terça-feira, 31 de março de 2015

Folclore


 
À parte de todas as pontes que nos sustêm as viagens entre o que queremos ou não queremos, converge para o alto a voz, mesmo que a vários níveis dada. A experiência das letras, coisa tipicamente portuguesa, conduz à inevitavel sabedoria dos níveis de compreensão. O grau de exigência implícito na aparente simplicidade de um povo é um facto maior, a ter em conta, aquando nasce um poema, um conto, ou um retrato vivo do que somos. Escrever para letrados, sobretudo para letrados nas iniciações dos livros, não é o mesmo que escrever  para a criança que quer saber. Muito é dito no pequeno sem que se note, sequer, a pedagogia implícita, no respeito máximo pelos níveis dos quais cada um aufere.
O desprezo erudito, é em tudo semelhante, à ignorância que um povo pode ter.


(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 30 de março de 2015

Profecia aguda



Há um antegozo usufruído
Na antevista que contemplo
Lá te vejo nascido
Na antecâmara de viver
Anteiror a tudo isto
Só a anteesperança de te ter
Lembro-me dela na antenoite
Antes até de aparecer
Antes que antecipes tudo isto
Sei um pouco mais aquém
Antegosto do teu gosto
Antes mesmo de ele vir a ser
Parte do tudo que o tudo tem.


 
(Cynthia Guimarães Taveira)

O sonho



Hoje acordei com um sonho
Demasiado fácil de decifrar.
Zanguei-me comigo.
-- Tão fácil?  disse. --  Não saberás fazer melhor?
Intriga-me que o sonho não me intrigue.
É quase como que uma ofensa.
Eu quero uma mentira plena
Para que nela ache a verdade...
 
 
 

(Cynthia Guimarães Taveira)

Mar das lamentações



Há tantas varandas sobre o mar
Quanto os sonhos semi-feitos
Ainda por amar
Tantos barcos na praia
Uns parados,
Outros em partida
E nenhum deles é chegada..
Há tantos pôr-do-sol
Abraçados à memória
Tanto fogo de sant’elmo
Explicando o milagre da electricidade...
Há tantos estados d’alma
Como vidas inteiras acontecidas
Tantas respostas prometidas
Nos socalcos destas rochas
Lanço nas sua poças
Pequenos barcos de papel
Cada um é um poema,
Perdido ao olhar
De quem vê o mar
Nunca achado
nem sido de ninguém
Cada um deles, um recado
Feito no sonho
Que Deus tem 

(Cynthia Guimarães Taveira)

Saudade adormecida

 
 
Somos iguais, eu e tu,
Até naquilo que nos negamos,
Vivemos
Do mesmo modo nos escondemos
Atrás da árvore,
Do mesmo modo trepamos o monte
Há uma igual
energia que nos cerca
Quando de punhos cerrados
Batemos o pé
Somos iguais nos outros eus
Que por dentro  observam
Equiparáveis
Na negação do sonhos
E no acto de sonhar
Não somos espelhos um do outro
Somos mais de que superficeiis fáceis
O nosso cabelo ao vento
É o testemunho vivo
Da liberdade que nos distancia um do outro
Igual liberdade, a única
A que serviu para nos moldar
Nos moldes que recusamos
O nosso abismo está nas nossas mãos
A nossa memória está no bem que nos sentimos
A nossa história não é deste mundo
Ninguém se percebe de igual forma
Como nós
Ninguém se imagina como nós
Somos iguais
Como dois gémeos verdadeiros não o são
No modo como o teu andar por fora,
Ligeiro, quase feminino,
Oposto ao meu
É o meu por dentro
E vice-versa
Somos iguais,
Porque atravessámos a linha do tempo
Porque o espaço da distancia
Nos aproxima, paradoxalmente
Não somos Eros, nem Psique
Porque ambos somos as duas coisas
Juntos formamos a mandala
Adivinhada pelo poeta
Já nem nos buscamos
Porque já nos encontrámos
E todos os momentos
Passaram a ser
os do nosso nascimento
Adormecemos a saudade, sem querer...


