domingo, 26 de abril de 2020

O juízo



Isto não é quarentena, é centena. Confesso ter saudades dos anos 80. A nossa geração, cinquentona, não foi à guerra, foi brindada com uma adolescência que era doce quando nos abanou com a bandeira da liberdade. Não fomos à guerra, nem passámos fome, ficámos apenas com a ressaca do Estado Novo, da Segunda Guerra Mundial, do Ultramar e agora, dos anos 90, da década de 2000 e dos seus dez anos seguintes em que a tecnologia apareceu como a salvadora do mundo, quisá dos mundos... E que afinal não salvou nada antes serviu máquinas de propaganda e de publicidade (são coisas diferentes) de todos os tipos de objectos, de bens e serviços e de todas as vertigens ideológicas em que se podem pensar. Somos a geração das ressacas sem ter bebido álcool suficiente (isso fazem as novas gerações). Qualquer um de nós, se for minimamente inteligente, conhece o sabor dos sonhos desfeitos e das frustrações, tornou-se legitimamente desconfiado de qualquer promessa. Os que não são minimamente inteligentes ressonam a sono solto e chegam até a pensar que o mundo está no bom caminho. E até está, a desintegração faz parte do ciclo. Agora, e para que não nos falte nada, levámos com um vírus em cima. Antes dele já ouvíamos notícias como consecutivas ameaças estupendas: "Por ano morrem não sei quantos mil de doenças cardíacas, rins, cancro, gripe, diabetes, acidentes, cabeças partidas, ombros deslocados, de depressão e da mais sublime de todas, a culpa".  Chegámos a questionarmo-nos se teríamos a sorte de morrer saudáveis. Os telejornais pareciam salas de pânico. Agora são o pânico lado a lado com a bandeira da liberdade. "Seja livre, tenha o seu próprio pânico." Escolha:  "A miséria, a doença, a angustia do futuro ou o acidente puro e simples!". Traduzida por miúdos é isso que a informação/ propaganda faz. Não informa: propaga o pânico que já vinha sido preparado muito antes da virose. Os cinquentões herdaram a liberdade de escolher o seu próprio medo, o seu próprio filme de terror porque a maior parte dos cinquentões não se transformou em bonecos de televisão, embora alguns deles se tenham tornado em bonecos do Facebook como compensação à frustração (produto da ideia conjunta dos "ganhadores" - americana e dos "salvadores" - católica apostólica latina). Já não somos nós que não somos deste mundo, é Deus que já não é deste mundo, e alguns de nós, cinquentões, estamos com ele, damos-Lhe a mão e zarpamos sem ir para a rua gritar - tornámo-nos desconfiados com os gritos de rua que podem ser de tudo. Como Ele, só queremos ser deixados em paz e recusamo-nos a opinar sobre as ideologias e os bens de consumo. A poluição foi, na nossa infância, a madrasta má que tínhamos de superar, coisa que nunca fizemos por estarmos demasiado ocupados a tentar refazer sonhos depois de desfeitos. Os cinquentões que não estão exaustos andam de punho no ar (o esquerdo ou o direito, tanto faz) numa achega à utopia ou andam a tentar pagar a casa e o carro por entre viroses, fora os que morrem apanhados por alguma estatística devidamente dada a conhecer pela comunicação social. Os mais inteligentes aproveitam a nesga de céu que se consegue ver do apartamento das cidades donde nunca chegaram a sair por não poderem, as novas sarjetas porque a cidade só oferece confusão e barulho. Os que conseguiram fugir são acusados de egoísmo extremo embora eu pense que foram extremamente generosos para com eles próprios, o que é bem diferente, e percebe-se bem, era uma questão de sanidade, de higiene e de assegurar algum equilíbrio. O mesmo fez Noé e ninguém se queixa dele. Nunca serão heróis (nem estão interessados nisso), só esperam poder ler um livro em paz sem antes nem depois e reduzem a sua humanidade a uma aproximação a Deus e não às malditas religiões que andam sempre a reboque da angústia, para o jantar e para qualquer refeição, acompanhada por um excelente serviço noticioso tinto. O mundo, tal como está, já é a escama da serpente (até a serpente se livrou desta escama que já a incomodava), seca, desfigurada, coberta de pó e com um virusinho a saltitar por entre os seus buracos feitas pelas lagartas assambarcadoras das crises. Este mundo só tem ponta que se lhe pegue pela solidão da arca, com Noé à cabeça acalmando os animais que olham incrédulos para tudo isto. Nem eles chegaram tão baixo na insconsciencia de si. Uma boa centena de anos na arca e talvez isto apazigue com uma qualquer pomba do Espírito Santo por muito que os neo-templários ergam agora a sua espadita de latão e digam que estão cá para resolver todo e qualquer problema, sem perceberem que eles também fazem parte do problema. Assim, os cinquentões que não se deixam enganar, estão a preparar-se para a centena (o Centeno é uma ironia do destino) de anos que ainda faltam para o Juízo. Se é Final ou não não sabemos, desde que seja para ter juízo tudo bem. 

