeita como aquela que lê para dentro da nossa alma. É como se a manifestação da voz soasse a inconsistência pela vibração cheia de atrito no ar, e que a voz de dentro, imanente à presença atordoante, soasse de cristal, puro som,  no nosso cosmos interno.
 
Há nessa voz de dentro que nem se ouve quase a ausência de palavra. Como se essa fosse o traje do sentido. E assim, todos os sentidos explodem por dentro, nessa voz sem palavras que tudo assimila e ecoa na simultaneidade da nossa presença.
 
E juntam-se a meu redor, vêm em busca da “conversa interessante”, que não sei ter, em busca da distracção das miudezas do mundo, em busca de uma grandeza inesperada, e só lhes sei dizer que tudo o que escrevi foi esse silencio que retive. E que passei pelo mundo invisível, e que assim eles também, invisíveis uns aos outros, por não saberem que o amor, quando encontrado é só sentido absoluto das coisas, sem palavras que o valham ou leituras que o compensem.

(Cynthia Guimarães Taveira)

 

Do ver as estrelas até ao “até ver estrelas”

 
 
 
O sistema económico em que estamos absortos, para não dizer, submersos, prende-se com uma série de defeitos, muitos deles ligados à má relação que se tem com o tempo.

René Guénon sexualizou a questão do espaço e do tempo, concedendo o primeiro ao masculino, porque os homens caçavam no espaço e construíam no espaço e o segundo ao feminino porque as mulheres geravam no tempo. A questão da sexualização quando ultrapassa a fronteira do símbolo pode ter como consequência exactamente o mesmo erro que pode ocorrer quando se lê um texto considerado sagrado: a leitura literal do texto sem que ocorra profundidade qualquer nesse acto de ler e mesmo de pluralidade de interpretações. A palavra, entre as suas múltiplas facetas é também simbólica. Exactamente como qualquer símbolo, quando reduzida a um só significado perde a sua mobilidade e, ao perdê-la, perde a sua capacidade de ser coisa viva.

Temos vindo a ver ressurgir um certo gosto no paganismo, produto, em grande parte, de um crescente desejo de se regressar “à terra”, “às origens”.  Perfeitamente compreensível num mundo que construímos cada vez mais artificial. Tais movimentos são vistos como um “ai Jesus” pelas religiões monoteístas que assim assistem perplexos  (e às vezes em pânico) áquilo que consideram, por um lado uma “involução”, na base da total crença que a conquista de um só Deus é uma conquista benigna para a humanidade e, por outro, porque tais movimentos seriam a entrada no inconsciente ou subconsciente das religiões coisa que as mesmas optaram, na maioria das vezes, por não falar delas (quantas vezes apelidados de demoníacas) ou por outro ficando tais áreas reservadas a uma elite, secreta mas convertida a uma instituição (veja-se o caso de Dante e do Catolicismo).

A perpétua queda do homem no materialismo foi acompanhada pela completa inaptidão para simbolizar.

A má relação com o tempo, em termos simbólicos terá, para uma cabeça simbólica, relação com a má relação com a mulher/planeta terra/mãe natureza.

Antigamente, homens e mulheres (porque não creio que vendassem as mulheres) observavam as estrelas. O passar delas e o seu percurso pelo céu. Construíam, em seguida, autênticos observatórios astronómicos que tentavam estar em sintonia com o movimento temporal dos astros e corpos celestes. A noção e o conhecimento do tempo pareciam tão fundamentais que se construía em redor de tal coordenada terreste.

Hoje o homem, tal como afirmou Mircea Eliade, foge para a frente. Tem medo do tempo. O tempo é o grande devorador dos homens. O problema é que, nessa fuga, os gestos dos homens provocam a própria aceleração do tempo e consequentemente a contração do espaço. O tempo passa mais depressa quando o espaço é contraído.

Dizem que houve um dilúvio e que a espécie humana esteve em perigo. Se isso é verdade, e se a mulher é aquela que transporta e gera a espécie humana dentro do seu próprio ventre, então ela veio a adquirir, em termos simbólicos um excesso de zelo traduzido nos inúmeros tabus sociais de que foi alvo ao longo da história e ao longo dos monoteísmos. Ainda não ultrapassamos o trauma do dilúvio. Aliás, toda a nossa cultura tem como base esse acontecimento. A reprodução em massa da espécie humana é um sintoma de um trauma colectivo que se disseminou por formas religiosas traumáticas elas mesma. A figura feminina tem sido alvo de excesso de zelo. Sob as mais diversas formas, positivas e negativas, mas em excesso. Essa relação foi tendo importância no modo como se percecionava o próprio tempo. E hoje não entendemos o tempo da mesma maneira que Freud dizia não entender as mulheres…

A economia não pode ser sustentável enquanto no nosso mais profundo fundo traumático não esquecermos, de vez, o dilúvio. Enquanto no nosso fundo mais arcaico reinar a ideia de que ter um filho é um dever, um dever social, uma prova de amor, uma exigência da família e dos vizinhos, um desejo animal de um qualquer relógio biológico que se impõe à mulher como se esta fosse um animal com períodos de cio e não um acto simplesmente natural, enquanto não se entender que são os próprios gestos humanos que geram o tempo e a percepção que temos dele iremos sempre entrar em guerras dualistas pelo controlo do planeta.

