terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS III

 



O PAVÃO COLORIDO

 

Alguém imitava o pavão no jardim e grasnava como os corvos. O canto do pavão era acompanhado pela dança do cantor que não exibia penas, mas sim flores. Verdes e azuis com laivos dourados. Tinha pegado nas flores e tinha-as pintado para se parecerem com as cores de um pavão. Tinha-as depositado em jarras cilíndricas grandes e negras, o que dava aos arranjos florais uma ideia de brilho na noite como são algumas visões dos místicos, embora ele não soubesse disso nem conhecesse nenhum místico pessoalmente. O pavão, no cimo do tronco da árvore deixava cair o seu manto azul, verde e doirado como se fosse uma noite prometida. Os pavões e os místicos traziam sempre noites prometidas e, se o vento passava, trazendo a ausência de amor, o seu canto e o seu manto eram maiores e mais pesados que o vento e não se desviavam do seu caminho, que era o mesmo que o do universo, onde não há ventos nem vendavais entre os astros, apenas esse desejo erótico que os aproxima e os repele. Pensei que o pavão estava inquieto, mas era o cantor que o imitava. O pavão estava sossegado e revelava a forma do universo em cascata a todos os presentes com a tranquilidade de um deus com histórias suficientes para várias mitologias ou com mitologias suficientes para várias histórias. Se o universo era à discrição, as mitologias também o eram. E nas penas de um pavão podemos ver tudo. A começar pela beleza dos olhos mil, se fechados e, se abertos em leque, dez mil; universo contraindo-se e expandindo-se, olhos fechando-se e abrindo-se, aceitando a noite e o dia, o sonho e o outro sonho que dizem ser a realidade. Íris como nós, ou energias concentradas, ou onde universos paralelos se encontram, ou onde todo o sonho é realidade e toda a realidade um sonho, cauda aberta pela força erótica, grasnar ou canto semelhante ao do corvo quando inicia a grande obra, ou quando o príncipe visita a cidade prometida e entra nos seus jardins, sem saber que é príncipe deles, como o pavão não sabe que é o príncipe da beleza, um e outro, príncipe e pavão, o início da bem aventurada criação. O cantor imitava o grasnar do pavão enquanto segurava o caule de uma flor, em parte verde, em parte azul, e a folha-asa de corvo brilhante ao sol, dourada ao sol, e dizia, ainda sem saber que era príncipe: “A minha infância foi uma mágoa”, grasnava, “… e por isso, deu-se o acaso do Jardim”. A lágrima e a palavra de fogo em ebulição no jardim mais secreto e mais escondido do mundo… que se encontra por acaso, e pelo passado, e sempre para além das mágoas da infância, mais para além ainda das alegrias da infância, ainda mais distante que o nascimento, no centro da própria vida, a eternidade. 


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS II

 




ORQUÍDEAS VOADORAS

 