(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 29 de março de 2015

Cantiga portuguesa



Às vezes, em Portugal, parecemos burros emparelhados, em si mesmo sendo ensimesmados, andando com a neura do destino sorrindo para que se não diga que se perdeu o tino. E vamos balouçantes, dando a mão pelo caminho, tocando as dores para melhor senti-las, a rir da ferida remexida como quem não é outra coisa senão a mágoa, de recorte nítido, lágrima num olho caindo lenta, sorriso multiface no grande copo de vinho. Às vezes em Portugal, tornamos quieta a alma, por fora assim como quem dá um presente para vestir, e bordamos nas horas vagas os não pensamentos um a um, senão aqueles que são da casa, do quintal e da compra do champô. Toda a quietude manifesta, se se contempla o mar em festa, é suspeita de um lago parado, lá por dentro como um fado, e só a memória quase se nota.  Às vezes somos pouco, por nem saber do mais que somos, galos, galinhas e um porco, fazem do existir um livro morto. Se se nos ilumina o olhar é porque uma criança passou isso e devagar, e só porque alguém versou. Nas cantigas que sustemos, das antigas e das menos, há essa língua que sabemos, grande e imensa no que lembra do que somos e do que temos. Às vezes somos roupas estendidas em degraus, outras  nus d’alma, de repente pelo vento arrebatados e aí, sim,  quase naus.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Cruz lusitana



A verticalidade portuguesa consiste na adopção de todos os deuses vistos no horizonte da cruz, desde que estes sirvam para ser carrascos de nós mesmos.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Nevoeiro



Arte, as três dimensões e o quarto rosto em vislumbre
 
Na primeira dimensão, alguns esperam do acto criativo, apenas e só, um espelho das ideias que têm ou perseguem, num prosseguimento de si próprios.
Na segunda dimensão, alguns  esperam do acto criativo, apenas e só, um espelho das ideias que não têm nem perseguem, numa eterna esperança da novidade de si próprios.
Na terceira, alguns, esperam desse acto, todos os espelhos, que têm e não têm, numa reminiscência, naquilo que os sossega e numa esperança que se lhes impõe.
Em todas estas dimensões, não desvalorizando, se coloca o espelho à frente dos bois...
O quarto rosto a todos acode e espreita, ora mais, ora menos visível, conforme a densidade do nevoeiro, o que em todos há de criadores, naquilo que aponta, em simultâneo, o que é a ausência e a glória de Deus.

(Cynthia Guimarães Taveira)

Dúvida reencarnada



Quantos anos tem a alma
Que contigo vai
Leste e foste o que és?
Viveste e és?
 
Quantas voltas deu a terra
em presença de tal ser?
Estas que em vida carregas,
Ou outras, antes daqui
Lá num outro amanhecer?
 
De que te lembras
Quando as novas nuvens e totais
Entram na paisagem do que és?
Dessas e doutras tais,
escondidas nelas, partindo foram
Em memória outras por ti evocam...

Quantas vezes prometeste
O mesmo nesta vida?
Fora as outras em que prometeste
Não haver mais promessa prometida...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 28 de março de 2015

Absoluto



Sinto-te longe,
nessa grandeza ilimitada,
tornando-me quase nada.
E por tão grande que és,
me tocas,
como quem toca
sem querer, alguém.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

E tu?


Todo o poema dá um desgosto de amor a outro porque lembra os outros que não foram escritos. Deus fica de fora se falamos dos deuses, o mar é esquecido quando fazemos pulsar a terra quente num dia de Verão, o rosto da amada dissolve-se nos Avés de uma Virgem maior, os cornos de um deus vivo nem Cristo crucificam para que se cumpra. E tu, meu amor, onde ficas se não falo de ti? E me perco nas entrelinhas do mundo, procurando-te em todos os poemas que estabeleci e são, afinal, caminhos para ti.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Luz




Luz, que entras e  lembras
todos os solstícios de amor
escondidos nas frestas das pedras.
Luz que invades sem mais nem quê
todos os quintais das infâncias que houveram
em Verões serenos de cigarras cadentes.
Luz que desdobras as ondas do mar
e abranges o escuro azul do sonho tido
na mais intranquila noite do mundo.
Luz que bates nesse chão de pedra
e voltas em voo iluminando a face,
e que fazes arder a rocha
Numa idade que não há ainda...
Luz do dia e do entardecer
em cortinas ondulantes em morno torpor
Nas saias brancas antevendo-se em rendas.
Luz das flores que cintilam à tua passagem,
e tornas o céu improvavelmente claro,
e levas o nevoeiro para longe
ness’outro tempo onde não há poetas tristes,
nem a solidão dos amantes marcando as horas
Nem um gomo caído de uma laranja,
esquecido numa alma que é caminho
Nem os frutos a sós num paraíso antecedido
Luz, de longos braços
apresentando-me ao templo como ave...
Brilhas em água tornada benta com teu beijo
Espelho d’outra que não finge
Sustentando este, aquele
e ainda um outro universo
que não o sabendo todo
em ti , por ti,  em tudo o adivinho.


