sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A superfície das águas...



 
Há uns tempos dei boleia a um rapazinho desconhecido. Dizia-me ele, a meio do percurso de poucos quilómetros, sermos nós um povo afável, generoso e de bom coração. Eu sei, pensei na altura de mim para mim... e que eramos comodistas... eu sei, pensei...  Há uns tempos, conheci um pintor de paredes. O pai dele já era pintor e o avô também... ela era pintor porque sim... seríamos um povo com raízes. Eu sei, pensei de mim para mim... Há uns tempos, dizia-me uma “caixa” de supermercado que como isto estava um dia teríamos medo de viver. Eu sei, pensei de mim para mim. Há uns tempos, dizia-me uma rapariga de vinte e poucos anos nada perceber das fichas que o filho levava para casa da segunda classe. Esquecera tudo. Eu sei, pensei... há uns tempos dizia-me uma senhora na bomba de gasolina... que se devia respeitar toda a gente e que desde que tivéssemos para comer e pudéssemos andar de cara descoberta, tudo andava... eu sei, e pensei... Há uns tempos ouvia os pescadores olhando o mar, dizendo que “eles” eram todos uns ladrões... eu sei. 

E pensei que estamos sempre em trabalho de campo a sentir o “pulso” às gentes... e que há tantas, tantas gentes... desde os que, vivendo na opacidade da monotonia da manutenção do mundo são levados pelos líderes embriagados de poder sobre os que vivem na opacidade da monotonia da manutenção do mundo, passando pelos filósofos mais inteligentes e mais estudiosos, mais espirituais, menos espirituais, e até àqueles que deram uma volta inteira na curvatura dos abismos do pensamento sem entranhas nem o bater do coração... e há artistas incomodados outros acomodados... e os desligados, também.
Lembrei-me de Teixeira de Pascoaes falando da imensidão de gentes que surgiam como fantasmas... e pensei que só um morto em vida os podia ver e reconhecer como tal... qualquer coisa de cadavérico no turbilhão do mundo, e no entanto, qualquer coisa de imensamente mais...

A quem foi dada a ver a luz, e com ela o sentido da vida, por vezes, é dada uma vida sem sentido, de maneira a que a própria vida seja ela um debate eterno entre as duas: ou ganha o sentido da vida, ou ganha a vida sem sentido... ironias divinas...

Ainda navegando nestes passos fronteiriços entre a vida ausente que existe na contemplação, quase parda, quase indefinida... movem-se na superfície das ondas pequenas brisas... são elas que dão alento e fazem reluzir, de modo intermitente, esse brilho do sol sobre o mar.  Seremos nós capazes dessa sensibilidade aquática às brisas em forma de pessoas que por nós passam? Seremos nós capazes de quebrar a casca dura que esta civilização produziu  e de sentir essas pequenas brisas de Elias?
Se tudo for, como à primeira vista parece ser, uma eterna dança entre dois polos extremos: a sobrevivência e o poder... que nos é dado do Espírito afinal?

Para bem da nação tenho assistido ao autoconvencimento e às múltiplas tentativas de persuasão dos autoconvencidos de que uma ideia, política ou religiosa ou ambas são, sem dúvida, sem sombra dela, o germe da salvação do mundo. É assim que têm nascido os mais variados exércitos ao ponto de, por vezes, o mundo me parecer mais uma arena do que qualquer outra coisa... mas, ao sairmos dessa arena, na qual há alarido imenso e gritos, e públicos que a sustentam... ao sair, dessa arena, que vemos à nossa volta?
Brisas que passam, algumas, impressões, vagas outras, fantasmas, alguns... dúvidas cada vez mais e crescentes sobre o verdadeiro papel da arena a não ser aquele que nos diz não servir para mais nada senão ir alimentando esse sentido da vida, ainda que a vida em si não tenha sentido... ou talvez sejam necessárias essas guerras para ir aprendendo o óbvio, que é o irmos arrancando, sempre mais e mais, as armaduras-carapaças desumanas que tanto usamos em combate em nome da humanidade.
Que nos restará um dia senão a consciência de que talvez a arena, essas guerras sem fim, de persuasão, de autoconvencimento não sejam apenas armaduras da subtileza humana que é capaz de sentir a brisa, e que uma vez, livres dessa roupagem essa brisa se torna assertiva e derradeira, como a evidência de um trovão? Desculpem se sonhei um pouco...

(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Há anjos...


(De nada interessa ser louco ou são. O que interessa é o poema que sai.)

Há anjos que não deixam os poetas morrer
E lhe fazem respiração alma a alma
E lhes endireitam as hastes
E lhes redobram as asas
E os ensimesmam de forma tão absoluta
Em arqueologia ainda mais funda
que a verdadeira...
Há anjos que não os deixam morrer
E, no intervalo das multidões sôfregas
Que invadem as florestas sagradas
Nesse espaço de ninguém
Recuperam a flor pisada
Desembocam em cascata
Na verdade que a vida tem
Há anjos criados de sonhos e tormentos
Envoltos nas brumas irrevogáveis
Protegendo o divino navegar
Das sombras mais densas dos abismos
Há anjos que não param, nem para dormir
Ao som das palavras dos que amam
Creem ser elas a razão do seu próprio existir
Há anjos feitos de estrelas
Cujo toque mágico é sincero
Por saberem e terem por verdadeiro
Que a cada poeta salvo
É dado um anjo em tom mais alvo...

(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Longe, tão longe...





Sim, talvez fosse o único nicho do mundo onde era possível ser exuberante e discreto todo o ano. E onde o dentro correspondia ao que estava cá fora num sentido irónico e ligeiramente melancólico... longe, hoje, essa Veneza, essa outra que apenas deixou um rasto de sonho atrás de si. Longe, tão longe das vaidades genuínas e das máscaras tão absurdamente verdadeiras. Longe, essa Veneza do hoje sem arte... percorro as galerias na rua e procuro, em vão, esse vulto d’outrora em que se adivinhava o pormenor, o detalhe e a atenção da máscara... tanto que não era máscara coisa nenhuma mas a realidade última da expressão do artista, andando naturalmente com os chapéus que sabiam vindos da sua própria cabeça, prolongamento deles... nada mascarado, afinal, senão de si próprio... com dias mais discretos, tão discretos que se confundia a máscara com a própria sombra e outros, tão radiantes e luminosos que se confundiam com a própria fonte de luz... longe, tão longe essa Veneza, tão rara de encontrar numa esquina da rua que só tem sentido com ela, e onde, a dignidade da vénia nada mais é do que uma imensa reverência pela arte.