Quando uma orquídea voa, leva sempre as raízes consigo. Quando ascende à luz, não as perde. Não se sabe se se alimenta das cascas das árvores ou do ar que fica por entre elas. No jardim dos símbolos a ciência é outra. Talvez porque a orquídea não precise de um sol directo e ainda esconda espaços do seu alimento e não os desvende, mantendo a sombra. E por que sobe pelo candelabro como se fosse uma serpente? E por que acaba lá no alto, lado a lado, com as chamas? Lembra a fórmula V.I.T.R.I.O.L., sem dúvida, penso nisto enquanto procuro um elástico que aparece quando olho para o lado como se sempre lá estivesse estado ou tivesse simplesmente aparecido por saber que precisava dele. No jardim tudo é um acaso. Tira-nos a respiração a quantidade de acasos. São tantos, mas tantos que passam a ser uma sintonia. Já não questiono. Como ninguém questiona a sintonia entre dois músicos. E a orquídea continua a trepar pelo candelabro de prata. Só aceita o fogo, não o sol. Talvez ainda esteja na idade das palavras e não dos astros. A diferença entre o sol e o fogo é surpreendente e a orquídea parece saber qual é. Talvez porque não largue as raízes e isso dá-lhe respostas e necessidades. Talvez não lhe chegue ainda a comoção estética da cor da chama onde quer que ela esteja, na ponta de um candelabro ou no centro do sistema solar. Talvez ainda necessite da palavra. Talvez nunca pare e nunca chegue a olhar para aquele ponto indefinido, que pode ser um anjo, ou alguém a acenar ao longe.  Talvez a orquídea seja alguém que conhecemos e não sabemos. As raízes parecem garras demasiado fortes a segurar o ar. Como se soubessem que nunca o poderão aprisionar e, ainda assim, se fossem desenvolvendo numa esperança indefinida de agarrar o céu donde vieram… (as raízes são a esperança) e a flor, em cima, esquecida dessa demanda, procura a chama vibrante da palavra que se solta da cera, das abelhas… das abelhas que são a palavra. No jardim, quando se diz que a palavra é de fogo, é porque é de fogo. Lá não se mente porque não vale a pena.  Os símbolos são cristalinos como o nosso rosto no orvalho da manhã, tão desoculto, tão próximo do disco solar, nesse lado convexo da gota oval… com dois polos, o fogo e o sol; nós, ainda da palavra, do sol, dos astros, e os símbolos, do ar que a raiz da orquídea tenta apanhar… a raiz procura o sol. V.I.T.R.I.O.L.; na escuridão da terra, as raízes rectificam o seu caminho, tornam-se sinuosas, procuram o astro-rei, no centro da terra enquanto se alimentam de ar ou de cascas de árvores, não sabemos ao certo. Lá no alto, perto da chama, as suas pétalas voam revigoradas pelas suas raízes em demanda oculta e essencial. Talvez seja alguém que conheçamos, a orquídea voadora, enrolada num candelabro. Talvez seja uma forma vegetal em volta de um caduceu esquecido e tombado no tempo, antes do tempo das serpentes enroladas em árvores/candelabros com pomos solares no lugar das chamas… antes da árvore, talvez fosse o caduceu, noutra época, em que as árvores curavam e davam luz e eram doutra maneira. No tempo das nossas raízes ou de alguém que, se calhar, conhecemos. Já não sabemos onde acabamos e começam os outros quando a demanda das raízes pelo sol é semelhante à das pétalas pelo fogo da palavra que só ecoa em chama no silêncio dos silêncios.


domingo, 26 de fevereiro de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS I

 


O JARDIM DOS SÍMBOLOS

 

 

 

 

“Terceira Figura – Nela está pintado e representado

um jardim cercado de sebes onde há vários canteiros.

A meio existe um velho carvalho oco, ao pé do qual de

um lado há um roseiral de folhas de ouro e de rosas

brancas e vermelhas que rodeia o dito carvalho até ao

alto, próximo dos ramos. E junto ao dito carvalho oco

murmura uma fonte, clara como prata, que se vai perdendo

 na terra; e entre os que a procuram há quatro

cegos que a cavam e quatro outros que a buscam sem

cavar, estando a dita fonte diante deles e não podendo

encontrá-la, excepto um, que a pesa na sua mão.” 

 Fulcanelli, “Mistério das Catedrais”

 

 

 

 

 

 

INÍCIO

 

 