(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 27 de março de 2015

A matéria-prima do amor




(para Rosemina, pequena flor)
 
Estive com uma amiga de longa data. Por duas vezes, em conversas de horas. Conversas de horas, como são belas essas conversas, como fluem em sorrisos, em pormenores, em paragens. E como, toda a base, do amor ou da amizade é essa busca incessante de tentativa de compreensão do mundo, de nós, como se este e nós guardássemos o segredo de todas as coisas, visíveis e invisíveis. Há, ainda que com mágoas e memórias, alegria nesse percurso de desvendamento. A verdade que procuramos está acima de nós, e nós escalamos a montanha em busca dela. Ela não está em mim, nem em ti: fora de nós como uma dama. A matéria prima do amor, é para além de nós um apelo. A arte do amor, ou da amizade que é o mesmíssimo é essa concentração na verdade no percurso das afirmações e interrogações. O amor não é parado porque se deseja mais do que a ele próprio, porque tem como musa a sabedoria, essa tentativa de a enlaçar. Só é amor porque é em conjunto... só há amor porque há com-junto.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)
 

quarta-feira, 25 de março de 2015

Barco com proa alta


 

O mais alto valor de Portugal é a liberdade (quantas vezes tendo como forma de expressão a independência...).  Colocou, a minha amiga Alexandra Pinto Rebelo, a fotografia da serra de Nossa Senhora do Socorro numa rede social. Estou certa que, lá em cima, bem no alto, e quando se olha em volta, usufrui-se desse sentimento de liberdade. Qualquer um pode subir a montanha. A forma mais rápida é em sonhos. Fechamos os olhos e, num rasgo estamos lá. No entanto, e embora o sonho seja veloz, como por exemplo o facto de se colocar a aprendizagem acima de tudo (forma de liberdade também), o sonho está no domínio do frio... (complementar do quente). Quem o faz em sonhos chega lá, mas quando acorda, dá-se uma sensação de frio, como se a justiça predominasse sobre a mesericórdia. A paridade entre o sol e a lua, permite a correcção entre ambos à medida que, tanto por via do sonho, como por via dos pés no caminho, permite um usufruto da liberdade cuja temperatura é semelhante ao paraíso. É como as formas de luz, que tanto Goethe tentou perceber: a luz pode iluminar a paisagem, como um objecto ou pode conter em si uma propriedade, uma espécie de fogo que, ao mesmo tempo que a desvenda a completa com um substrato cognitivo muito mais lento (mas mais duradoiro ao longo do caminho) do que esse salto, aparentemente irracional, que é o sonho, mas cujo resultado pode ser simplesmente acordar numa estepe deserta.

Quando Camões chama a atenção para o “saber de experiência feito”, chama, igualmente a atenção para o “saber de teoria feito”. A teoria, estranhamente, é o sonho. O sonho, em determinadas alturas precede a realidade, como a teoria precede a prática, como os arquétipos precedem o mundo... a experiência é o encontro com um certo “precedimento” ao mesmo tempo que já foi construido ou descoberto em nós... daí que, a verdadeira leitura, seja uma confirmação e que o paraíso, para certos sábios, seja poder ler e, finalmente, ler compreendendo. Indissociável, é portanto a liberdade do conhecimento. Falo do caso português como via. Ora a grande vantagem de um povo marítimo é esse mar que é todo liberdade. A grande lição é a aprendizagem da bússula, das estrelas, do astrolábio, num dialogo incessante entre terra e céu para melhor se saber do mar...

