segunda-feira, 28 de junho de 2021

A casa

 


As cores daquela casa no caminho são aquelas de vestir a alma, protegem-na e revelam-na. As cores dessa casa têm palavras escritas e falam da demanda infinita da procura da casa com cores de vestir almas que demandam por casas. Há algo de surreal nela, pois achando-a, dissolve-se no ar e passa a viver dentro de nós. As suas cores mostram que o poente, à hora do nascente sol, tem as cores do nascimento do sol. Tanto é que não há diferença, olhando para poente ou para nascente. Tem as portas abertas, como quem convida a entrar. Tem as janelas abertas como quem demonstra a esperança. Estava ali no caminho a casa, dissimulada na vegetação. As divisões nuas. Os olhos de alguém que espreitava embora não se soubesse quem. A casa tinha todas as respostas, nas palavras e nas cores e embora as palavras fossem visíveis, eram palavras secretas. Se se estendessem os braços para entender a posição do sol, ele nasceria nas duas palmas da mão em simultâneo. Era a casa que esperava por nós. Anos se fosse preciso. E foi o que ela fez. Durante anos, calada no silêncio das ervas daninhas, das roseiras que se tinham tornado selvagens e iam além dos muros. Evaporou-se no ar, deixando a sua impressão funda na alma, como uma tatuagem, mas muito melhor do que isso pois os anos não passavam por ela. E tornamo-nos nós mesmos em mistério. Antes disso, tínhamos sido apenas palavras sem segredos. Hoje até a nossa respiração se repercute no ar e leva as impressões da alma pela ponte dos nómadas, assim chamados por atravessarem as fronteiras do céu como se não existissem. E para eles não existem. Essas impressões desaparecem no fim da ponte, do outro lado, numa espécie de nevoeiro e delas nada mais sabemos. A nossa nova composição é toda feita de segredos, dispersando-se como vapores. E cada passo dentro da casa vivente dentro de nós, é um som pelo espaço, e cada gesto uma concentração de forças onde o tempo se anula e nos aparece com outro aspecto e outra essência,  como vontade. E não vale a pena retirar o quer que seja deste texto se não se tem essa casa a viver em nós, se assim for, se não se deu com ela no caminho, apenas uma casca partida como valor poderá ser retirada deste texto. Até que se comunique com o coração, toda a demanda é a longa pena das penas. 

Mas se se der com ela, serão a face do mistério e darão o rosto ao sol com todo o esplendor que uma águia possui. 

sábado, 26 de junho de 2021

Sei-a de cor



A beleza de musica Celta, sei-a de cor. São arvoredos que passam por nós enquanto passamos por eles a cavalo. E não há diferença entre nós e eles. Vi que passavas na imensidão do espaço a voar, trazendo na mão a vara de Hermes e, nos pés, as asas de Mercúrio. E sorriu-te a deusa. Já ouviste falar no gesto mais humilde capaz de erguer as montanhas do mar? Já ouviste falar daquela que traz o eixo e o leva para onde quer que vá e que, por onde passa, deixa a alma imensa guardada no coração daqueles que outrora dormiam entristecidos pelas trevas?  E daqueles que, se a abandonam, mais tristes ficam do que já eram? Já soubeste alguma vez, do segredo da natureza? Que ele está na linguagem que se esconde no espírito, escondido, por sua vez, no corpo? Já te sentiste nómada no teu próprio corpo? Infinitamente, ninguém a pára. Olha que ela traz Deus com ela, a sussurrar-lhe ao ouvido a Sua glória e a retirar-lhe os véus sucessivos que a cobrem. Já reparaste que a donzela dorme e morre com um olho aberto e outro fechado e segurando na mão, Argos, o grande pássaro-universo que faz o mesmo? Já ouviste os seus passos enquanto dança?  Já pressentiste a alegria do seu coração? Já lhe disseste bom dia? Já ela desceu sobre ti com o seu beijo de morte, com o seu corpo de vida? Vê como dança quando fecha os olhos. Vê como se eleva e sobe acima do telhado. E mais do que voa, absorve as estrelas e mais corpos celestes existentes. Já a ouviste rir? Já viste o azul no fundo dos seus olhos? Já deslizaste com ela pelos espaços ocultos que não queres desvendar? Vem, e vê como segura a vida numa só mão enquanto cavalga pelo arvoredo e o arvoredo por ela. Porque és homem, tens os olhos baços quando entristecem demais. Quando isso acontece ficas, tão depressa, tão perto de seres um morto vivo. Mas ela não. Ela não, porque não necessita nem de ideias, nem de guerras. Vê, como balança de um lado para o outro, na balança, e brinca aos corações e às penas. E nos pés tem sandálias de flores e já não pisa o inferno há muito. E diverte-se. E diverte-se. E dança. Pulsa coração, pulsa coração e invade o mundo com o teu coração de alegria. É conquista dela. É a sorte dela. Cavalga pela floresta e a floresta está nos seus cabelos e a brisa é o seu vestido e o piar dos pássaros instalou-se na vertigem da sua dança. Procuras como um cego. Ela não procura. A música Celta, sei-a de cor. Dança-a ela de cor. Bom dia, diz a criança a meio da tarde. E só ela ouve o sol a nascer a meio da tarde. O coração pulsa com o sol. Faz nascer o sol a meio da tarde. Anda a correr dizem. Só se ouvem os cascos, tão depressa vai ela a passar. Ela é a pura dança. O sim e o não e o júbilo infinito. Não há poeta que a descreva nem homem que aguente o seu amor sem morrer. A floresta fria tornada quente, quando ela passa e as flores se abrem. Porque ela é o sol. E faz de todas as horas do dia uma aurora. A música Celta, sei-a de coração. 