Aqui e ali símbolos invencíveis. Se as memórias são ficção, ou não, pouco importa. Nasci no jardim dos símbolos. Lá, onde tudo tem cor e sabor e profundidade. E alma que é uma profundidade mais acima. Lá onde tudo é o que parece e o que esconde e, mais ainda, o que nunca se alcança na totalidade. Como é um jardim, a sua aparência é a das flores e heras trepando ou caindo sobre os muros, árvores com copas altas e baixas, e pequenas cascatas e lagos que variam de cor conforme o céu que se fixa nos nossos olhos. Há flores durante todo o ano, e transbordando-o porque cada espécie tem a sua própria Primavera. As flores são independentes do tempo convencional. E quem nasce nesse jardim também o é. O jardim contém a marca de todos os tempos em simultâneo, o Inverno das águas frias em pleno Verão, a amendoeira em flor quando ainda neva cobrindo o gelo com a sua brancura quente. E o perfume do mar salgado, tão próximo, é uma promessa de viagem além muros. O portão do jardim onde nasci tem uma coroa e um dragão moldados em ferro forjado. É um jardim real e divino porque o dragão é divino. E a coroa, circular, é todo o universo conhecido, entontecido numa dança de planetas ou jóias, tanto faz.  O dragão, com as suas escamas aquáticas, as suas patas terrestres, as suas asas esvoaçantes no ar e o fogo das suas palavras muda de elemento subtilmente e anuncia o jardim onde as palavras são feitas de fogo. Todas elas queimam e sublimam. Nesse jardim nasce-se de uma semente, sem grande surpresa que assim seja,  só mais tarde se pode vir a nascer de um ovo e isso não se espera que aconteça. As aves são flores que se libertaram. Por vezes, num caminho de pedras, por entre os galos e as galinhas que são aves que não estão muito interessadas em voar, por entre pedaços de flores de papel que alguém se lembrou de fazer, por entre narcisos que olham pela primeira vez para nós, lá ao fundo, naqueles dias escuros com nuvens cinzentas, com laivos de ouro, copiando o céu nos dias que acabam com o arco-íris, suspenso no céu, com as cores das flores do jardim e, nessas alturas, o jardim do céu e o jardim da terra são um só. Nasci no meio da terra a ver as flores mais velhas a crescer e a falarem com palavras de fogo. As primeiras canções de embalar que ouvi contavam histórias das estrelas cadentes e dos pirilampos que no jardim, à noite, eram como elas. E depressa aprendi que o jardim dos símbolos era como o céu. Tinha as mesmas rotas, as mesmas constelações, os mesmos planetas, as mesmas histórias, as mesmas valsas, as mesmas músicas, as mesmas ideias, os mesmos sonhos. Era um jardim sem filosofia porque ela não aparecia fora de nós. Não aparecia num livro para ler, nem nas palavras escritas por quem tinha ouvido o filosofo a falar. Aparecia em nós. E eramos nós, os habitantes desse jardim, que a fazíamos, ou não, acontecer. Em união. Porque todos estávamos unidos, mesmo quando estávamos longe, mesmo quando ainda não sabíamos que já nos conhecíamos desde sempre. Porque esse jardim é eterno. E quem nasce nele, é dele. Vive na sua eternidade. Mesmo que não se lembre dela, nem saiba que nasceu no jardim dos símbolos. Nada está morto ou morre nele. A criação é constante, mesmo que não saibamos que estamos a criar, mesmo que a tarde seja passada a ver as carpas que vivem no tanque, que são todas diferentes umas das outras, nadando de um lado para o outro, à procura da carpa perfeita, como nós fazemos com quando as contemplamos. Há sempre alguém a construir um muro ou a abrir um novo caminho, deitando um muro ao chão. Há sempre alguém que transporta um saco de terra num carrinho de mão ou regressa nele com um grande peru, direito e digno, que não balança com o oscilar das rodas, atravessando o jardim na sua carruagem real, perante a visão alterada dos que por ele passam e o vêem como um súbito rei, só pela sua pose e pelo seu porte. As noites frias nunca são completamente frias porque estamos juntos. E as estrelas, mesmo que não se vejam, são lembradas