O substracto deste povo é de uma liberdade endémica. Volta e meia, e por via instintiva se sonha com o cume da montanha e daí as sucessivas revoluções sobretudo depois dos Descobrimentos, numa tentativa de re-alcance da liberdade perdida, no entanto, se formos atrás, e até Aljubarrota, a grande batalha foi a de definir as fronteiras face a Espanha (porque face ao mar não há fronteira numa viagem que é, em simultâneo para o futuro e para o passado) e ainda a construção de uma liberdade espiritual absolutamente sui generis... no modo como foi sendo edificada e mantida, com actos de violência máxima e de doçura máxima mas cujo o cerne, lá está, e volta e meia, reside sempre na procura dessa liberdade, num diálogo com o divino, (quantas vezes directo, dai a originalidade portuguesa...)  algumas vezes traduzido em paz,  não a artificial que hoje tanto vigora, mas naquela que dilui as dúvidas e os fragmentos, tão rara... e tão num ápice, mas ainda assim, existente por diversas vezes. O movimento é incessante.  Do que nos esquecemos  nas últimas revoluções, desde D. Sebastião, é desse principio de independência que é a primeiríssima forma de expressão da nossa liberdade, e esse esquecimento deveu-se, em grande parte, ao contágio com os problemas que nos vieram de fora, obrigando-nos a um circulo vicioso de pequenas revoluções necessárias para que nos mantivessesmos de pé, mas não totalizantes no que concerne a essa subida à montanha, confundindo-se esses pequenos rigores com o sonho, quando nem isso é. O que alguns autores nos vêem lembrar, é exactamente essa separação entre as guerras que não são nossas mas que as cumprimos por falta de alternativa e o aviso de que a par destas corre um sonho verdadeiro e útil que por sua vez corre a par com a realidade com os pés na terra. Quando um autor, mesmo que de forma implícita, faz esta separação, é absolutamente imprescindível dar-lhe atenção pois encontra-se num estado de lucidez e de sintonia com o país que pode estar na base de uma saída pelo alto a uma temperatura que permite a entrada nos domínios da liberdade feita de amor, e, por isso mesmo, quente e susceptível de ser partilhado por muitos e muitos anos e povos. É o chamado Banho Maria do nosso país, que, com um nome masculino (único na Europa), guarda em si, todas as Beatrizes, Sophias, Leonores, Margaridas que a Europa intuiu, ou não tivesse sido raptada, mas que, foi perdendo pelo caminho devido a guerras, algumas delas, francamente, desnecessárias. Não somos aqui uma espécie de Suíça, gelada, oportunista e indiferente a tudo. Muito temos sofrido em consequência da Europa, mas penso, sinceramente, que temos uma palavrinha a dizer à Grécia no que toca à ver acção pelo mundo, não feita de sugestões e alusões, mas feita de “experiência”. É que navegar no Atlântico é muito diferente de navegar no Mediterrâneo: poderemos ouvir os gregos, em parte, mas desde sempre soubemos que a terra era redonda e não quadrada como Tales pensava... Poderemos dar-lhe uma palavrinha, conversar um pouco, trocar ideias, mas Ulisses, quando partiu em viagem, chegou às colunas de Hercules e viu que tudo era diferente do que pensava, esse sim, com “saber de experiência feito”, fundou Ulissipo, na terra da Lux (itânia) cuja memória ainda era mais antiga do que a dele, porque mantida viva, não só em história... talvez por essa liberdade endémica que nos percorre as veias, obrigados que fomos a percorrer o mundo e, nessa obrigação, descobrimos, a um nível inconsciente, o que seria a verdadeira liberdade e como afinal, sempre havia estado em nós, na aparência de um castigo e no substrato, uma missão. Uma missão de libertação, evidentemente: entre a raiz e a flor, às tantas, não há diferença, queremo-la inteira para que possa haver mais. A eternidade reside algures aí, mas se nos darmos conta da luz com que é feita, hei-la desvendada aos nossos olhos, no seu verdadeiro esplendor, bem no meio de um jardim, no alto da montanha, toda ela em vida transbordante.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 23 de março de 2015

Acerca da Portugalidade



O que porque outros passaram, pode tornar-se caro, não como pistas mas como confirmações. Aqui, nestas arribas longas estendidas sobre o mar, lembro mestres:

Dalila P. da Costa
Fernando Pessoa
Camões
Bandarra
António Telmo
António Quadros
Sampaio Bruno
 