Antigamente procurava-se andar de acordo com os ritmos cósmicos. Onde é que isso já lá vai. Começa logo pelo horário de trabalho e por relógios que não se adaptam à estrela do nosso sistema solar. De Inverno levantamo-nos de noite e recolhemo-nos quase de madrugada. O desfasamento com o tempo do próprio universo produz um desfasamento do homem consigo próprio. As consequências estão à vista. Pior que o dilúvio foi o trauma dele.

As populações ligadas à agricultura ou à recoleção tinham ainda alguma relação com o tempo. Nós perdemo-la por completo. E como a perdemos a única maneira de a recuperar será por via intelectual uma vez que já ninguém tem uma relação com o tempo natural.

Intelectualmente talvez consigamos lá chegar e, se formos capazes, isso implica a alteração total da relação que se tem tanto da sexualidade como com aquela que se tem com o tempo. Xiva, o grande dançarino cósmico na sua dança erótica sabe que a música se desenrola no tempo. O seu gesto no espaço é uma consequência do modo como percepciona o tempo. O seu gesto provoca o tempo e o espaço em gesto.

A economia tem a ver com isto. A economia é um termo que quer dizer “governo da casa”.  Neste momento até vimos estrelas com os embates. O que é muito diferente do que ficar a ver as estrelas.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

A verdade e a doutrina

Dalila Pereira Da Costa é uma mistica portuguesa que escreveu livros. Como todas as figuras de verdadeiro destaque nacional (e não aquelas que aparecem recorrentemente na TV ou nos jornais "culturais" ou nas secções culturais "anichadas" dos jornais gerais e que de "nichos" culturais nada têm, antes pelo contrário, falando sempre da mesma "espécie" de cultura que alterna entre os nomes sabidos de cor e com um prestígio de décadas e com figuras da "moda" porque a cultura está hoje entrelaçada com a moda de tal forma que quase não se distingue, às vezes... Dalila Pereira da Costa, dizia, é uma figura de destaque nacional e, como todas elas, desconhecida. Esta verdade é inevitável para quem leu a sua obra, e que são muitíssimo poucos. Mística, poetisa, visionária, ensaísta que coloca Eduardo Lourenço num cantinho no qual pouca ou nenhuma luz brilha, foi, como é usual neste país, abarbatata por leituras tendenciosas querendo colocá-la, por vezes, num altar da Igreja Católica com umas flores por baixo. O esforço foi quase inútil pois na sua obra vigoram bastantes detalhes, para não dizer imensos, de experiências e observações que contrariam as doutrinas da referida instituição.
Possuindo um mundo interior vasto e rico a sua capacidade de análise feita a partir de vivências pessoais (intransmissíveis por serem isso mesmo, pessoais), paira acima, com grande frequência, de qualquer ideia pré-estabelecida em e com  vigor numa qualquer carta fundamental de princípios.
Um dos pontos em que isso se revela está no seu relato de vidas passadas feito em consciência. Sem margem para dúvida, Dalila relata-nos, por exemplo, o Porto de outras épocas, com outra paisagem e outro sentido de tempo. Os actos imaginários, são fantasiosos para qualquer mente positiva e formatada da época. Os actos imaginários, para outras sensibilidades, contêm em si, toda a promessa de experiência e seu encontro com a verdade. A fantasia confunde-se com a imaginação para os primeiros e é mero infantilismo para os segundos.
Nesses relatos de outras vidas nos quais o véu do tempo é levantado, há um "distanciamento" tal como a autora escreve, face ao próprio tempo como se essa fosse uma condição necessária para que um outro tempo fosse visitado. É na distância de nós mesmos que tudo nos é dado ou apresentado.
A re-encarnação, aceite no oriente, torna-se motivo de reflexão.
Deve tornar-se motivo de reflexão. Não pelo motivo enganador da chamada "evolução espiritual" tão em vigor agora como se se tratasse de uma carta de condução com pontos, mas motivo de reflexão absolutamente materialista, com consequências materiais. Se voltarmos a esta terra voltamos à própria matéria que aqui deixámos. Tão simples quanto isto. Se deixarmos uma casa em ruínas é à casa em ruínas que voltamos. É o chamado "consciente colectivo" de que ninguém fala tão distraídos que andamos com o inconsciente e por isso mesmo com a inconsciência ou pura fantasia.
Há uma casa de "férias prolongadas" possíveis a que vulgarmente se chama céu. E há aquela de uso frequente que é esta. Se é um jogo de espelhos isso fica para as teologias que são sempre matérias vagas em vagas navegando nas vagas do vento.
A visão materialista das religiões e das políticas diz-nos "aí de nós, que planeta vamos dar à nossa descendência!" e no fundo não se rala. Mas e se a descendência, mais tarde ou mais cedo formos nós? Nós.
E se nós por mero capricho do destino voltássemos com a consciência exacta de que somos nós? Talvez já se perceba que o dilúvio tenha sido um mar de lágrimas e que o próximo seja um mar de fogo. O fogo é a consciência. Com tudo o que ela pode trazer. A memória, inclusive. É esta a questão fundamental que Dalila Pereira da Costa levanta quando fala de outras vidas. E até trememos.