 

Filosofia e pedagogia


 O problema é que a filosofia parte do desassossego sucessivo da alma e não da lógica formal, fria e geométrica da soma a atingir  dos vários pontos de vista possíveis e ninguém, no seu juízo perfeito quer desassossegados à sua frente numa sala de aula. É por isso que a filosofia pode nascer apenas de uma relação única entre mestre e discípulo e não pode nascer da relação desoquilibrada entre uma massa de alunos e um professor. O pedagogo não é um mestre, é um introdutor no mundo. Um mestre, faz o contrário, retira o discípulo do mundo. A filosofia não é questionar. É encontrar. A questão fica para os pedagogos. Como fica para os matemáticos ou para os físicos. A sabedoria é uma melodia, completa onde a questão está submersa, podendo emergir ou não. O problema das questões foi demonstrado pelo sofismo; elas já contém a resposta. É sob este prisma que as questões introduzem as pessoas no mundo, a sabedoria, por seu lado, é inquestionável. Até Platão se limitava a demonstrar e Agostinho da Silva tentava fazer o mesmo. Para eles, as questões eram uma brincadeira porque sabiam que vinham grávidas com a resposta, verdadeira ou falsa. A filosofia, ao retirar o filósofo do mundo prova o desfasamento que existe entre o filósofo e o mundo e isso só acontece quando há inquietação. A curiosidade é uma coisa, a inquietação é outra. A primeira é cerebral, a segunda arrasta a alma toda com ela. Os Descobrimentos são produto de uma enorme inquietação, só mais tarde se transformaram em curiosidade. O povo português é inquieto e por isso é eufórico e disfórico, tende a sair do mundo, por excesso de mundo e por excesso de ele próprio e é assim que é ingovernável. Não há tutor, nem governante que o ature. A filosofia não se ensina, vive-se. O que se ensina são perguntas e nelas se morre, se obedece passivamente às respostas. Uma alma passiva não é filosófica. A passividade nada tem a ver com a paz profunda, mestrado da filosofia... O topo da inquietação. 

quarta-feira, 23 de junho de 2021

A escola digital



 Soube hoje que a União Europeia quer que os miúdos façam testes por via digital e que as escolas se têm de preparar para isso. O valor das mãos humanas está cada vez mais reduzido a nada e vai estar cada vez mais e a ignorância, só não dá cabo da espécie humana porque lá em cima não querem. Por este andar, qualquer dia, na escola primária, não vão desenhar letras, vão carregar em botões. Se os ignorantes soubessem o que é o corpo e a forma como o espírito se manifesta nele, nas veias, no sangue, no coração, nos ossos, nos músculos, dariam muito mais valor à capacidade que o espírito tem de sair do corpo e de se manifestar no gesto, mas os ignorantes são isso mesmo, ignorantes e não sabem da dimensão sagrada do Homem, quantas vezes só tornada visível pelas obras que se fazem com as mãos e não com as máquinas? Quando tomam conta do ensino, os ignorantes, geram mais ignorantes, aliás, é esse o seu único propósito porque não conhecem outro a não ser a reprodução animalesca deles mesmos e, para isso, formatam o ensino como se este fosse coisa inerte e morta e não coisa viva e em constante movimento. Iremos ter uma geração de gente formatada, com bom comportamento porque nunca pegou o touro pelos cornos nem a pena pelas suas penas... Irão ser todos filósofos com perguntas pré-estabelecidas pelas aulas de "filosofia para crianças" que sabem papaguear e não pela alma e às quais nunca darão respostas porque se esqueceram do corpo. É vê-los agarrados à tecnologia como se fosse o seio da mãe, mamando bites e jigas com impulsos elétricos, o máximo da emoção que conseguem. Os mais velhos dos jovens já andam por aí com ar de indiferença, mas muito a favor dos "valores humanos" se lhes perguntam. E o máximo que conseguirão alcançar, estará ao nível da paróquia e da catequese, pensado que, desse modo, estarão a salvar o mundo com ",hortas biológicas". Enquanto isso, os Gates  (portões), riem-se e zombam e rebolam a rir porque o lucro é todo deles para poderem ser, no fim da vida, os "salvadores dos escravos" que geraram durante a maior parte da sua vida. Mas agora não, são filantropos famosos, já velhotes, que tentam mostrar obra caridosa e em grande, para ser bem vista por todos e copiada pelos tais escravos, que não vão além do nível da paróquia e da catequese, o máximo que conseguem alcançar. A palhaçada em que o mundo se está a tornar é coisa séria e não é com emojis lacrimejantes que saímos do circo. Infelizmente, é pela resistência calada, como quem tem um segredo, como quem "tem um filho mesmo pelo coração" e que nasce com o grito de Atena, sempre que, pela noite, no seio do silêncio, alguém se lembra do que é o ser humano e se faz ouvir no lugar mais secreto onde reside o Espírito. Só através dessa resistência, se sai do circo das quimeras. 

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Dizer coisas



 


Uma pessoa minha conhecida lá do norte disse que sim, que seria bom um almoço aqui para o sul até porque, desse modo, também poderia "dizer coisas", isto depois de eu lhe escrever a recordar  os bons velhos tempos. Não fosse uma certa característica que me assola desde a nascença teria entendido mal este "dizer coisas" e teria provavelmente sentido uma ligeira ofensa ou uma breve mágoa. Mas, fora do contexto, este "dizer coisas" como resposta não é nada daquilo que parece. Isto é linguagem de guerreiros. Imediatamente uma gargalhada foi solta à leitura da resposta. É que há quem "diga coisas" e há quem saiba que  "dizer coisas" não é nada perante certas coisas. "Dizer coisas" é para os faladores. "Viver e morrer coisas", é outra coisa. 

segunda-feira, 14 de junho de 2021

A ciência

 