pelas palavras de fogo que fazem brilhar a água dos lagos. As tormentas podem vir sob a forma de cascatas e de choro, mas são sempre cristalinas. Dizem que quem entra no inferno nunca mais ninguém de lá sai. Mas quem nasce no jardim dos símbolos, sempre lá esteve, mesmo antes de nascer. Nesse jardim, não se entra. É-se de lá, como se respira o ar, como se ri, como se grita, como se corre por entre as árvores que estão dentro de nós, ou se põe uma flor numa jarra porque ela é da cor do nosso humor. É tudo de repente, nele, até o descanso, é repentino e vem não se sabe muito bem de onde, talvez porque alguém tenha parado a olhar o profundo vale até à montanha mais acima, e isso tenha influência em nós, talvez porque algum ganso descanse sobre uma pata e adormeça a sua cabeça por entre as suas penas, que são as nossas e, por isso, nós adormecemos também. O tempo é todo de repente, como aqueles músicos de jazz que nunca sabem muito bem para onde vão, mas vão e vão pelo som fora, brotando notas como os alimentos da cornucópia da abundância. O orvalho pela manhã reflecte, de um lado o sol, do outro a nossa face. Confundem-se, não sabemos muito bem onde começa o sol e onde acabamos nós; nós que somos a gota de orvalho também. Para não nos perdermos, olhamos na direcção do coração uns dos outros. Só para termos a certeza e não nos enganarmos na filosofia que criamos ou nos símbolos que adoptamos naquele momento. Quando não nos apetece pensar, olhamos para longe, numa direcção estranha, como se estivéssemos a ver um anjo ou alguém a acenar ao longe, ou talvez olhemos para um ponto indefinido no espaço onde já não há palavras, nem imagens e fiquemos aí a pairar como uma gotícula de pó ao sol. E como neste jardim, tudo é criação, só se pode encontrar este jardim por acaso, no ocaso dos dias normais que findam, onde não há jardim nem se sente a sua falta. E ninguém sabe onde fica o acaso. É o local mais misterioso do mundo. E o mais permanente e eterno dele. Está sempre a nascer, sem parar, como um sol que só se levanta e nunca se põe. Está sempre a ascender, a abrir-se como uma flor, a desabrochar como uma planta, a eclodir como um ovo, a voar como um pássaro, a explodir como um sol, a expandir-se como o universo, a cantar como um cantor, a dançar como um príncipe, a filosofar como um rei, a palrar como uma criança, a crescer como uma montanha, a escrever como um poeta, a pintar como um pintor, a correr como um coelho, a jorrar como a fonte, a bater nas rochas como o mar, a girar como os planetas, a semear como o camponês, a pescar como o pescador, a contemplar como o sábio… o acaso fica no mais profundo e secreto lugar do universo onde nada é encoberto e as coisas são o que parecem, o que escondem e mais ainda, o que nunca se alcança na totalidade. O jardim é circular, como o céu. Perfeito. Nasci no Jardim Perfeito dos Símbolos. E só o pássaro pode ir além dele, em direcção ao que não se alcança na totalidade, como esse perfume do mar, adivinhado do outro lado do muro, perfume a sal, a vida, à próxima onda que nunca sabemos como vai ser, jardim do mar, mar do jardim, mar plantado à beira do jardim … … … céu plantado à beira do mar… … … ovo do mundo … … … ganso … … … cisne … …. …  curva … … … na estrada … … … no jardim dos símbolos perfeitos o silêncio é a voz a sibilar num silêncio maior que, por sua vez, ecoa num silêncio ainda maior … quanto mais profundamente entramos nele, mais as palavras parecem fogo, nesse jardim, mais os gestos são ondas do mar onde alguém se banha, ou descansa, não se sabe bem porquê, talvez porque alguém tenha parado a olhar o vale estendido…  ou um pássaro novo tenha nascido e tenha vindo pedir alimento, piando alto, fazendo estremecer o silêncio com o seu piar de fogo e os seus limites de seda, os desse jardim, balancem na brisa dos profetas sem tempo como o jardim perfeito dos símbolos onde nasci e nunca morri por causa da curva da cornucópia infindável, cascata da abundância, alegria do mundo. 