(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Há já algum tempo que não te via...



(dedicado a...  àquele que sabe quando ler este poema)

Havia na tua presença
Toda a recordação viva
De nunca ter partido
Havia em todo o teu glamour
A ciência exacta da arte
Havia toda a máscara
Que te apetecia ter
E por dentro toda a eternidade
Donde te reconhecia
Havia o grande transbordar
Do mais que nós por acontecer
Havia a recordação de um lado
E o não acreditar nela, pelo outro
Havia a certeza intensa
Da mesma natureza e do mesmo instante
Havia a compreensão mútua
De quem não cessa o fogo errante
Havia o fado, a sorte e o destino...
A tragédia, o dom, a alma
e a comédia
Havia a compreensão lenta
Naquilo que era vero diálogo
Havia um espírito reconhecido
E a mágoa desmedida do impossível
Havia a dádiva do nascer do sol
Entregue em embrulho
de sol posto
Havia a recusa de toda a morte
Havia o lugar para além do estado
Havia a gratidão
A loucura como brandura
A ciência exacta dos aflitos
A nobre e eterna guerra
De quem acorda na paz dos anjos
Havia esse pairar que recordavas
Por gestos, tantos e de tanto espanto
Havia o elo que faltava
No desejo absoluto de um novo encanto
Eras o que sempre foste nas Eras
Atravessando e saltando as esferas
Pairavas sem dúvidas ou tormentos
Passei por ti e lá estavas
Só recordei contigo
O principio, o meio e o fim do tempo
Nada de que não te rias quando te digo
Nada que me importe o teu rir
por te saber de cor há tanto tempo
Nem há alegria ou lamento
Apenas a certa ideia que detenho
Como herança que não estrago
Nem me arrependo
Sei-te como se sabe um Mestre
Para além de ti, vejo as montanhas
Transparente e sereno e em recato
no recanto da memória do meu afecto.

(Cynthia Guimarães Taveira)

 



domingo, 23 de novembro de 2014

O que dizem os poetas



"O meu sonho de felicidade seria não haver necessidade de poesia como género literário por ela se achar já realizada na vida."
Natália Correia


Há, nos portugueses de hoje, um sentimento vivo, igual, sem tirar nem pôr, ao sofrimento que atravessa alguma poesia de Mário de Sá Carneiro. Frases como: “Falta-me egoísmo pra ascender ao céu, /Falta-me unção pra me afundar no lôdo.”; “Rios que perdi sem os levar ao mar...”; “Castelos desmantelados, /Leões alados sem juba... “; “Tombei... //  E fico só esmagado sobre mim!... “; “Há exéquias de herois na minha dôr feudal - /E os meus remorsos são terraços sobre o Mar... “, são elas a melodia da incompletude, de uma certa perdição não merecida provinda de um sonho não sonhado mas, ainda assim, traído...

Como se, na História atravessada, desde um D. Sebastião, que sendo parte luz, é também parte sombra, como referência temporal de um auge oriental, no qual, o ponto mais alto é, em simultâneo, o início da queda ficando essa aura incerta marcando o horizonte do olhar à medida que, ora se caminha, ora se rasteja, numa espécie de limbo com seus nevoeiros e luz difusa, a mesma cujas tonalidades constituem o ocaso do dia e o princípio da manhã...

Esse sentimento de incompletude, mais do que a gerar advém das sucessivas tentativas de acompanhar o tempo do mundo, o tempo dos outros. Havendo conquistado o espaço, num Império mais profundo que aquele que é dado a ver nos livros de História, o tempo, esse, havia-nos escapado das mãos enquanto nos enlaçávamos na embriaguez das especiarias, da prata, do ouro, do corpo breve mas seguro da negra que passava em tom desnudo... e, nesse enlace com o mundo, na frequência dele como casa e esta o todo... lá fora, o tempo de cronos passava, implacável, insubmisso e infiel a tudo. Não acompanhámos o tempo porque estávamos entretidos no espaço, longe das revoluções, das máquinas a vapor, das vãs ambições das potências do mundo...