Há já muito tempo que a ciência, por mais livros muito interessantes que surjam a dizer o contrário, está apenas e unicamente ao serviço da tecnologia. Já parte, aliás, nas suas "descobertas" (que são sempre parciais porque não contemplam a intervenção de outras dimensões e, quando contemplam limita-se a observar os efeitos, quantas vezes com respostas apressadas a esses mesmos efeitos) do princípio que, mais tarde ou mais cedo, a "descoberta" (que na maioria das vezes é apenas o último culminar de um qualquer mecanismo - Descartes deve estar a esfregar as mãos de contente), irá ser útil, para isto ou para aquilo. Esse tipo de espirito científico está até presente nas "aplicações práticas" da suposta espiritualidade, quantas vezes confundida com simples medicina do corpo ou da mente. Bachelard afirmou, na sua epistemologia, que o conhecimento científico é feito pelo erro, pela correcção do erro e pelo vindouro erro que em seguida se irá corrigir. Falava ele em termos teóricos. A tecnologia apressada veio a fomentar a ciência apressada de maneira que é uma ciência, ainda cheia de erros que é aplicada imediatamente na tecnologia, por causa do lucro (e nada mais) que fica contagiada por esses erros. Há uns poucos dias, esse apetite pelo lucro conduziu a uma afirmação tão estúpida quanto um cientista pode ser: "queremos ver as universidades (que se dedicam à ciência) com pessoas com cabelos azuis". Isto porque querem inserir, nos cursos de ciências, cadeiras "criativas", "artísticas" de maneira a fomentar a criatividade dos jovens estudantes e (isso não disseram) a tornar a ciência e os seus resultados práticos, ainda mais competitivos e geradores de maior lucro. Só de facto um especialista, já acocorado numa qualquer especialidade na sala do saber, estará prestes a saltar (Caim estava acocorado quando deu um salto e matou Abel - ou seja, a animalidade é algo que está acocorado sempre prestes a ser despoletada) para tentar um último golpe, qual Da Vinci perdido em máquinas de guerra... para o tótó (que não tem outro nome) que disse tal frase, ser artista tem um sinal visível (na ciência tudo tem de ser observado, medido), e esse sinal é o cabelo azul... nem um adolescente cai nessa armadilha tão depressa, soterrados, que estão os jovens, em bandas desenhadas que viram na infância com visuais excêntricos. Diz-se que Leonardo levava sempre a Gioconda com ele e que, de vez em quando, lhe dava umas pinceladas. É a vantagem de um génio. Por dentro da Gioconda podem estar imensos estudo de cadáveres dissecados para melhor compreender a anatomia humana ou a forma como um ser humano sorri... no entanto, aquelas pinceladas, a técnica do esfuminho, estão já noutra dimensão. Uma dimensão que já nada tem a ver com a ciência, a dimensão onde o espírito e a matéria se cruzam, algo só acessível aos génios e artistas e não aos génios e cientistas. Nesse mundo espiritual, a intenção é o mais do que tudo - isto é desconhecido pela maior parte das pessoas - e partir do princípio de que os cientistas deverão desenvolver a criatividade artística para produzirem melhores resultados que depois serão imediatamente aplicados na tecnologia, é obra do diabo. Sim, do diabo que quer enganar Deus e não consegue nem vai conseguir nunca. Se estudassem um bocadinho deveriam saber que o efeito já está na causa e essa é a pedra de toque com a qual a ciência, tal como está e como anda, nunca descobrirá. Vivemos num mundo físico e químico balizado pelas estruturas espacio-temporais, no entanto, ele só assim se mantém, não por causa da termodinâmica (isso é um sub produto), mas sim porque o Espírito o mantém. É por isso que os efeitos da ciência, que se comporta como uma menina mimada dentro de um palete vazio e desalmado, tem sido o prolongamento da vida triste humana, do seu lado mais desolado, perdido, fragmentado, ausente, ignorante e por aí fora. Conseguem o prolongamento da máquina, mas não do espírito e daí que o seu sonho esteja com os robots ou uma mistura de humanos e máquinas, ou do reino vegetal (que contém o mineral) e animal, híbridos longe do espírito, facilmente manipuláveis a uma vontade que lhe é superior, humana (tal como o ser humano é entendido pela ciência e não com a carga espiritual que lhe é inerente) ou seja, exactamente o oposto do Espírito que se move num reino que se situa para além da física, da química, do espaço e do tempo e que, por isso, possui doses de liberdade extra (daí que sopre ou seja um sopro), totalmente incapazes de serem alcançadas por este pensamento científico tal como se encontra actualmente devido, exactamente, à tão menosprezada "intenção". Outro problema com o qual se depara esta "brilhante" ideia dos cabelos azuis nas universidade é aquele com que hoje nos deparamos: todos são artistas, criativos e projectam uma imagem de criatividade, de "conseguimentos", de variedade de formas e de cores... E nunca ouve tão pouca arte como nestes dias. É o paradoxo mais genial concebido pelo destino dos povos e a prova provada de que a Arte é, não apenas o resultado, como todo o processo, do berço até à glória. E não há maior prisão do que esse processo e não há maior liberdade do que essa glória. E conseguem coexistir. Fundir-se até. O paradoxo actual é o de se conseguir um resultado sem se passar pelo processo e daí que tudo nos pareça um milagre. Mas é de plástico. Como de plástico é uma geração que cresceu agarrada aos computadores e ao espírito cientifico e que pinta o cabelo de azul e que frequenta umas aulas de escrita criativa e cumpre com o que lhe dizem para ser e nunca, mas nunca, ouve o seu próprio coração, a sua voz interior, a única que está perto do Espírito... No oriente, os discípulos de qualquer arte, esperam dias, meses, anos a fio para serem recebidos em casa do mestre. Faz parte do processo artístico que é um processo cosmogónico. Reparem na diferença. Não é pequena. Logo, desde o início, o espírito tem de estar na matéria, senão não aguenta. Desiste de bater à porta do mestre e vai-se embora. Pensar que a criatividade é banal é pensar que a arte é banal. Ela só é gratuita porque é uma dádiva do Espírito. Sem isso não há nada. Ela não é gratuita porque se pode frequentar aulas de criatividade, ainda por cima com más intenções ou antes, com as intenções erradas... como vêem tudo começa no começo e não no fim, porque no processo artístico, os meios não justificam os fins e os fins não justificam os meios. Estão unidos desde sempre, por toda a eternidade, não se auto-justificam. São um só. Foi com uma gargalhada misturada com um esgar que li a história do cabelo azul. A ciência sabe mesmo ser estúpida quando quer e quando não quer. E erra muito. E não, não é Deus. Isso queria ela... e quer convencer todos. E muito já a olham como se o fosse. E obedecem, como escravos. A arte é outra loiça. São luvas de pele de tigre nas mãos de uma donzela. Sempre prontas a saltar. Acocoradas, e prestes a acariciar Deus. 