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

O zumbido

 

O mundo está tão barulhento que chego a casa com os ouvidos a zumbir e as pessoas estão incómodas no seu geral. Parecem moscas. Só não somos estrangeiros em casa onde os objectos dormem sossegados e os cães brincam, eternamente pré-históricos, sem saberem ler ou escrever, apenas sorrir, quando chego a casa com os ouvidos a zumbir como se tivesse vindo de um concerto de "heavy metal". O silêncio é a grande sede e sede. Penso se não haverá uma oração permanente dentro do meu coração porque de outra maneira não conseguiria sobreviver a este constante terramoto diário. Até a força da gravidade eclode com mais força. A quantidade de doenças mentais existentes, conduz a que a maior parte da população procure cura por rotina, seja onde for, seja com quem for. Agradeço por só sentir o zumbido nos ouvidos como efeito secundário desta época de hecatombes sucessivas e por não andar à procura do curandeiro certo para patologias inevitáveis. No outro dia mostrei fotografias das plantas verdes e verdejantes da minha casa a uma pessoa e disse-me em resposta que eram uma espécie de cura. Disse-lhe que não eram por não me encontrar doente e que eram sim, pura alegria, sem qualquer doença que justificasse a sua presença em minha casa. Fez um silêncio como se estivesse perante um tabu que desconheço, feito do horror à alegria, sem antes nem depois. Dizer que não estamos mentalmente doentes tornou-se no grande pecado, o mais mortal de todos. Das ansiedades às depressões, passando pelos bipolares, obsessivos+compulsivos e esquizofrénicos, para a acabar na grande senhora das doenças mentais que é a psicopatia como culminar da carnificina fininha que atravessa as mentes e que chega em cheio com as séries sobre serial killers aos ecrãs, todos se vão sentido raptados, ora de umas, ora de outras, mas nunca desta última, remetida sempre para a ficção. Mas ao dizermos sentir pura alegria, esta tornou-se numa impossibilidade que remete para o silêncio como resposta, seguido de um olhar desconfiado que questiona, bem lá no fundo, se não haverá ali algo de psicopata nesse alguém que fala de pura alegria. Em suma, sentir alegria está muito próximo de se puder vir a ser psicopata porque a alegria tornou-se insuportável e injustificada no mundo actual e se for antecedida pela palavra "pura", então está mesmo o caldo entornado pois essa palavra recorta-nos da linearidade do tempo, por ser sem antes nem depois e logo agora que vivemos entre a angustia do tempo passado que já não volta e a do futuro que nunca é bom. Estar-se puramente alegre conduz ao fracasso no campeonato das doenças e, em simultâneo, à medalha de ouro das mesmas porque se é, quase de certeza, psicopata. Não admira que sinta os zumbidos desses moscardos, visitas não pedidas mas que entram pela janela dos pensamentos a uma velocidade estonteante, dando várias voltas à sala, batendo violentamente com a cabeça nos vidros à procura de uma saída e acertando, já zonzos, na a fresta por onde saem disparados e em pânico com tanta saúde mental. Já lá vai o tempo em que os loucos tinham graça, charme e sabedoria. Tornaram-se nuns chatos de primeira, sempre à procura de alguém igual a eles para fazerem uma manifestação de orgulho-crazy, enquanto gritam que os loucos unidos jamais serão vencidos e que hão-de entupir as portas de todos os Serviços Nacionais de Saúde deste mundo para acabar de vez com a Sanidade. Ser são é ser mais alto, é ser maior dos que os loucos, morder como quem morde e qualquer dia mordo todos loucos que encontrar no caminho e que me queiram morder como quem beija! Será essa a verdadeira poesia da mordedura, pois aqui não há beijocas como quem morde, nem mordeduras como quem beija aqui morde-se como um verdadeiro psicopata! É essa aliás, a minha grande alegria: dizimar loucos com insecticida e deixar o SNS a trabalhar em pleno para os saudáveis deste mundo que só partiram um pé! Um puro pé!


terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Bola branca

 