E, por entre monarquias decadentes, repúblicas ausentes, ditaduras abertas, no último século de desventura... resta a sensação de uma incompletude, como um peso que se traduz e que, esse sim, alimentamos e fazemos perdurar, na injustiça vigente que negamos por nos julgarmos incapazes tanto de a merecer como de a ter. Como se houvesse uma autopunição mais forte do que a própria justiça... e essa punição alimentasse essa mesma ausência de justiça. Da mesma forma  que o temperamento português, foi lido, no desenrolo da abertura ao mundo como tendo momentos de euforia e de disforia é verdade que um outro, desde D. Sebastião, foi nascendo e crescendo, por vezes até ao ponto do intolerável porque bloqueador e transgressor da identidade: o sentimento de uma punição auto-infligida e merecida por termos desviado os olhos do tempo na busca de uma eternidade num espaço... um certo desencanto tido logo à partida de cada acto... por não termos acompanhado os tempos. A forma/fórmula esquizofrénica como tentamos resolver esta questão é visível mas apenas como remendo na resposta que vamos dando: ou um fechamento numa tradição da qual nos vamos esquecendo de geração em geração, muitas vezes acompanhada pela falsa-memória do que ela é ou, por outro lado, uma colagem imediata e sem continuidade ao tempo dos outros em actos estrangeirados extremistas... tudo isto resulta num sentido de injustiça permanente que requer um inimigo para que se faça justiça... então... produzimos os nossos próprios inimigos com a facilidade de quem faz um filho e não por desejo, ou por gosto, nem sequer necessidade absoluta (essa seria a nossa morte...), mas porque criámos a necessidade em nós de uma autopunição como forma de gerar a injustiça e de a aplicar em simultâneo... isto é uma doença nacional e, se por um lado vai cumprindo o ditado “mulher doente, dura para sempre”, ou seja, se este viver na margem do tempo dos outros é, em rigor, aquilo que por vezes nos sustenta, por outro, é aquilo que nos coloca sempre à beira de um suicídio colectivo... tentação que recai agora, até, sobre a língua portuguesa, a grande iniciadora a ocidente, centelha do Verbo Divino... sendo que a desvinculação do pensamento constituí, neste momento, o perigo maior pois este aparece colado à falsa noção de sabedoria que é a acumulação de informação (e muita dela enganadora...) e dando a ilusão de, finalmente, “acompanharmos” o tempo dos outros quando, na verdade, essa acumulação não constitui nem faz permanecer o que é a nossa identidade... é nesse sentido que os poetas portugueses têm sido o garante, como rochas firmes ou anjos caídos, apesar de tudo e contra todos, de um certo permanecer, fundamental, da ideia de que em Portugal se pode nascer, não por missão ou castigo, mas em  circunstâncias situadas numa espécie de remoinho da própria consciência e que,  com a consciência desse próprio remoinho, há como que uma condução de uma demonstração, pelo seu papel de transmutadores do sentimento em palavras-Espírito, à noção exacta de que missão e castigo, são uma e a mesma coisa, cumprindo uma espécie de votos paradoxais que se erguem através do tempo, ao longo de gerações, como continuadores da nossa identidade.
Em simultâneo, neste quase-mundo que Portugal é, há, neste momento único  que é o desta  ilusão de finalmente estarmos a acompanhar o tempo dos outros, que nós nos tornámos, enfim, nele e “somos” como eles, sendo que, o que daí retiramos, e por esse ser o verdadeiro estado do mundo actual, sejam fragmentos, divisões, conflitos, guerras, fracturas expostas pela globalização... se o pensamento não nos servir para mais nada ao menos que sirva para que uma parcela da nossa identidade se mantenha viva, no meio dos escombros de todas as guerras, que no intimo mais intimo deste povo de navegadores e poetas, nunca pediu e tão facilmente é capaz, (e opta) de trocar uma arma por uma flor... ou pela palavra, liberdade, quando é mesmo preciso e está de acordo com o ritmo do universo para que da outra ponta da estrela poética que somos se possam ouvir as palavras de Natália Correia:
 
"Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
.


Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
.


Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
.


Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen."



(Cynthia Guimarães Taveira)

 







(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Saudade da saudade



A abraços meus e, oh saudade,
que em vida nem glória nem fortuna...
Primor de Ofélia morta
entre as margens do ser...
Saudades e, oh, abraços meus,
enclaves de sentidos múltiplos,
resto de sonhos difusos, Ai!
Não fosse a sorte de um anjo,
ser minha também...
Abraços meus e, teu olhar...
por entre rosas navega,
labirinto do meu penar.
Doce ternura que deixaste por ficar...
Abraços meus, nos campos d’oiro
Encantos mil foste...
Prima hora dos encontros,
Arte em busca de um altar...
Abraços meus, e, oh, saudade,
não fosse a hora da verdade,
não te voltaria a encontrar...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A voz




É a voz o que mais impressiona...
é um certo timbre...
umas falam de uma bondade inata,
outras, de uma cristalina transparência,
mas outras, raras,
falam de uma outra memória,
mais certa do que a certeza.
É a voz, e não outra coisa
que transportamos da música das esferas...
É ela a memória derradeira
Que não nos engana e nos soterra,
em eternas, amaldiçoadas
e benignas chamas...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

A arte...


(A arte começa com a verdade interior...)

 
Tu, mentira,
já não me dizes nada,
porque não foste nada,
Nem o Portugal dos meus sonhos foste...
És uma tela que não recebe a cor,
uma página sem palavras.
Já não me dizes nada, porque nunca disseste,
porque somente esperaste ouvir,
porque sempre foste o silêncio desértico,
a superfície das esferas,
e nunca atravessei os campos com a tua alma,
ou descobri tesouros debaixo das pedras do teu descanso...
És tudo o que não aconteceu,
nem em sonhos me apareceste,
aparentando um espírito qualquer...
És o vácuo da indecência
de te teres pensado pessoa, ou um deus... em frente a mim...
Porque só esperaste e nada fizeste,
enquanto eu revia a tua história toda
e, com ela,  adquiria asas,
cada vez mais longínquas
e longe de tudo o que não foste,
nem ousaste, apenas pediste para ser...
Fui tudo por ti
Hoje és cinza, eu, fénix
e, de mim  para ti,
deixo-te um inútil véu,
o da tua sombra que encontrarás
a cada esquina inesperada,
como vulto ou fantasma
de todos os espelhos que frequentaste,
devolvendo-te a oca imagem
do nada em que te tornaste...
pedinte de arte
sem talento, nem verdade para a ter.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Oração




Sim , essa profundidade imaginada como se fosse um tom azul escuro, aquele que só um certo azul sabe ter como se nele se adivinhassem infinitos espaços... caminhávamos na noite de Sintra, porque há uma noite que é só de Sintra, feita para ela, igual a esse azul de espaços infinitos, ora com brumas, ora com a lua brilhando como uma coroa. Caminhávamos num caminho que era outro, sobreposto a ele, feito de outras sensações, também elas infinitas, abrindo portais, uns a seguir aos outros, mundos diversos nunca totalmente revelados, mas deixando-nos a promessa de um não-tempo onde, sem brumas, ou ventos, ou sol em demasia, tudo se revelaria na simplicidade aparente que têm todas as essências.

Viamo-la quase como um livro que havíamos roubado de um templo, e entre a minha sensação e a tua havia vidas separando-nos e o gosto comum dessa vida outra que partilhávamos, ali, passo a passo, e que nos envolvia na construção de um templo único, feito pedra preciosa a pedra preciosa e com alicerces inquebráveis por tão sustentados na verdade...

Havia a Sintra secreta, que não dizíamos nem falávamos e que reservávamos para um olhar.
Talvez fosse ela uma noite mais verdadeira do que as outras, porque lá, as estrelas tinham outro brilho, e as árvores em negro recortadas eram sons e presenças, de uma grave e austera consistência, interpostas entre as pedras vivas.