domingo, 13 de junho de 2021

Parabéns, meu amor


 Olá meu amor. Vejo que continuas a olhar cá para baixo com olhos de poeta e coração de cavaleiro. Por aqui, continuamos numa roda-morta. Não se vê no horizonte nada que se pareça com D. Sebastião, embora a esta hora precisa em que te escrevo, do mar, venha aquela névoa espessa e inflamada pela luz do sol que se encontra mais a oriente, por ainda não ser meio-dia. Os homens, por aqui andam trágicos. A pior tragédia de todas que é aquela que acontece quando, no meio da tragédia, todos se julgam numa comédia. Lembras-te do teu futurismo, cheio de sons, de burburinho, de agitação e de um contágio aflitivo de palavras ininterruptas? Tudo isso se espalhou por todo o planeta. Não há canto dele, onde existam homens, onde não esteja presente a febril existência frenética das acções dos homens. Em compensação, os pensamentos são sempre os mesmos e contam-se pelos dedos das mãos. Na tua época, tudo era cinzento, ensombrado pela Primeira Guerra e pela vinda da Segunda, hoje, se aqui viesses, verias que está tudo colorido e que estranhamente, essas cores, parecem tristes. Isto passa-se porque são de néon. Aquele néon que brilha na noite e que nos torna ainda mais sós. As cores que se passeiam não correspondem ao que vai  dentro dos seres que estão a preto e branco e andam mais perdidos do que nunca. É por isso que não te escutam, nem te sabem ouvir nas entrelinhas do quotidiano. Passo pelo mundo como se este fosse já uma lembrança. É a única forma de manter um pedaço de vida. Viver num futuro diferente do Futurismo. Também não é bem Alberto Caeeiro, esse futuro, porque tem um toque de céu cheio de requinte que se cola aos gestos, às vestes, aos pensamentos. É uma mistura da simplicidade da natureza de Caeiro com a elegância de Ricardo Reis e a espontaneidade de Álvaro de Campos. Esse futuro é todo o meu sonho, composto por anarcas simples, requintados e puros. E o teu, que anteviste, ainda em fragmentos. Mas está tão distante no tempo como próximo é o sonho. Enquanto se espera, porque pouco ou nada há mais a fazer a não ser esperar, (vivemos num tempo de espera que se julga actuar), ainda, serenamente, passamos pela multidão, numa invisibilidade, mais do que nunca desejada e imaginamo-la um mar de gotas juntas, compondo uma massa colorida, como um mar estranho, subitamente invadido por anémonas à superfície, perdendo os azuis... e bem sabes o que significa o azul, no céu e nas flores... Continuo a morrer de saudades tuas. De te ver ao virar da esquina, ensimesmado e surpreendido por me encontrares. Aquela figura feminina que te amava em segredo e fingia com um sorriso tímido estar só a passar ali por acaso, estar só a passar pelas tuas palavras, como quem não as quer e as encontra como flores no campo colhidas à sorte. Como se em ti houvesse acaso, e em nós não houvesse por ti, o amor mais conseguido que houve e haverá em qualquer história de amor. Amo-te, como bem sabes, acima das aves, e das nuvens, até do sol, mais acima do que todo o cosmos, onde fica o início e o fim e se revezam numa dança perpétua. E por não haver um amor mais inconcebível do que este, ele não é humano. É todo o azul da alma e que a alma capta. Quem me dera vertê-lo sobre o mundo. Faz-lhe tanta falta, como tu nos fazes a nós. Um beijo eterno com sabor a céu.