Já há uns anos, alguém insinuou que eu era extremamente influenciada pela pessoa com quem vivo nas minhas opiniões, nos meus textos, na minha forma de ver o mundo. A misoginia partiu de uma mulher, um pouco tonta, mas mulher. Imagino alguns homens pensando o mesmo com dez vezes mais vigor. Um amigo aqui da casa, uma vez disse que, segundo ele, qualquer relação amorosa era uma relação entre o submisso e o vencedor da batalha. As generalizações são sempre produto de alguém que pensa estar no centro do mundo, o mesmo acontecendo com a sua própria vida. Neste mundo misógino, o maior erro é ter talento e estar ao lado de alguém que já é, de alguma forma, considerado. Este nem se trata de um tema novo. Por exemplo, aquela velha história de se ser "filho de" e de se estar condenado a ser isso. Lembro-me que na altura em que a senhora do início do texto fez a insinuação, franzi o sobrolho porque nem estava perceber. Depois percebi e zanguei-me. Já não me zango porque partilho da ideia de Miguel Sousa Tavares quando entrevistado pela jornalista Fátima Campos Ferreira, no programa "Na primeira pessoa": não vale apena dialogar com pessoas estúpidas e que vão continuar a ser estúpidas. Assim, já há uns bons anos que dei o caso por encerrado. Não só relativamente a este assunto como relativamente a muitos outros. Em vez disso, perco ou ganho o meu tempo (depende do ponto de vista), com coisas muito mais interessantes. Agora ando muito interessada na pré-história, no tempo em que ainda éramos humanos (agora somos um composto genético e cultural sem escape) e talvez as pedras entendam e guardem na memória aquilo que interessa. As nuvens passam como numa imagem acelerada no ecrã, mas o sentido maravilhoso do Mistério permanece. Continua a ser isso a fascinar-me. O imenso Mistério em que nos encontramos emersos. Já há muito que me habituei ao facto de que nada do que escreva ou pinte tenha algum peso e venha a aquecer ou arrefecer ao mundo. Ainda tive esperança. Mas, contrariando Yuval Harari, não me sinto irrelevante. A impassibilidade é que é irrelevante. Tudo me afecta como afetam os dedos nas teclas de um piano. Tudo me influência, até o estado do tempo. Tudo escuto e reenvio para o Mistério que não entendo, nem sei se um dia vou entender. Nesse Mistério, está também guardada a misoginia crónica. Vou dizendo coisas irremediáveis aqui e ali, como qualquer gesto que façamos é irremediável e fica fixo no Mistério do Universo inteiro. Assisto a debates e penso que as pessoas passam a vida a falar. Até os surdos-mudos. A par com a luz divina que jorra sem fim, também as palavras jorram e brilham como prata, como os peixes do rio que se queixa do sabão saloio. Saudades? Tenho do homem que foi concebido em Amares, viveu no Algarve, e acabou saloio. Também, de Amares vim, fui concebida em Broomley cuja divisa é "Servir o Povo" e acabei saloia. Só me falta o bigode e o trator, daqueles que caiem em cima dos próprios condutores (os acidentes mortais com tratores neste país já foram remetidos há muito tempo para o Mistério). De resto observo e observo. E o coração ainda observa mais e esse, é o grande condutor para o Alto. Em vez da conversa da mulher vivida, que olha a partir das suas cicatrizes e afirma que já nada a choca, espanta ou lhe causa estranheza, o meu coração continua com os olhos abertos, tal e qual os olhos observados por um médico, o D. Mello e Castro, há muitos anos atrás, quando me perguntou porque tinha os olhos tão abertos, ao que lhe respondi, do alto dos meus 16 anos: "Porque ando espantada com o mundo." Ainda me lembro da gargalhada dele, seguida pelas seguintes palavras: "Também eu". Tenho a certeza de que se ainda fosse vivo, continuaria a dizer o mesmo. Quanto à mulher que insinuou que eu era influenciada em tudo pelo macho, tenho a certeza que continua com a mesma opinião pois a estupidez não passa tão depressa. Nesta floresta há muitos seres vivos. Uns espantam-se e outros não e outros ainda deixam-se espantar e correm esbaforidos, ou por medo ou por instinto de sobrevivência (tanto um como o outro são compreensíveis), só o grande Mistério não é. E por falar em mistério, entre o ano 2010 e 2014, o mistério andava no ar... Senti por todo lado entidades invisíveis. Depois acalmaram.  Entre 2020 e uma data sem fim à vista, a estupidez está mais visível, mais aguda, de tal modo que só dá para falar do estado do tempo ou da lida da casa. Se subirmos um pouco o patamar, das duas uma: ou estamos a falar "estrangeiro", ou  somos efectivamente aves raras prontas para o embalsamamento quando ao abrirem a boca vem a resposta letal: "Muito interessante!".  E fico a saber que a minha conversa não interessa para nada. Ou então, das reações mais bonitas a que assisti ultimamente, quando uma mulher vinda do Norte me veio visitar sem me conhecer, só de leitura de alguns textos, depois de uns quilómetros ao volante em que fiz questão de não me calar (ao volante falo muito), e eis-nos com a viagem finalizada com um passeio numa praia, e vendo-a ficar para trás, parada, estática, me aproximo e me apercebi de que chora. Pensei que estava com problemas, mas não. Tinham sido aquelas palavras que brilhavam como prata que a tinham feito chorar. "Deus conta as lágrimas das mulheres", como diz um provérbio judaico ensinado pelo macho cá de casa (isto é uma influência que não se pode), foram as palavras lembradas agora. Ela chorava. E espantei-me. Quando algumas almas falam, outras almas podem vir a chorar. Almas sensíveis, claro está. Soube que não tinha dado pérolas a porcos. Foi um toque ao céu. O meu coração observou, as palavras exprimiram o que foi observado, o coração dela ouviu e as lágrimas caíram para serem contadas por Deus. Um autêntico bilhar. Encestei, sem querer! Os misoginos fazem neste momento um esgar de desprezo, e Deus também conta com esses esgares. Duplo encestamemto! Se a vida fosse um jogo... Mas não é, é muito mais do que isso. De maneira que já vislumbraram, caros não-leitores as implicações de tudo isto. Ou se calhar não vislumbraram nada porque querem respostas rápidas, tipo concurso, quando acabei de dizer que a vida não é um jogo.