Talvez lá, nós morrêssemos em vida, nessa vida conhecida e de todos os dias, de despertadores e pequenos-almoços apressados, talvez lá, nós morrêssemos por nos sabermos mortos nessa vida conhecida de todos os dias e lá nascêssemos como condição da própria memória do lugar que não permitia a morte, nem a falsa vida.

E, dessa fonte viva, bebêssemos todas as esperanças que nos faltavam, e nessas cascatas nos metamorfoseássemos como deuses reencontrados, sem que houvesse silêncio que pudesse sobrepor-se à luz das estrelas...  e todas as teorias desaparecessem na revelação que eram os nossos gestos acompanhando a ligeira dança dos ramos e das folhas, na brisa que também eramos...

E talvez, regressássemos a casa e guardássemos esse azul, de infinitos espaços, tanto céu, para tanto verde, numa caixa  escondida dentro da eterna vida onde nos conhecemos e onde flutuámos num perpétuo nascimento, na hora de sempre acontecer o milagre de estarmos vivos. As orações, não se oram, vivem-se.

 (Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 15 de novembro de 2014

A solução




A dificuldade da lógica reside no empecilho do sentimento e vice-versa. Quando tudo parece fazer sentido logicamente, o contrário não permite... ainda agora, sentimentalmente, a minha gata achou que deveria sobrepôr o seu corpo e o seu afecto a este caderno enquanto iniciava este texto. Respondi-lhe com lógica: “Sai daqui porque estou a escrever!”. Ela percebeu a minha ligeira zanga. Ligeiramente afastada pela minha mão,  seu olhar modificou-se e tornou-se uma mistura de submissão e algo que dizia: “Daqui não saio, do meu afecto ninguém me tira!”. Esperou cerca de dois minutos sempre com o mesmo olhar. Ao fim desse tempo (que me pareceu imenso) deixei-a trepar e colocar-se entre mim e o caderno, obrigando-me a esticar o braço enquanto escrevo. A minha lógica e o sentimento dela misturaram-se: eu tornei-me mais sentimental e ela, mais racional pois percebeu ser possível um espaço intermédio entre mim e o caderno, e mais, resolveu o problema do texto cuja a autora, ao iniciá-lo, e ainda na primeira linha, não fazia a mínima ideia de como este ia acabar.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 9 de novembro de 2014

Fogo e fogo de artifício...



E quantas vezes os climas em que vivemos são apenas reflexo do macroclima geral? Nos últimos anos assisti apenas a divisões, fragmentações, desuniões, partidarizações, bipolarizações, tripolarizações e quadripolarizações... Na concha cada vez mais delimitada do indivíduo se fecham pessoas e ideias. São conchas firmes, construídas passo a passo ao longo dos últimos minutos dos últimos anos e até o diálogo visível entre molúsculos aparece com todas as probalidades de ser superficial... ou com uma intencionalidade...

Sim, assim anda a Europa também... a vai andar cada vez mais, num diálogo de superfície mantendo a aparência de que é imune a todas as crises...

E quantas vezes, o nosso microcosmos vibra com o cosmos e este com o macrocosmos?

Falo, provavelmente, vezes demais na urgência de se estar desperto para que da consciência do corpo se passe à consciência da consciência e que esta passe para uma consciência da consciência que é também a nossa circunstância.

Enquanto nos estupidificarmos como sociedade estaremos muito mais sujeitos à nossa própria estupidez  e a refugiarmo-nos ou num sentimentalismo adiposo de solidariedades que não curam as feridas (antes as beneficiam como placebos...), ou numa sensação de poder, igualmente adiposa, por conhecermos (antes de todos os outros, atenção...) todas as teorias de conspiração.

Tal é a descida vertiginosa que, por vezes, só conhecemos alguma subida em sonhos... na noite guardada para nós, contrabalanço sereno da tempestade... e quando só ela, a noite, inconsciente, nos seus sonhos de pêndulos compensadores são o último reduto de esperança, então, estamos definitivamente a dormir... porque até as noites se desejavam mais despertas... que dizer? São palavras, palavras que se escrevem, em tom de aviso e lamento... se corpo não despertar, se a curiosidade não surgir, se o descontentamento não nos agitar (e não estes falsos contentamentos tão na moda, tão falsamente espiritualistas... simulacros, apenas, camufladores de insanidades caladas...), se isso não acontecer... andaremos sempre a construir dias de fantasia e não chegaremos a tocar sequer as vestes da imaginação... quanto mais a fragância do espírito?

(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

O achado da língua


Fernando Pessoa, chamou, por diversas vezes, a atenção para a língua portuguesa... sendo até misterioso nalgumas ocasiões no modo como o fazia. O seu poder de síntese (daí ser poeta e de a sua prosa,nos aparecer de alguma forma, como parte dos “bastidores” da poesia...) conduzia-o a frase lapidares. Ora, as frases lapidares contêm o mistério dos mortos, encerram em si toda uma vida e daí que haja lápides funerárias com inscrições que apelam ao “decifrar” de um passado que assim não fica totalmente enterrado na amnésia... Dei com este excerto precioso de J. A. Alves Ambrósio, no qual, parte da frase lapidar de Fernando Pessoa é explicado, revelado. Será apenas parte dessa frase que aqui mostra a sua face luminosa, é verdade, mas não deixa de ser importante chamar a atenção para estes detalhes tão brilhantemente expostos por este autor, publicados no número 14 da  revista Nova Águia, pág. 94 e que contêm em si, o germe, de toda uma relação que se pode ter com uma língua, como coisa viva e não apenas utilitária:

“Se os filhos – ainda que nos mais tenros anos – pronunciassem mal uma palavra ou dessem um “pontapé na gramática”, qualquer dos progenitores, nascidos ambos na segunda década do século passado – e o Pai tinha apenas a 3ª classe e a Mãe a 4ª –, os emendava prontamente.” (...)