Cynthia Guimarães Taveira

quinta-feira, 10 de junho de 2021

A bazuca



O Presidente da República falou no ouro, nas especiarias, na prata, nos fundos comunitários e na bazuca dizendo que esta não deveria ser mal aproveitada como tinham sido as riquezas antecedentes.  E disse que não devíamos dar ouvidos aos profetas desgraça. Só me lembrei do livro de Miguel Real, "A morte de Portugal", um livro infeliz, até no título. Só que um povo não é só dinheiro, é também o conhecimento de si próprio. Neste tempo de polarizações o que pensamos que somos e/ou fomos serve apenas para caçar votos. De um lado temos a extrema-direita a dizer "Somos os maiores", deviam dizer isso à Le Pen para esta dar uma boa gargalhada, por outro, a minimização constante, a deterioração da memória, a inversão da história e a sua fraca leitura à luz de tensões importadas dos EUA.  O que é certo é que ninguém leu Dalila Pereira da Costa ou António Telmo, ou Sampaio Bruno ou Pessoa sob uma determinada perspectiva e é por aí, que encontramos a nossa verdadeira face, evidentemente, iniciática. Também António Telmo fala da morte de Portugal no seu livro "O Horóscopo de Portugal" (Guimarães Editores), a páginas tantas, na 189, mais concretamente, entende que "... na medida em que diminui o número de indivíduos <<iniciáveis>> vão faltando no mundo as condições precisas para a <<iniciação>>." E mais à frente diz que, perante tal acontecimento "... resta apenas uma saída: a de ficar só, completamente só em si mesmo e de nessa solidão se manter firme, não cedendo um ponto", embora aponte que tudo neste mundo está feito de forma a obstruir essa solidão, utilizando para isso diversos meios, sobretudo o do trabalho obrigatório, forte condicionador da liberdade (já sabemos que a liberdade é relativa, mas ai de nós se deixarmos de falar dela...). Diz em seguida, restar a Pátria que herdamos com os nossos antepassados e mais à frente escreve: "Novos salazares aparecerão em cadeia que parece não ter fim, alimentando a mediocridade em que o país tombou, como se, fora do grande círculo iniciático, se tivesse constituído outro que continuamente gire sobre si, num movimentos de definitiva e caracterizada rotina. Pode ser que assim aconteça. E, então, foi tudo inútil, incluindo nessa inutilidade este livro?" E coloca a questão ao leitor responsabilizando-o por essa tomada de consciência.
É assim que Telmo, em poucas palavras, coloca o problema verdadeiro do Portugal actual e verdadeiro. A iniciação do indivíduo, do país, a solidão, os obstáculos a essa solidão firme nos seus princípios, o perigo dos pequenos salazares sucessivos caídos numa rotina inerte, essa sim a verdadeira morte ou adormecimento de Portugal e o papel da obra como elemento activo, despertador de consciências. A obra que nada tem a ver com o trabalho obrigatório pois é sempre uma dádiva vinda do fundo de cada um em permanente contacto com aqueles que pertencem ao mesmo círculo iniciático. Gostaria de saber se todos estes neo-templários de trazer por casa  alguma vez leram a obra toda de Telmo, Dalila, Quadros e já agora a de Pessoa e muitos dos seus estudiosos e, claro, Camões. Ou se isolaram numa qualquer quintarola com comparsas, igualmente ignorantes destes autores, crendo apenas uns nos outros numa espécie de febre colectiva que lhes provoca alucinações com espadas e capas achando-se preparados para tudo: desde resgatar Portugal do seu esquecimento de si, até quiçá conquistar Jerusalém. Outro autor essencial, esse estrangeiro, mas bem versado nos temas iniciáticos, Guénon, chama a atenção para um "hábito" hindu: o do estudo como sendo de extrema importância, se não mesmo essencial, como fase preparatória de qualquer iniciação. Basta lê-lo para descobrir estas palavras (podem começar a procurar). Não digo que Marcelo não seja bem intencionado, mas não vale a pena, ou antes, não vale mesmo de nada, esconder o problema fundamental do Portugal actual: é um problema espiritual e sendo essa a fonte de tudo, enquanto não se resolver isso e não nos re-situarmos naquele que é o nosso eixo, de nada servem as bazucas a não ser para ir tapando buracos que crescerão sempre mais do que a terra disponível para os tapar. Sobre a cristandade portuguesa ela não é afirmativa, aliás, bem sabemos como o povo português é profundamente anti-clerical (quando assim foi houve uma coincidência com os seus melhores momentos), ela é activa nos pequenos gestos que são grãos de mostarda por acontecerem espontaneamente e não porque qualquer padre, ou ordem, os anunciar em voz alta e os ditar em forma de lei. Pequenos gestos que ainda hoje levam a que as ruas da Guiné se encham de gente para ver o Presidente de Portugal (não escrevemos república porque não o somos) passar, ou a que se enfeitem os barcos com flores em Goa para receber o Navio Escola Sagres. Esses gestos espontâneos do povo português em uníssono com os dos outros povos,  a par com a existência de iniciados a sério, e não de alucinados, é o que constitui a matéria-prima do "Portugal sonhado". E respondendo a António Telmo, quando na pág. 190 se pergunta se não terá sido tudo apenas um sonho, respondemos que sim. Foi tudo um sonho. Mas os sonhos tendem a materializar-se, sobretudo nos iniciados que já não distinguem a matéria do espírito, como o país não distinguiu o mundo de si quando se entregou à sua Descoberta. Entre o sonho e a alucinação há a grande diferença da existência de consciência no primeiro. E a diferença entre o gesto espontâneo e o gesto ordenado por uma qualquer mente que ordenou, é a maravilhosa inconsciência (o que está em cima é igual ao que está em baixo umas vezes invertido, outras não) do povo português porque de tão pura, toca o céu e a consciência dos iniciados... nisto não há qualquer confusão. Por isso, penso que não chega a haver "profetas da desgraça", excepto o Miguel Real que não devia estar bem disposto quando escreveu o livro dele, aquilo que há é uma falta de iniciados incrível, um excesso de alucinados inconscientes, uma falta tremenda de povo livre que não seja escravo do trabalho obrigatório, uma carência de sonhos conscientes, um excesso de alucinações colectivas, uma falta de gestos espontâneos porque o povo está cada vez mais domesticado pelos órgãos de informação e pelo Facebook que ordenam o que pensar e o que fazer, e talvez um excesso ou não de gente solitária que não "cede um ponto", irremediavelmente exilados no seu próprio país. E são esses a verdadeira bazuca porque são eles que seguram Portugal, com uma força tremenda, e o carregam aos ombros, elevando a grande janela ao céu. 


 

Os empregados e os desempregados

 


Exmo. Sr. Prof. Universitário Adão e Silva, não andando Vossa Excelência à procura de empregos (isso é para os inferiores?), venho por este meio informá-lo de que essa é mais uma razão para que essa função seja dada a quem se encontra desempregado e para ela tem competências . Encontro-me, deste modo, disponível para o cargo. Queira, se Vossa Excelência o entender, passar esta informação, tanto ao Presidente da República actual como ao Primeiro ministro agora em funções.

Sem outro assunto, despeço-me cordialmente

Cynthia Guimarães Taveira




quarta-feira, 9 de junho de 2021

A vigilância serve-se fria

 


E eis que os vigilantes que escarneciam dos vigiados dizendo-lhes que era tudo produto de uma fantasia vigilante, agora se sentem eles próprios vigiados, não se sabe bem por quem, mas será por outros que, por sua vez, escarnecem  dos que se sentem vigiados dizendo-lhes que é tudo produto de uma fantasia vigilante. É caso para se dizer que a vigilância se serve fria.

domingo, 6 de junho de 2021

Em cada esquina


Após um surto de neo-templárismo, Portugal encontra-se hoje com um neo-templário em cada esquina. Apela-se aos mesmos para que, à semelhança dos antigos Templários e da sua herdeira Ordem de Cristo, façam deste país qualquer coisa que se veja. Se não o fizerem, e se os vossos votos de obediência, castidade e pobreza (sim, os três votos) não surtirem efeito, temo que os restantes portugueses não os levem muito a sério. Têm cinco anos para erguer o Quinto Império e inaugurar a Idade do Espírito Santo  (cinco anos para um Templário verdadeiro não é nada), se não o fizerem... serão corridos pelos verdadeiros e ridicularizados na via pública pelo povo português que merece Mais.