sábado, 25 de abril de 2020

O 25 de Abril


Em miúda escrevi um poema sobre o 25 de Abril no qual cantava os presos libertos. Desde aí tenho tido problemas com a suposta liberdade. A liberdade de dizer o que me passa pela cabeça tem-me colocado em sarilhos. Constatei haver pequenos ditadores espalhados por aqui e por ali, frequentemente em lugares chave para o desenvolvimento da minha própria vida. Fui livre de escolher o curso superior, é verdade, mas a liberdade de o exercer nunca existiu. Fui livre de ter ideias para projectos, mas o contexto nunca permitiu que fossem para a frente. Fui livre para pintar belas pinturas, já expô-las requer a espera que o mau gosto, que ocupa os espaços onde se expõe, desapareça porque não há espaço para o meu trabalho. Nunca há. Fui livre para ir para o Facebook dizer coisas e em compensação fui invadida pelos tais pequenos ditadores com acesso aos bastidores dos computadores. Fui livre para me revoltar e como resposta dei de caras com a indiferença. Hoje, passado quase meio século desde esse dia da liberdade, percebi que a liberdade é ficar fechada em casa e criar o meu próprio mundo sem dar contas a não ninguém porque a liberdade que nos deram para que nos pudéssemos desenvolver fora de nós, é falsa. A única liberdade que existe é a que damos a nós próprios para criar um mundo livre deste mundo onde nós prometem liberdade mas onde ela fica sempre pela metade. Este é aliás o destino dos verdadeiros criadores, quem não o é não passa de um macaco de imitação que vem para a rua cantar a liberdade ao ritmo daquilo que os pequenos ditadores que povoam o país concedem. E olho-os de alto. Com toda a legitimidade que a minha própria vida me concedeu. Hoje, prefiro uma bela rosa amarela a um belo cravo encarnado. Pelo menos reflecte o sol e a minha liberdade interior. A única possível. 

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Taras


https://horasextraordinarias.blogs.sapo.pt/

Este blogue mostra como em Espanha já se vendem cenários de papel com estantes para vídeo chamadas tal é a importância que se dá à quantidade de livros que se leu e que se mostra. Bem vistas as coisas estão todos bem uns para os outros, os que exibem a estante de papelão e os que a observam e julgam o interlocutor a partir desse dado. Como o entendimento daquilo que é verdadeiro ou falso é cada vez mais de plástico ou de papelão é por aí que se fazem muitos negócios. O vendedor de banha da cobra, que vendia sobretudo placebos, parece-me bastante mais honesto à vista de tudo isto. Os achaques da minha tia avó (que só os tinha em festas de família) passavam subitamente depois do meu avô lhe dar um bolinha de miolo de pão moldada em forma de comprimido, do qual toda a família estava ao corrente menos a "vítima" do achaque e do placebo. Como a maioria das doenças actuais tem origem mental é natural que se procurem placebos de todas as formas e figuras. Nada como uma boa tara para cobrir outra tara. A informação ainda é o que era...

domingo, 5 de abril de 2020

0 isolamento

Imaginemos que aqui em Portugal, por uma circunstância estranha, uma espécie de cocktail de medo, prevenção e sorte, domesticamos o vírus e tornamos a sua propagação "sustentável". Mesmo se for assim, não podemos abrir as fronteiras. Ou então, todos os esforços terão de ser na vigilância da quarentena obrigatória de quem entra. Isso significa um país isolado. Ou pelo menos, semi-isolado durante muito tempo. Uma outra coisa: é sabido que muitas pessoas que tomam a vacina para a gripe, ficam imediatamente com gripe como reacção à vacina. Será que uma vacina para o Covid 19 terá o mesmo efeito nalgumas pessoas? O melhor mesmo seria arranjarem um medicamento o mais rapidamente possível.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Com pés e cabeça e com cabeça, tronco e membros


Este texto sim, tem pés e cabeça.

https://www.revistapunkto.com/2020/03/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de.html?fbclid=IwAR0_q59s0F1aziQLw9ugOZdrBV0IfA4y4cNYJ-1Wi0t_xxZqTYucI1Nnbxw&m=1

Com cabeça, tronco e membros

‌A propósito deste texto que coloquei, lembrei-me de uma família que vivia engalfinhada na mesma casa. A mãe e o pai tinham uma vivenda e fizeram anexos de maneira a que os três filhos pudessem ter os seus apartamentos dentro da mesma área. Desta feita, num mesmo espaço, viviam os pais, a filha o marido e as suas duas filhas, o filho a mulher e os seus dois filhos e mais um filho, a sua mulher e os seus dois filhos. Ao todo eram catorze alegremente todos uns em cima dos outros. Inevitavelmente, a privacidade tornava-se algo parecido com um pensamento abstracto. A vigilância tecnológica de ponta é a mesmíssima coisa. Onde não há privacidade há, inevitavelmente, promiscuidade. Se o verdadeiro risco é esse, com esta pandemia como é dito no artigo, a Rússia, por exemplo, já há muito percebeu isso, a América também (basta lembrar o que se passou com o Facebook) e outros países já devem também ter acordado para isso. Também me faz lembrar uma professora que tive no secundário que era muito moralista, estava sempre a dizer-nos como nós devíamos comportar dentro das suas balizas morais colocadas muito perto uma da outra. A filha dela foi a primeira a aparecer grávida, com dezasseis anos, para espanto da nossa turma. Assim, esta coisa do Big Brother já anda na cabeça de muitas pessoas desde que, provavelmente, se escreveu o Big Brother. É nestas alturas que nos fechamos inevitavelmente para dentro, único lugar onde se pode estar e onde ninguém vê e esse lugar (como a gravidez da filha da professora) é extremamente potente. É aqui que entra o Bandarra. Não porque ele tivesse previsto o que iria acontecer (as profecias não são futurologias, são avisos), mas sim porque parte do que ele relata não se refere ao tempo nem a qualquer tempo em concreto, refere-se ao espaço. E, esse espaço, passa pela tripeça (então, sim, tripeça fora do tempo), que é o homem, o país e o mundo. Parece que o Terceiro Corpo das Trovas não é da autoria de Bandarra, mas nelas o espírito tradicional permanece intacto e talvez até vá mais longe que o Corpo Primeiro e Segundo. Tal como René Guénon afirma, o tempo devora o espaço, é certo, mas, no limite, é o espaço que devora, por fim, o tempo. E o espaço fala da situação do homem no mundo. E essa pode não ser localizável.