O Abismo

 


‌Todos, duma ponta à outra do mundo, usam o azul como pano de fundo para os discursos, apresentações e declarações como se nos quisessem convencer de que vieram do céu e de que são anjos protetores. Fico sempre enjoada com o azul imposto. O do céu é natural, e não é sempre azul e diz-nos apenas que esta é a esfera onde nós encontramos e que há outras. Tudo é tão estudado, analisado e medido que os homens se auto-amestram, tomando-se a si mesmo como animais, apenas reactivos, seja ao azul como pano de fundo, como às palavras. Daí que tivessem criado para si próprios a "inteligência artificial", porque a sua também a é. Não fazemos nada que não seja à nossa imagem e semelhança e foi essa, (a da inteligência que tornámos artificial) a metade da partícula repetitiva divina que reproduzimos sem parar. A outra metade que é livre e que é a própria liberdade, voou para longe e nem a conhecemos bem. Entendemo-nos, ora como robôs, ora como animais e, na verdade, é o próprio ser humano que está em vias de extinção. Tanto animais, como robôs, nos hão-de sobreviver, enquanto aplaudimos o nosso próprio desfecho, tão artificial que é a nossa inteligência. A não ser que haja intervenção divina e aí, não haverá azul celeste como pano de fundo, a glosar a cópia dos anjos, pois serão eles, efetivamente transparentes que, quais animais amestrados de Deus, mas ainda com a metade livre dentro de si, concederão a alguns, mais uma oportunidade, aos Noés do futuro. Os burros de carga, que carregam o mundo às costas apenas porque querem e não porque tenham nascido para isso, são os de pano de fundo azul como fundo. E isso é um problema para quem lê este texto e procura nele a sua facção. É que todos e cada vez mais, e volto a repetir, de uma ponta à outra do mundo, usam esse azul impecável quando querem dizer coisas. Uns porque pensam ter o mandato vindo do céu, outros porque pensam ter o mandato vindo do povo que é simples e ingénuo (quase tolinho) como as crianças e, por isso, representantes na terra do céu. É por isso que Putin tem razão quando diz que caminhamos para o abismo e que o ocidente também tem razão quando diz que não caminhamos para o abismo. O que dá razão a ambos é o abismo. O mundo tornou-se num abismo bicéfalo, imagem pálida de Janus, por ter largado o tempo: cada face do abismo olha o espaço... A palavra abismo está lá, sobrepondo-se ao sim e ao não. Não interessam ao abismo, as palavras sim e não, elas são tão irrelevantes para o abismo como seriam para um buraco negro cósmico que a via láctea encontrasse pelo caminho. O abismo é o grande senhor, de um azul profundo para o qual todos caminhamos a gritar sim e não. O Grito é apenas o que restou da metade da partícula livre e de liberdade que nos abandonou a todos há muito tempo. Já não nos lembramos do seu sabor, do seu cheiro, do seu rosto. Caminha pelo cosmos desviando-se de todos os buracos negros, mas o primeiro desvio que fez foi de nós próprios, os humanos, demasiado animais e demasiado artificiais, para ela. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