(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 12 de julho de 2016

A desordem inaparente da escrita

 
Há um provérbio judaico que diz que Deus criou o homem para que este lhe contasse histórias. Como se toda a criação do mesmo não lhe chegasse. Há na Criação, independentemente de esta ser queda ou não, uma ordem que se confunde com a matemática. Conhecendo a exactidão da matemática conhecer-se-ia a exactidão de Deus. O sustentáculo do mundo seria o número e o “jogo de dados”, (que Einstein não diz quantos são, nem os jogos, nem os dados) seria, para quem busca o conhecimento, o conforto da probabilidade e o leve esvoaçar do número como símbolo. As histórias seriam a desordem aparente de um mundo inteligente, mas fechado. Qualquer história de vida ou historieta principal seria arquétipal, ora inserida no grande enredo ora inserida no pequeno enredo que atravessa o drama teatral. De uma maneira ou de outra, viveríamos confortavelmente incrustados no drama da nossa presença. A comédia estraga tudo porque se ri do drama. A poesia invade como ondas a cidade fazendo-lhe tremer os alicerces. A profecia encarna o demónio da sabedoria e a graça o eterno problema do imprevisível e sobretudo da liberdade. O drama da nossa presença permite que haja comédia, poesia e graça.

A conversa com os deuses permite-nos perceber o nosso engano. O engano de não os sermos e o engano de os sermos. Os deuses são demasiados humanos… porque o poder é o antónimo de ser-se humano, pois este possuindo todos não possui nenhum.

A improbabilidade do sonho mais incongruente acontecer coloca em causa o jogo das probabilidades. Porque qualquer pessoa entende que não há sonhos improváveis e que a sua probabilidade de acontecer no real que se nos apresente é uma probabilidade. O acto criativo é por isso aquela probabilidade mais alta porque permite o improvável. Fora do acto criativo há o aprisionamento incondicional na matemática das histórias arquétipais, ou entendidas como tal. O “dispor” das formas que se nos apresentam e a sua permanente reorganização é apenas o lado externo do processo criativo, porque os deuses andam à solta para dentro e para fora de nós. A eternidade não é um cristal, até porque frio, só e  na escuridão do cosmos não serve para mais nada a não ser para existir. E o existencialismo é tão cansativo como a mais pura animalidade. Resume-se a uma entropia que mais tarde ou mais cedo expira.

O pressentimento da melodia, dirá Damásio, intuitivamente, resume a herança de luz que nos salvaguarda, não pelo acto imediato de identificação mas pelo acto de fusão;  identificação tem o seu quê de racional e de intencional, a fusão é irracional e sem intenção. A animalidade superior trata desta questão. O homem caminha para ser irracional e sem intenção, só assim se funde na consciência que falta aos animais. Só assim conhece. O leitor é o criativo por excelência:

“O leitor sabe que está consciente e sente que está em pleno acto de conhecer, porque o subtil relato imagético, que está agora a fluir na corrente dos seus pensamentos, manifesta o conhecimento de que o seu proto-si foi modificado por um objecto que agora mesmo se torna saliente na sua mente. O leitor sabe que existe porque, nesta narrativa, o leitor é o protagonista no acto de conhecer. O leitor eleva-se, transitória mas incessantemente, acima da água do conhecimento, sob a forma de organismo sentido, imparavelmente renovado a cada novo instante, graças a toda e qualquer coisa que afecta a sua máquina sensorial, vinda do exterior ou recordada na memória. O leitor sabe que existe e que está a ver esta página, porque a história da consciência narra um personagem, - o leitor – no acto de ver […] T.S. Elliot pode ter pensado em qualquer coisa de semelhante quando escreveu nos Quatro Quartetos, sobre uma música ouvida “tão profundamente que nem sequer é ouvida” e quando disse “tu és a música enquanto a música dura”. Pelo menos deve ter pensado no momento fugidio em que um conhecimento profundo emerge – uma união ou encarnação, tal como Eliot lhe chamou.” . (Teresa Martins Marques - Clave de sol - Chave de sombra - Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira, Editora Âncora, Lisboa, 2016. pag. 733)
As histórias que externamente contamos foram já escritas no jogo de escondidas, achadas e de novo perdidas no Jardim das Delícias. As histórias que internamente contamos estão todas por contar, situam-se na desordem inaparente da escrita. A mesma desordem que há no movimento fluente da luz. Impossível de agarrar e, no entanto, jorra.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)