"As consequências, na sua lucidez, eram inexoráveis: pensar antes de falar e/ou escrever; a busca do termo adequado (no fundo há matizes não sinónimos); a peculiaridade inerente a cada idioma; a etimologia e a semântica; vários dicionários ao lado; uma raiz, uma génese, e concreções linguísticas diversas, resultado de diversas idiossincrasias; um espantoso alargamento do campo de consciência; a transposição da linguagem, do falar, para o estudo, a escrita e a relacionalidade, v.g.; uma total exigência para a Vida, na Vida; uma prospectiva perspicácia na identificação e comunicação do/com o outro; uma coadjuvância para, desde logo, a captação psicológica do interlocutor e/ou de um auditório para o qual tenha que falar-se; a exponenciação da intuição; o sentir-se cada vez mais seguro interiormente; a indefectível curiosidade; o amor pelo estudo; o sentimento de que quanto mais dificuldades mais vitórias; a elevação da genuína poesia (Camões, Correia Garção, Pessoa, Torga…) e prosa (Vergílio Ferreira entre os contemporâneos); a intangibilidade da Hierarquia e da Tradição (o “medir as distâncias”, como, reiteradamente ou- via dizer ao Pai), etc., etc., etc. Da opulência de resultados, é instante salientar alguns tópicos: o conhecimento de si mesmo; o intangível respeito pelas raízes e pela semântica; o vivo sentido da evolução; o conhecimento do Passado; a incoercível implicação da linguagem – para não me alongar. Com efeito, é absoluta- mente instante lembrar – sempre – que o conhecimento de si mesmo é o ponto de partida de toda a única – e verdadeira – Filosofia; e que a linguagem implica o pensamento – e esta asserção, parece-me, é mais verdadeira que a inversa. (...)

Por outro lado, quando me tornei um cosmopolita, notei – concluí, claro – com absolutas força, consciência, que, por trás, no fundo, de cada idioma o que se situa é uma irredutível, incoercível, espiritualidade.”



quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Cansaço a contra-luz




Ainda os que vão sonhando na floresta do cansaço em árvores levantadas em desencantos, em árvores levantadas de falsas esperanças, abanando aos ventos das tempestades, elevadas as árvores aos expoentes do não-ser, grandes de raízes profundas da civilização das mil-crenças, ver estes portugueses, sombras de si mesmos, plantadores já mecânicos de naus que tardam acontecer. Ver o cansaço extremo de quem vive sem não entender... não é preciso ir muito longe, nem aos governos, nem às bibliotecas, nem aos bancos das escola, nem aos mestres do oriente, não é preciso uma demanda para se ver esses olhos tristemente cansados raramente levantados, estão por toda a parte e não é preciso ir a Marte. Antes, a viagem se faça ao invés, e não seja o longe mais longe que nos dê a real visão do triste momento... que a viagem se faça para dentro dos olhos, bem para dentro, em acto de pura consciência. Que a viagem se faça pelo interior dele, do outro, do aqui tão próximo, do tão próximo que fica que lhe vejamos essas árvores levantadas, na floresta do cansaço, na ilusão do permanecer, tão perto dele, tão junto dele que lhe transmitamos o nosso olhar, mesmo que este seja a visibilidade dessa floresta de Inverno, mesmo que lhes digamos: repara como as árvores se erguem, se movem, se agitam na tristeza do teu penar.
Haverá assim, nem que seja isso, uma companhia... um rasgo de luz nessa floresta... a esperança de que a terra pulse na agonia do desejo do verde imenso da Primavera que, mais do que a serenidade conformada e conformadora, possa um dia devolver a vida no seu estado primeiro: o da alegria. Ainda os que vão sonhando, apanhando a boleia dos pássaros, que são sempre uns poetas... e vão..., ainda porque tudo dêem sem saber que o dão,  ainda que nada lhes seja devolvido, nem a graça, nem a fortuna, ainda assim, são eles os que conhecem o caminho... e talvez cada um saiba e guarde um sonhador dentro de si.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 1 de novembro de 2014

Antes e depois de ti



(a Vaslav Ninjinski)

Mudo, impenetrável,
assim é como danças.
Oh, mistério
O braço que ergues,
inevitável, não escondes a taça...
Danças em noite dourada
Mudo, em apenas música,
de largo respirar,
músculo a músculo,
nem se antevê, a persona escondida.
Nada, barreira intransponível
Somente gesto em chama.
Mudo erguido em som,
nada, para além de seres
mistério puro, frente a mim,
Com um antes e um depois de ti.
Expectativa interna,
dançado no silêncio da voz dos outros.

(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A dádiva das tardes...




Coisas, tantas que por nós passam,
e não regressam envoltas em luz,
e não regressam em sinfonias,
e não regressam nem frágeis,
nem com um olhar que é longe...
Nem nos dedos simples de uma mulher.
E não regressam senão nos braços
de um Deus que é futuro demais,
longura de mais, sonho demais...
Há coisas que para sempre ficam,
nas nuvens do que são,
na eterna missão por cumprir,
num eterno devir, devendo-nos o seu ser.

E passamos, continuamos a passar,
rios intransponíveis,
rios dos desvios da nossa plenitude...
E no oceano, ao longe, só aí,
na bênção do pôr-do-sol,
nos encontramos no mesmo olhar,
em tardes irreflectidas,
dadas, vindas,
como a verdade viva
Suspensa no nosso mar.