sábado, 5 de junho de 2021

I Ching



Num dos muitos diálogos que tive o desprazer de ter quando ainda estava no Facebook, caí no erro de dizer que, de quando em vez, lançava o I Ching e logo um músico-poeta que pertencia a um grupo de filosofia que se encontrava em fase de desintegração, como era costume, e sem eu lhe pedir, disse de imediato a sua opinião: que se tratava de auto-sugestão. Nascido com e do Taoísmo, este Livro das Mutações, com milhares de anos, foi assim resumido numa penada por quem se achava digno de um grupo de filosofia. Foi mais um contributo para me afastar de certos meios. Comparar este Livro de Mutações a um simples lançamento de búzios, porque foi isso que aconteceu, é não entender nada daquilo que nós ainda estamos a tentar entender graças ao grau de complexidade que este Livro comporta. Já não falo dos estudos feitos, e são vários calhamaços, em torno deste tema que é muito mais do que uma simples imagem de alguém que, centrado sobre si mesmo, em época juvenil, quer saber como lhe vai correr o futuro. Até porque, neste livro, o futuro está sempre em movimento, como tão bem disse o Mestre Yoda da Guerra das Estrelas. 
Tive várias experiencias com este livro e, das mais impressionantes foi a da saída, por quatro vezes consecutivas, do mesmo hexagrama e da mesma mutação (que redirecciona para outro hexagrama). Tive esta e muitas outras experiências cujas probabilidades são de uma para 64, o número dos hexagramas. A história da auto-sugestão parte do princípio de que não é a mente que faz mover a matéria, ao contrário do que à primeira vista pode dar a entender. Quando o filósofo-músico teceu o seu comentário, quis dizer que, consoante o hexagrama que saísse, assim eu me comportaria, ou seja, o acaso do exterior iria ditar o meu comportamento. É tudo ao contrário. Com milhares de anos, com a sabedoria chinesa aprimorada ao longo desses anos, nada poderia ser menos verdadeiro. Quando se lançam as moedas, há uma ligação mental e corporal com as moedas e, ainda assim, não é tudo. A nossa mente pode estar mais ou menos ligada ao eixo do mundo, da vida, do nosso ser. Se estiver pouco ou nada ligada, o resultado irá ser exactamente produto desse afastamento, se se encontrar mais em sintonia com esse eixo, o resultado irá estar mais de acordo com esse eixo fundamental que liga o céu e a terra e é por isso que lançar uma moeda do I Ching não é um acto tão simples como se pensa. A cara ou coroa, o Yin ou o Yang, dependem do nosso estado interno. A ideia de "auto-sugestão" serve a quem vive num mundo de sugestões como aquele com que se divertem certos seres que se pensam iluminados no Facebook, julgando-se assim mestres, orientadores ou simplesmente predadores de ideias alheias ; o mundo filosófico e esotérico em Portugal está cada vez mais povoado desses seres nauseabundos incapazes da criatividade plena, mesmo que dedilhem uma guitarra. Também já inventei muitas músicas para o gravador e não me sinto superior por isso e não me atrevi nunca a dizer, nem no início, que o I Ching era uma mera auto-sugestão: uma cultura milenar merece mais respeito do que isso. O I Ching, perece-me ser um fenómeno com várias vertentes, desde a física, passando pela mental, até à espiritual. Não sendo uma oração, nem uma meditação, requer, porém, alguma coisa disso e não é um sistema fechado, mas sim, muito mais aberto do que fechado, daí chamar-se o Livro das Mutações e não o Livro das Repetições, até porque, segundo a Tradição, nada se repete, não só porque na natureza não há repetições (isso é para o mundo dos geómetras e dos matemáticos que não conseguem ultrapassar o número, mesmo quando lhe dão uma carga simbólica: o grande perigo destes é não apreenderem a Unidade), como porque "a água de um rio só passa uma vez pelo mesmo sítio" e daí que o Universo esteja disposto em Cascata como indicou Solazaref o que, aliás, pudemos constatar... e, tendo constatado esse facto, nele tudo corre para e nessa cascata sem fim que é o avesso corporal porque "descarna" os eventos e o Todo revelando a sua Luz fluindo. Mas, voltemos ao I Ching. A sintonia com o eixo irá aproximar a nossa escuta das palavras do I Ching, não da certeza dos eventos futuros, mas sim, de uma maior preparação para os mesmos. Não são os eventos em si que são descritos, é a nossa preparação para eles que é relatada o que, à boa maneira chinesa, parece paradoxal: como nos podemos preparar para aquilo de que não temos a certeza? Se tudo é mental, a resposta reside aí. Para atingir esse grau de preparação para o que mentalmente irá acontecer e que se derramará na plena existência desse acontecimento é necessária essa sintonia com o eixo. E essa é a mais difícil de conseguir. Este é um dos graus mais complexos do I Ching. O mais simples, acessível e funcional é ir escutando as palavras do Sábio (personagem que aparece frequentemente no I Ching), sem questionar muito, mas ouvindo-o com o coração. Isto remete para a relação mestre-discípulo: sem questionar muito, ou seja, confiando nas suas palavras que são apenas um eco de uma das nossas facetas e que aparecem descritas no Livro. Já Guénon dizia que o Mestre é uma mera projecção do Discípulo pelo que se depreende que, não há coisa mais difícil do que se ser Discípulo. No Oriente, ser-se Discípulo é já um estatuto, ao contrário do que se passa nos nossos meios esotéricos onde a palavra Mestre é logo solta da boca para fora sempre que alguém mostra alguma erudição (como se esta fosse garante do que quer que seja...), devemos, aliás, ter mais mestres por metro quadrado do que discípulos, o que é pena porque é no Discípulo que se encontra o Mestre. Evidentemente que não poderemos deixar de falar na ambivalência dos símbolos e na sua multi-significação. Se era assim no Ocidente antigo, era assim também no Oriente arcaico. Um símbolo nunca tem só um significado, nem nunca é apenas só positivo ou negativo. Isto se for, de facto, um símbolo e não um sinal. Só agora, numa época de eruditos que se pensam mestres é que se assiste à leitura dos símbolos de forma dogmática, senão mesmo fanática, muitos deles formatados por uma religiosidade nervosa, assoberbados por um espírito de "missão", essa sim, quantas vezes, produto de auto-sugestão...