Neles, o que há de mais comum, mas também de mais misterioso, de mais imperceptível é a ligação a Portugal que dispensa, nas comunhões com as quais nos cumprimos, qualquer vínculo ao que nos seja externo como país e isto porque, pulsando com as paisagens, falando com os momentos e experimentado as letras, foi o quanto bastou para que, para quem tem ouvidos e para quem tem olhos, se aperceba de que este pequeno território e esta cultura feita de pequenos nadas em comparação com tantas outras mais vistosas e grandiosas, é o suficiente para uma união, em corpo, alma e espírito tanto com o país visível como com o invisível, sustentáculo iniciático real, não por via de um imaginário diáfano, mas sim, por via dessa conjunção tripartida feita a consideráveis dimensões. Adoptar qualquer país ou suas ideias antes do nosso será uma espécie de emigração espiritual, arriscando-se a ser, sem retorno, legitima, mas longínqua.


(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 22 de março de 2015

Sol atrás da montanha



Nesta solidão fosca
Habitam-me todos os seres
Não os que invento
Porque a esses não os desejo
Mas os outros
Povoando o mundo
Ecos e ecos são vozes vivas
Pressinto-os
Sinto-os em cada som
Adormecem comigo ao fim do dia
E sei-os quase de cor
Como se fossem uma família
Nesta solidão fosca
Há sóis para além da montanha
E todas as sombras deste vale
Brilham numa manhã que não sei
Atrás do mar, atrás do próprio sol
Atrás dos seus sonhos até
Como jóias que não ouso usar
Guardadas no cofre do coração

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 21 de março de 2015

Poema simples




Há paragens no olhar,
trazendo outro tempo de volta,
passam e prendem pelo espanto,
vão para longe como ribeiros mansos.
 
Só mais tarde e em surdina,
elas voltam a espreitar, 
revelam o que calado ficou,
no encontro aonde sou...
 
Por de tão longe virem
Voltam na obra-prima do tempo
Não são ciclos, mas círculos
feitos de vontade e de intento
 
(Guardam todo amor
Encerrado na esfera dos anos...)
 
são apenas reflexo das águas
que a alguns assiste e a outros não
a uns reserva as penas
a outros, solidão
 
................................................................
 
guarda-os bem e enobrece
tal mistério tão guardado
se de fios sombrios os teces
em tapeçaria de luz te serão dados...
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)
 
 
 
 

quinta-feira, 19 de março de 2015

Filosofia Marítima



 
A razão pela qual a filosofia sistemática, tanto francesa, como alemã, não nos são convenientes, a nós portugueses, com modos de filosofar próprios, reside no facto de, por genética, herança cultural e chamamento, termos entendido que é tão importante conhecer por dentro os estados de alma de nós e dos outros, como entender o mundo pelo intelecto. Essa nossa natureza de pensamento gera, inevitavelmente,  a saudade como causa de percepção, não totalmente idealista, de que a filosofia só se cumpre, verdadeiramente, na acção. É dentro dessa tensão,  que por constante e que por inevitável, que a filosofia portuguesa é um dos suportes (totalmente indispensável) da nossa espiritualidade que nega as autoestradas para Deus, a espiritualidade destituída de pensamento, um pensamento vazio dos outros, e que autoriza, como um respirar,  todas as ondas do mar.  Semelhante a esse mar, de facto, só o céu.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 17 de março de 2015

Dizem que todos são mistérios...



Dizem que todos são mistérios
mas o mistério está
no mistério que sentimos ser,
o mistério que os outros são
 
É com emoção
que me aproximo de ti ser-igual
reunido de igual mistério
do mistério que sou
 
Eternos desconhecidos de nós
e dos outros que mistérios são...
Há tanta igualdade no mistério,
como no silencio que cobre as estrelas...
A poesia é o disfarce desse silêncio...
 
É com emoção incontrolada por dentro
e controlada por fora que me dirijo a ti,
altar de um deus a conhecer.
Tremem os joelhos, oscilam os equilíbrios
na verdade que és, do mistério que sou.
 
É com esta emoção,
de quem toca a vida pela primeira vez,
que me aproximo de ti, ser,
sabendo-te o mistério do infinito,
incapaz de te perceber,
nem no mistério que em mim habita...
 
Todo o entendimento é já lembrança,
aprisionando liberdades futuras...