(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Palavras recolhidas




Escrever é uma passagem pela rua do desvio do destino como pensar é uma passagem pela mesma rua da alma. Nada obriga a uma coisa ou a outra.  Que o mundo se vislumbre por palavras e que as searas se agitem, qual a diferença fundamental? Se é permitida à consciência o todo que é o todo que percepcionamos e que se bebam as águas ardentes enquanto o sol ferve e o mar se agita, qual a diferença? Que diferença há no mundo ou fica no mundo com as palavras brotando em fonte? Que sustentam ou inventam elas que já não esteja sustentado ou inventado? Que diferença há entre nós e as palavras? Ou semelhança já que brotam da fonte que está antes de nós sequer existirmos... Há um universo ritual nas palavras que em determinadas primaveras permitem a sua recolha, como orvalhos... sem que haja diferença entre o alto e o baixo. Com que instantes, eles, os instantes,  únicos, se nos acercam elas de nós? Há madressilvas nos campos e outras tantas palavras, e há as águias que tudo contemplam e tendem a voar sobre os vales para se sentirem ainda mais altas... como os poetas...
Todo o mundo é uma percepção possível de criação, ou assim julgamos nós. Julgamos que criamos mas limitamo-nos, no nomadismo que é da alma, a recolher as florestas de encantos que se oferecem à nossa passagem. Assintomáticos num a-priori que desconhecemos possuímos todos os sintomas da graciosa doença que é estar vivo... as palavras são um caminho como qualquer outro... só que mais vivo pois obrigam ao silêncio e a uma consciência em tendente desmascaramento das raízes e, em simultâneo, perpetuando os troncos das árvores no seu alongamento. A escrita é um alongamento do mundo, a árvore que tende a crescer até ao infinito... que diferença há, nesta anomalia totalmente inconsistente com a normalidade da presença... Ah, mas como?! Se as palavras se desviam do tempo e o aprisionam e o negando na forma e na virtude o transmutam, deveras... e nessa negação se tornam nele... 
Autenticamente, nem palavras há. Autenticamente nem são necessárias  sequer, autenticamente nem deveríamos falar, nem tornar as palavras coisas. Em virtude das características do ser, só lhe resta estar presente para que seja... o resto, é uma anomalia, uns chamam-lhe missão, outros, castigo... mas sempre algo que transborda do ser que não necessita de palavras por estar em todas elas... quase como num mito antes de ser escrito, antes de ser dito, antes de ser actualizado no jornal da mera existência. Só tomamos a consciência do pré-existente que somos diante do ser outro que encontramos. É no espaço vazio, entre um e outro, que encontramos o ser que somos e todas as palavras possíveis antes de as serem. E todas as palavras que deixámos existir antes dessa consciência adquirem o significado de uma história lida sob uma outra luz e sob essa luz, tudo o que acrescentámos ao mundo, retirámos de nós... desse núcleo vivo, algures situado tão acima ou tão adentro que se torna invisível e indizível ao todo que nos foi dado. E nem a explicação pelo mito o traduz na plenitude. Um mito é parte de uma interrogação maior.


(Cynthia Guimarães Taveira)

Jardim


 
Poderia ser que o olhar
Fosse ainda mais para longe
E te tocasse no horizonte
Poderia ser que o sorriso fosse
Multiplicado pelos instantes
E te desvendasse o teu
Poderia se que as palavras
Fossem todas elas concentradas
Em livros, em prateleiras,
Infinitas na biblioteca
Elevada em degraus
Poderiam ser tantas coisas
Concentradas num único ponto
Jardim que nos percorre
E do qual somos a fonte
Brotando em água fresca
Onde todas as simetrias
Não são pensadas
E onde toda a dança
Solta do nascimento das flores
É da ordem das estrelas
Formando tudo o que quisesses
Entre a dúvida se os deuses
Estão implicitos nelas
Ou se as viagens
Estão inscritas nelas
Ou se ambos vivem e se geram
Enquanto o jardim passa por nós
Na transparência do que somos
Sem alfa ou ómega
No eterno movimento
Do que vamos sendo
Em espíritos unidos
Por aqueles por quem
O jardim passa
Deixando o jardim vivo
Àqueles porque quem
O jardim sempre esperou.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 26 de outubro de 2014

Uma das Heranças de Camões



Ouvido ontem, de um amigo de um amigo. Conversas de café. Conversas daquelas que passam, não têm importância nenhuma. Elas são como bastidores, elas são como o sub-reptício das palestras da ribalta, elas não têm holofotes, nem microfones e escondem mágoas. Palavras ditas mais do que em segredo, em solidão. Uma solidão partilhada por entre várias solidões como um vento que passa. E ainda assim, mesmo sem importância nenhuma, sustêm o mundo, são a forma de consciência exemplar que se esconde. São um sorriso entre amigos. São experiencias e, às vezes, pré-experiências. Surgem de aqui e dali, de amigos de amigos que "trazem outros amigos também". São essas conversas o sustento da alma. São elas que sentem a falta da alma do país e se queixam, porque afinal, ainda tem o país uma alma... seja lá o que isso for: eterno mistério da nebulosa que cobre o planeta, dando-lhe as nuvens e purificando a água... Dizia esse amigo, porque "amigo do meu amigo, meu amigo é...", - provérbio lindíssimo não sei se apenas português mas muito usado por nós - e tão difícil de colocar em prática:
"A inveja e os defeitos dos portugueses são prejudiciais à economia do país". Aquilo que chamamos de virtudes e que os mais conscientes entendem ser o lugar por onde se move o espírito e que os mais conscientes, de entre os conscientes entendem ser ele, o espírito, a vanguarda do tempo e que, por isso, sua luz brilha na síntese de todas as cores... aquilo a que chamamos virtudes e que mais nada são senão as acções da alma cuja genética condicionante pode ser alterada pela prática da consciência diária (assunto mais complicado do que uma mera psicologia em moda - senão todas as psicologias  - cujo vicio determinista fica submerso numa cura aparente), essas virtudes contêm, naturalmente, o seu oposto e, de uma forma, ainda mais menos enganadora, podem ser entendidas como características na paleta dos impulsos do coração, não necessariamente opostas de qualquer coisa, mas características em si...
A cultura de um povo passa por fases, não é estática e cristalizável como nos fizeram crer os antropólogos positivistas nascidos no século XIX e aos quais somos tentados a voltar, de vez em quando, quando a afirmação cultural se torna mais periclitante face à mistura entre sedução e imposição do que vem de fora, tendência que é um movimento de resposta natural de defesa, aliás, mas que deverá conter em si a crítica (autocritica) necessária para que se possa ver também, nessa cultura ideal e cristalizada, os defeitos que acompanham o povo e começaram a acompanhar a partir de determinada altura.
Todo o regresso à História, esse movimento de "se conhecer o passado para melhor se entender o presente", a partir de determinado ponto da viajem da consciência, quando a própria viagem passa a ser  consciência, torna-se a de tentativa de correcção. Não é uma necessidade de "ambição" o que está por detrás desta atitude, é apenas o processo natural que a natureza utiliza no seu desenvolvimento  tendente para a transfiguração sendo que esta não implica o desaparecimento completo da matéria, ao contrário do que um ideal excessivamente platónico  formatou  nalguma cultura ocidental.
Nestas conversas de café... sem importância nenhuma, quantas vezes, estas solidões, paradoxalmente partilhadas, às vezes até com a ajuda de um copo de vinho como "desbloqueante", apenas...  nos revelam o erro, a tristeza dele, a consciencialização dele, mas também a esperança de correcção.
Camões não deixou cair a palavra no final dos Lusíadas "sem querer", inscrita na grande atitude poética que é a verdade do que somos como povo, esta obra deixa um testamento e um aviso: a Inveja como a mãe dos defeitos que devíamos corrigir, talvez em primeiro lugar; sem ela poderá ser que nos seja devolvido o espírito vivaz e vivificador, no impulso que falta a este país para que se cumpra em descrição, amor e harmonia.
A inconsciência dos políticos que têm atravessado os governos ao longo das últimas décadas, a total falta de conhecimento da nossa História e da nossa constituição psíquica e física, conduziram-nos a um lamaçal do qual só é possível sair por via do espírito, e isso, só se faz, encarando a nossa alma, face a face, com toda a sinceridade, mas tanta dela é exigida, que pelo excesso se torna outra palavra: transparência. Só na Transparência a luz do espírito brilha, a verdadeira eucarística, que como sabemos, é uma comunhão na qual se partilha o pão entre com(pão)nheiros, contida no número da própria palavra: 8 consoantes e 5 vogais: o Homem inscrito no Infinito.