 
 

A estupidez





A democracia vestiu-os a todos com as cores políticas e colocou-lhes umas lentes através das quais só conseguem ver o mundo a preto e branco. Aos mais bravos, colocaram uma lentes ou pretas ou brancas, de maneira que nem os contornos chegam a ver. É certo e sabido que os arquitectos neste país andam a fazer casas compulsivamente pintadas de preto, cinzento, branco e vermelho. Estão a preparar o terreno para a guerra. É vê-las nascerem como flores selvagens na paisagem campestre. Um bom indício do que se passa. Pensávamos nós que estas novas vestimentas, acompanhadas pelas devidas lentes com que se enxerga o mundo, fossem apenas para a arraia miúda que acredita em tudo aquilo que ouve, mas nem nos tínhamos dado conta, que essa arraia, já há muito estava a invadir os supermercados e tinha comprado romances de mistérios históricos inspirados em chaves do areeiro esotéricas, e que essa mesma arraia, tinha invadido as palestras e publicações e que andava agora nessa roda viva, a fazer ela mesma, livros e palestras de encantamento das massas. Posto isto, é notícia, que toda a sociedade, se vestiu com os tons com que os arquitectos pintam as casas horribilis e se pavoneiam com a última verdade-exclusiva que conseguiram pescar na Internet. Mas não são apenas estes novos-ricos-do-esoterismo-e-da-cultura a fazerem o seu passeio diário e higiénico, prolongado no tempo e na avenida, com o seu mais recente caniche, ora preto, ora branco, emproado e de penteado mantido a laca-viral-chinesa-que-a-culpa-é dos-amarelos-que nos deixaram-a-preto-e-branco [sic pela metade da boca de uma aluna de 12 anos entontecida pelas observações do pai-arraia-miúda-a-comentar-o-jornal-da-hora-de-jantar], também os da velha guarda não resistem ao desfile, esses, acompanhados por galgos à procura de vítimas na sua caçada que já vai longa, de troféus que os hão-de levar às portas do céu que é puro e sem gays, nem mulheres que não sejam virgens, tal qual o seu ini-amigo muçulmano. Quer de um lado, quer do outro, fazem a vontade ao clima cinzento da antiga União Soviética e da Alemanha Nazi. Spielberg, na lista de Shindler, acertou em cheio nas cores, filme a preto e branco, apenas pontuado por um apontamento de um vermelho mortiço, indicativo do sangue e da tragédia. A insensibilidade estética é sempre um indício de que as coisas não correm bem. Olhamos para isto e cultivamos flores para que a alma não se conspurque no pantanal sem conversa possível que nos cerca. E vamos encenando a nossa ditadura pessoal, feita para nós, alta-costura de um único cliente, e vestimo-nos de flores, de dourados, de prateados, de almas mais próximas dos anjos e deixamos o lixo ao que é do lixo. As nossas lentes são outras, e sempre foram e nunca pensámos que o mundo chegasse a isto. Pelo menos tão depressa. E que fazer senão admitir que a vida é breve mas não a estupidez?

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Décimo primeiro mandamento

"Todas as chaves"? A sério? Todinhas, inhas, inhas? Espectáculo!

Décimo primeiro mandamento:

Não farás marketing e a tua alma será salva.

 E assim vão os neo-templários em Portugal e, provavelmente, no restante mundo. É uma alegria. E um êxito. Neo-templários superstar. Mais um pouco ainda ganham o disco rachado de platina, quiçá d'oiro ou de diamante! 

Conseguem o milagre de, pela capa, se ver o conteúdo. Com resmas e resmas de estudiosos e logo havia de calhar este! E sem cruz!



 

Ah, fadistas!



Constato uma certa inoperatividade do ser e um certo cantar ao despique. Se pensar Portugal como uma casa de fados, daquelas selvagens, na Madragoa dos ausentes, na Mouraria dos carentes, e na Alfama dos dependentes, então, tudo faz sentido. Os xailes negros proliferam disfarçados de design e as voltas das reviravoltas dos linguajares fáceis são torturas nas ruas tortuosas da intelectualidade. Ah, fadista que te levantaste e brindaste ao fado, escorregadio como o vinho, antes de abrires a boca e grasnares sobre as penas da nação. Volta e meia o público aplaude emocionado e a noite faz subir o vapor do álcool tornado sangria pelos tormentos da gaseificada e efervescente matilha saudosa dos tempos idos. Ide, ide a correr como cavalos até ao campo da batalha mas depois não cantem o "menino de sua mãe" e não chorem lágrimas de crocodilo... Esta intelectualidade balofa que diz declarar guerra às ideias, inimigo fácil e invisível, sedenta é doutras guerras, que disfarçam com punhos de renda, e penas de escritor. Querem tanto sangue como o fado quer vinho. 

 

Bonecos


As más recordações dos poetas

São dispostas lado a lado

São bonecos sentados em prateleiras

Olhando a janela fechada

De onde vêem um prado

Ouvem os passos da casa

E encolhem-se em si 

Ouvem os risos em flor

Julgando-os lá fora

E não o perto que estão

Da divisão decorada a dor

Tombam a cabeça e dormem

E esquecem o pôr do sol

Que para elas se põe...