(Se entendes não alcanças
o mistério do mistério que em ser me formou)
 
O mistério só é livre,
nada mais é para ser
se me dás parte dele
a outra parte já voou...
 
És uma liberdade voada,
no instante
da verdade encontrada.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 11 de março de 2015

Vida clara




Ah, esta vida clara
Sem alto ou baixo
Nem lembranças
Nem promessas
Tão clara, tão momento
Tão investida de esperança
Vida clara e matriz
Tão intensamente suspensa
Árvore erguida face ao nada
De ramos soltos pela raiz
Ah, sorte, fortuna é apenas
Esse respirar depois do mar
Todo o homem é um dilúvio
Todo ele regressou em pomba
Todo ele é uma ruína
Reconstruída num olhar...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 10 de março de 2015

Mais alto...


Não há nada que me diga
que não me escutes desse lado,
nada que te isole, nada que te seja ilha.
Não tens silêncio,
uma alma cheia nunca tem silêncio...
e até o Espírito ilumina e perturba...
O vazio é uma impossibilidade física
e metafisica.
Não há nada que seja
mais alto do que a vida.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

A esfera e a formação da rima

 
 
Não há qualquer recanto
no recanto dos pensamentos,
nesta estrada não há cantos,
talvez segredos e nada menos
__________________________

Nada se ergue sozinho,
nem o prumo de um fio...
Sabe sempre tão a pouco
não ser menos que infinito...
 
 
Veste a orla das ondas,
a praia com esse vestido,
sem ela seria apenas
um triste fim do destino...
 
 
Todas estas cores,
as que vejo e admiro,
são ideias de umas outras,
Não as vendo lhes sigo o fio...
 
 
Vive quem não sabe
Saber é quase longe
É nesse nunca alcançar
Que ir sabendo é como dar...
________________________
 
Tudo é redondo afinal
Nesta bola de cristal,
As ondas, as cores, o prumo
As faces de um mesmo sinal.

(Cynthia Guimarães Taveira)
 

domingo, 8 de março de 2015

O fruto proíbido é o ...


Para falar rotundamente escrevo poesia e rotundamente falando, como redondo é o fruto, redondamente ela se apresenta para ser mordida. Para falar psicologicamente, assim em jeito de prosa, psicológicamente ir compreendendo, falo em jeito de serpente, sibilo aqui e ali, verdades vagamente encontradas, envolvo e enlaço.  Para falar directamente, mordo. Ninguém gosta de ser mordido, ser o fruto e respectivo atributo, ou seja, ninguém gosta de ser poesia...


(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 7 de março de 2015

Na ribeira, junto ao mar

  



Vou por essa ribeira junto aos mares,
e ao lado, pequenos e leves lagos.
Espuma salta sem nada que a guarde,
E do céu é todo o choro que me arde.
 
 
Vou por ela como quem não sabe,
mas sei do vento que nela vai.
Corre em esperança assim à vista,
por mais que saiba o mar atrai
 
 
Aves, pássaros nas margens,
brancos de longa perna descansam
Cores tantas deles, em penas vão...
E num estão todos os que são
 
 
______________________________
 
Dou a volta no ventre
e o céu não chora mais,
fora dele tudo impele
para o dentro que contém.
 
 
Cada gesto cada cor
grita do fundo da vida.
Nunca beijei uma flor,
até hoje, meu amor
 
 
Vi Cristo numa história
e dei por ela aflita,
afinal até na sombra
a luz envolve e agita...
 
 
______________________________

Só te poderei falar
desta terra infinita
no dia em que a guardares
na ribeira, junto aos mares
 
 
(Cynthia Guiamrães Taveira)


sexta-feira, 6 de março de 2015

A escuta deles



Como escuta um poeta?
Que tempos percorre e que memórias
Donde reconhece, o espelho o poeta?
De que temas, de que providências
De que solo brotam certas flores?
Não escuta a poesia porque ainda não a há
Não escuta os gestos mudos porque são mudos
Que toque, que subtileza é desvendada?
Como se escuta a virtude de um pássaro?
Pelo piar, pelas asas, pela forma de voar?
Só um poeta escreve os passos de Leonor...
Que crepita no poeta que o faz ver no amor?
Que véus o envolvem depois de nú?

 

(Cynthia Guimarães Taveira)