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A arte do improviso




No divagar absurdo pelos quais são compostos certos escritos em papel, na actual aceleração dos tempos, concomitantes de certezas absolutistas e várias, na corrida desenfreada de um positivar como coisa verdadeira, abrangendo os tempos e as histórias, no imediatismo chocante da afirmação concreta como critica impar, porque sem par, ou paralelo sequer ou sem contraponto, sem medida que se lhe acrescente, nisto tudo, neste mar envolto de nuvens e agitações profundas no qual os mastros mais parecem sustentáculos imediatistas de convicções que definem e delimitam o ser e toda a imaginação que potencialmente nele vigora, a desenvoltura do vero movimento criativo é colocado numa espécie de cave cujo movimento, em pequenos soluços, como micro-tremores de terra, são sentidos no meio da invalidez da dimensão humana.

Há uma trágica confusão entre o que se é e o que se escreve ou cria quando o que se é se vai sendo, na eterna viagem, mesmo que camuflada de uma casa aburguesada e bem posta, com alicerces fixos em raízes que são apenas a meia esfera iluminada da fonte da criação.  Há uma desmedida violência na herança de uma cultura toda ela baseada no julgamento, que é sempre final (nem necessitamos do final... agora), o que compromete o futuro tornando-o inexistente, na variedade do que possa ser, devido a uma aparente auto-suficiência, na qual, no mundo da criação segue as passadas das teses académicas: cada obra é igual ao ser que a compõe ficando para sempre justificada na sua moldura de notas de rodapé culturais, na bibliografia que (embora sempre parcial) compõe a sua própria história, numa cadeia lógica de acontecimentos que conduziram o ser à obra, acontecimentos fixados no tempo, como datas-prova de uma construção morosa e derradeira, ficando fechados, a obra e o ser em si mesmos, o que produz a sensação de não haver espaço para o que vulgarmente se chama inspiração.

A exigência de regulamentação da arte dentro do quadro das ideologias que, atentemos, como essência, são sempre a mesma no sentido em que promovem a existência de fronteiras que em princípio nem existem... (falo evidentemente do espaço de criação), impõe-se como condição muito parecida àquela da manipulação genética para o apuramento da raça... quando, em termos humanos, tal coisa nem existe. É na urgência do medo e do pânico nascidos do convívio com todo o artificialismo quer tecnológico, quer humano que vigora e ,estando este entrelaçado entre o medo da morte e o sentimento de culpa exacerbado, talhado cuidadosamente na cultura ocidental, que se produzem (a produção não é o mesmo que criação...) e nascem, actualmente, as diversas correntes artístico-ideológicas remetendo estas numa espécie de monotonia que já vai ganhando o epíteto de clássica... ou para a ausência de total criatividade plasmada na actividade criativa como indústria, ou, por via da sua ausência, para inoperância da própria imaginação como instrumento, verdadeiramente capaz, da actividade transmutadora. Tudo isto são sintomas, não de agora, mas de há muito, e não raras vezes a verdadeira actividade criadora sofre, por vias um pouco inexplicáveis, o mesmo percurso que a actividade espiritual, sendo-lhe incrustada , no entanto, muito mais as penas que lhe são próprias do que as benesses de uma “iluminação” capaz de tomar o seu lugar no tempo que lhe é devido.

É vivendo neste tipo de escorreita e infeliz visão tendenciosa das coisas, como que se a um regresso a um maniqueísmo camuflado se tratasse (confundindo e cegando, apenas...) que se torna cada vez mais urgente o improviso, como dom de alcance do movimento temporal. Descontextualizado assim de qualquer apego ideológico, o artista, outra espécie de homem, mas não de raça, poderá, mesmo que em termos invisíveis participar na desenvoltura da vida e na sua perpetuação; reunindo, a arte do improviso, dois tempos, a saber: passado e presente, colocando-se, consequentemente, em posição ideal para o terceiro tempo futuro e ainda uma quarta dimensão lhe é acrescentada porque, de tal modo, solta e livre, permite a operância de uma espécie de "abertura", porque imediatista ao livre fluir de influencias transcendentes. É só nessa, perspectiva, e apenas quando ela é integrada em consciência, que será permitida e a todos os que falem a mesma linguagem (e aqui as artes plásticas e a escrita podem aproximar-se da universalidade permitida em maior abundância pela música), nem que seja apenas num momento, uma espécie de cumplicidade extra-forma, extra-formatada porque ausente de conceitos integrados em vias dirigistas. Isto é sabido há séculos, por exemplo e como espelho desta sabedoria, a escrita dos caracteres cursivos do oriente. Cá, neste ocidente esquecido de si, encontrar-se ainda como linguagem camuflada tanto pela castração que lhe querem impor como pela cegueira de a tornar coisa hermética, fechada, isolada, como câmara secreta de um esoterismo forçado em si mesmo. O verdadeiro esoterismo no qual navegam estes barcos-improviso, ( também encontrados na pintura de ícones, nos quais os olhos são sempre a última coisa a ser pintada, como se aí, toda a mensagem do ícone fosse concentrada num único momento, sem emenda, no próprio simbolismo que contém: centro do centro...) encontra-se à vista de todos... mas apenas alguns se dão conta de tais fenómenos... é nesse sentido que, quem co-participa em tal género criativo, foge aos ditames das regras, por mais que se tentem mecanismos de manipulação, quer venha esta do "baixo", querendo com isto dizer, da pura matéria visível, ou de um invisível inconsciente,  totalmente inconsciente, sem luz do consciente, fenómenos aos quais a maior parte de humanidade está sujeita e que utilizam, exactamente, as vias ideológicas como tentativa de aprisionamento das reais capacidades humanas, motores imóveis, necessários para a mudança de ciclo que se avizinha.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Do barco à caravela