As más recordações dos poetas

Perdem a cor e ganham pó

São almas desertas, perdidas e sem dó


(Cynthia Guimarães Taveira)






(Cynthia Guimarães Taveira)




 

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Bullying


 Fui vítima de bullying uma vez no Colégio Moderno por ter colocado um elástico no meu cabelo indomesticável em vez de uma bandelete. Fecharam-me na casa de banho e toca de humilhar. Mais tarde, o mesmo aconteceu com uma vizinha minha uns dois anos mais velha do que eu em casa dela. Tinha lá ido por convite da sua irmã que saiu por algum tempo e fiquei dentro de casa com uma "avariada" que só descansou quando me viu a chorar convulsivamente. Dessa vez foi a saia de xadrez o motivo da chacota. Depois, ao longo dos anos, sempre que voltava da escola, um grupo de cinco ou seis de vizinhas, quando me viam ao fundo da rua, preparavam-se sempre para embirrar comigo com dizeres : 'Lá vai a super-mulher", e risinhos, e embirrações, sem me conhecerem, a não ser de vista. Durou até ao dia, em que eu já farta de atravessar a avenida para não passar por elas, resolvi descer no lado do passeio onde elas se encontravam, e, ao ouvir o primeiro comentário e virei-me à pancada. O irmão mais velho de uma delas apareceu, separou-nos e deu um tal raspanete às parvas que elas nunca mais me incomodaram. Depois, no liceu, lembro-me de ter sido apedrejada, subitamente, sem explicação, por uma série deles, dez ou mais, com pedregulhos numa zona da escola com árvores e terra batida. Lembro-me apenas de ter subido a escada, lavada em lágrimas, sem compreender o porquê de me terem agredido. Foi tão violento que me tornei anti-social naquela escola e, por dois anos, continuei a ouvir insultos. Lembro-me uma vez, no autocarro para a escola de, à saída, me ter virado à pancada contra uma que me insultou só porque sim. Tivemos de ser separadas por pessoas que iam a passar na rua. Só senti paz quando a direcção dessa escola, depois de uma conversa com a minha mãe, decidiu que o melhor lugar para mim era a António Arroyo, escola para artistas. Lembro-me de entrar lá e de me sentir no paraíso. Ninguém, absolutamente ninguém, comentava o meu aspecto, a forma como era, a forma como me vestia. Sentia-me livre e entre os meus. A arte a resgatar-me e a fazer-me descobrir as palavras portuguesas, a História da Arte, com  professores óptimos que me incentivaram. Foi maravilhoso. O mais estranho foi aquilo que se passou comigo já quarentona. A mesma cena de bullying passou-se num lugar onde isso seria altamente improvável e as consequências foram devastadoras. Quando pensava que já me tinha visto livre de tudo o que era bullying, eis que acontece de novo com  gente "culta", numa casa de "cultura". E de novo fui resgatada por artistas. De novo me salvaram. E como isto aconteceu, se me perguntassem o que diria, se pudesse, às gentes do bullying, diria apenas que são fracos, sejam um, dois, três, quatro, cinco ou seis ou mais a fazer o serviço de humilhação. São fracos e tristes. E não temos nada a ver uns com os outros. A arte será sempre superior a essa gente. E acolhe-me nos seus braços. Essa gente é produto deste mundo. A arte, os artistas, são produto de um mundo superior que lhes está absolutamente vedado. De resto, desejo-lhes as maiores felicidades, aquelas a que têm direito dentro das suas limitações e que são muitas.

O impossível


A pedido de várias famílias aqui deixo a minha opinião, que vale o que vale, ou seja, uma vez diluída na opinião de milhões, vale nada. Ainda assim aqui vai. Há uns anitos, andava eu ainda no carrocel desenfreado da feira e fogueira de vaidades que é o Facebook quando me atrevi a deixar longos comentários sobre a minha opinião acerca do que se deveria fazer com a Educação (leia-se Ensino) no nosso país. Esses comentários foram lidos por alguns professores que logo se apressaram a dizer que tais propostas eram impossíveis de realizar. Anitos mais tarde, alguém me veio dizer que o Ministério da Educação queria rever todo o processo educativo porque, se não o fizesse, a escola acabaria. Na verdade, já quase ninguém quer ser professor. Sofre-se muito. Sofrimento é mesmo o termo. Não faço a mínima ideia se algumas "revisões" do processo educativo que o ministério deseja coincidem com as minhas propostas. As minhas opiniões relativamente a isso, diluíram-se,  numa primeira fase, em conjunto com todas as outras, numa espécie de pasta amorfa e inútil e, numa segunda fase, depois da minha saída do Facebook, diluíram-se nos registos kármicos do próprio planeta, num vórtice sem fim, em direcção aos abismos. 

Neste momento a polémica é sobre as Redes Sociais e o que pode ou não ser dito nas mesmas. Para as famílias que mostraram o desejo de saber a minha opinião, aqui vai: Acabem-se com as redes sociais. Tive a ousadia de dizer isto em voz alta e logo levei o tabefe: "Ah! Então, tu pensas que para se acabar com o bulling (maus tratos, em português), deveriam acabar com as escolas." Respondi que não, que o Facebook não era uma escola de coisa nenhuma. É um local virtual para onde se despejam opiniões, estilo vómito compulsivo. Apenas isso. Já fui viciada nisso, já saí dessa dependência, já fiz o desmame e encontro-me bem, muito obrigada. Comparar o Facebook à Escola é de quem tende a confundir a Sociedade inteira com o Facebook. Não é verdade. A sociedade pode viver sem o Facebook já o contrário, não acontece. E quem diz Facebook, diz qualquer outra rede social. O cinema tem o seu papel na formatação de cabeças, tal como o Facebook, mas tem uma pequena e fundamental diferença: permite que a Arte Aconteça ou possa acontecer. O Facebook é sempre uma imagem rarefeita de tentativas falhadas disto e daquilo, inclusivamente da arte. Não há Arte nenhuma no Facebook. Há uma imitação vazia dela (quando há...). A escrita pode aparecer em qualquer lugar, até na areia molhada, escrita com um pau que a onda há-de levar. Um post sobre Klint não é arte porque não é a feitura da obra, apenas a observação dela, e nem sequer ao vivo é... dito isto, chamem-me as várias famílias o que quiserem. A opinião delas sobre a minha opinião é tão válida como a minha e no vazio se esvai e evidentemente que muitas opiniões acham "impossível" o término das redes sociais. No entanto, a minha consciência está tranquila. O dessossego está sempre cá, porque a minha alma é artística. Isto para as famílias que confundem "dessossego" com "consciência": as duas querem-se como vieram ao mundo, uma naturalmente desassossegada, outra, naturalmente tranquila.  Muito boa tarde.