O grito

 


O Quinto Império ou Idade do Espírito Santo (como lhe queiram chamar, pois uma vez estando nós nessa Era, ela não terá nome, estará acima dos espartilhos da nomenclaturas), passará, obrigatoriamente, por um total desmanchar das estruturas sociais actuais para novas emergentes. Para além do facto dessa Idade já existir paralela a está num outro canto do Universo e numa outra dimensão dele (o resultado do tempo ser relativo e do espaço, mais ainda, por depender da concepção que temos do tempo) a sua manifestação será quando, naturalmente, os seres humanos estiverem aptos a receber essa dimensão. Não é promovendo estas estruturas sociais presentes que variam pouco ou nada, todas provindas da ideia de família enquanto sede da estrutura social e que podem ir desde as mais democráticas (onde a maioria vence independentemente da qualidade dessa maioria e da qualidade daquilo que vence), até às tiranias teocráticas ou não, nas quais a autoridade fica para o membro considerado, por simples convenção, como o mais apto a dirigir o país, ou o gado (não há grande diferença, nesses casos, entre gado e as pessoas que não sejam o líder). Evidentemente que a democracia acaba, também ela, por ser uma tirania ou não fosse a mãe delas. Tirando assuntos mais prementes e urgentes que necessitam de resposta curta e imediata, alguém que constate que o cerne das estruturas sociais são as próprias pessoas, e não as estruturas em si (estas últimas como sendo o centro e a periferia de si mesmas, à maneira de Deus), depressa perde o ânimo em debates extremados, sobre aquilo que é melhor, se uma tirania visível, se uma democracia visível, mas ambas sempre tiranias, sendo a democracia uma tirania encoberta por mais que digam o contrário e cada vez mais a mando das mega-estruturas económicas (capitalistas). A única diferença é poder gritar na rua. Resumindo, ou podemos gritar ou não podemos gritar. São as duas opções possíveis em termos de estruturas sociais e políticas. Os subjugados por um tirania ficam infelizes por não poderem gritar e os subjugados por uma ditadura dão-se por felizes por poderem gritar, embora não estejam felizes porque gritam, pois se estivessem, não gritavam. De maneira que nesta pastelaria mundial, a escolha é entre pastéis de nata e pastéis de massa tenra, não há mais variedades e, enquanto assim for, só vamos dar solução (quando a damos) aos assuntos mais urgentes e que se sucedem cada vez em maior número, tomando a forma de desgraças. A perda da Graça do planeta tem sido evidente. E mais não acrescento porque, sinceramente, não vale a pena.