 
Barquito, casca de noz
Tua graça imensa
Não compensa
A vil vontade dos ventos
 
Barquito, frágil
Ao barlavento
Perdido andas
Na rosa dos ventos
Nem norte, nem sul
São as absolutas margens
Do horizonte transbordante
Do outro lado que não sentes
 
Barquito vazio
Sem ninguém que seja alguém
Andas hoje e além
Recebendo das nuvens
As chuvas várias
Desde as finas gotas
Às outras, maiores,
E menos soltas...
 
Barquito simples demais
Balanças em vertigem e abundância
Dia a dia, com ontem e depois
Se de fora do tempo te pudesses ver
E a essas ondas servindo-te o mudar
Na sensação de vontade e boa esperança
Em alvas velas se ergueria teu sorriso
tocando em sua curva a orla
de uma outra despedida...

Nada na tua solidão, barquito só
É teu e único crer
Se dos ventos e marés
És deles só um ter
Enche o barco d’alma
Enche o barco de ti
Fa-lo transbordar
Para além daqui
 
Três vezes rodará o mostrengo
Três vezes a resposta darás
A dos remos, a do leme
E a das velas que o tempo teme...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 19 de outubro de 2014

Tao e tu...



A verdade do teu sorriso,
acompanhando as curvas
das elevações dos montes,
o brilho do teu olhar,
acompanhando o sol...
são predizeres das paisagens
com as quais já sonhaste.
Ver-te no caminho,
é estar no caminho.
O Tao sem fim na tua
inquieta presença
por ser demais
e transbordante
o brilho da tua verdade....
 

(Cynthia Guimarães Taveira)

Tantas e tão variadas cousas


A variedade infinita de almas não iguala a variedade das pequenas centelhas de verdade que compõe cada uma, e cada centelha de verdade que compõe cada uma, não igual a variedade que compõem os trajos de pudor com os quais estas centelhas se cobrem num disfarce... todo o jardim humano que nos cerca é um imenso teatro de versos, reversos e contraversos. Entre tal e tal movimento há um equlibrío parecido com o da natureza.

(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 18 de outubro de 2014

Rotunda forma

(dedicado a Fernando Pessoa)
 
Escadas, degraus
Níveis, andares,
Montanhas, vales,
Costas e arribas
Serpentes sem desvios
Desvios e serpentes a eito
Ícaros, setas
Todos rectas
Todos certos
De recuos e avanços
Altos e baixos
E a longa esperança...
Todos correctos
Enquanto a estrela
Gira e dança
Ponta a ponta
Em quartos de lua
Revela, a outra face
da divina esfera
Rodopia, e balança
A estrela do mar
Lembra a pomba
Abre as asas em leque
Rectas várias a compõem
E em raios múltiplos vibra
Em roda una se agita e vem
De ramos verdes
Pelas águas e ruínas
Pelos caminhos cria e recria
A verdade que o coração tem
Todo o vaso tem asas
Pela quais se pega e se bebe
E na rotunda forma
Atenta e breve
Inúmera e descreve
As palavras dos passos
A música dos voos
O espírito das ausências
A voz das presenças
As viagens das crenças
Na língua-rainha que de tudo é mãe

 
(Cynthia Guimarães Taveira)          


sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Floresta


 
Manter a floresta vazia
Para que as árvores possam dançar
Nem nos ocultarmos sequer
Mante-la longe
Para que a possamos adivinhar
E ela dança, dança
Em braços de folhas
Em flores dispersas
Em ventos-valsas
No limite do que a imaginação alcança


(Cynthia Guimarães Taveira)

O lugar...



Almejas o céu
sem que mudes nada na terra
sem que alteres a letra de uma canção
nem que seja por engano...

Almejas o céu
chocando-te contra ser a ser
em vez de contra a multidão
de cegas passadas e mentes cerradas

Almejas o céu
porque ele está próximo mesmo dentro
da imagem talhada
e dos gesto pensado e detalhado
no xadrez pesado em que te encontras

Almejas o céu
pelas certezas afectadas,
pelos vãos das escadas
a que te agarras em subida esforçada
sem ver que não há degraus

Almejas o céu
pela cópia sagrada, da virtude exacta
enquanto te espraias na praia errada
onde há céu à noite mas sem estrelas agitadas
apenas os sonhos teus do dia passado

Almejas o céu
em tristes fados cantados à beira da estrada
de alma inflamada, em queixume que não se encerra
fugindo de apupos incontornáveis, e ficas
numa sombra sombria ao candeeiro encostada

Almejas o céu
em púlpitos em praça em leque abertos
em trajes alvos e de pombas adornadas
no jeito doce de quem doces dá aos ausentes da jornada
e sentes a glória do mundo em vida encontrada

Sortes há outras, de cujos véus infelizes vão caindo
como tristezas vãs diluídas nas pedras
e outras angústias de novo encontradas
sem que o céu não sejam um lamento
um peso, um grave aceno, um tormento, uma fuga contra o vento
do alto das esferas desejar, aquela praia, aquele lugar
onde não se sabe, nem se tem certeza
nem sequer se a praia é o lugar...

(Cynthia Guimarães Taveira)