quarta-feira, 29 de abril de 2015

Tédio


Morro de tédio aqui. Todas as aldeias são cortinas na janela com olhos do lado de dentro. Todas escutam e exigem em surdina. Todas as aldeias são o perpétuo descontentamento de serem apenas olhos com cortinas rendadas, de bonitos rendados, de tão bonitos rendados, rendados lindos, vendando os olhos...
Morro de tédio na aldeia do mundo... morro devagar, obedecendo às cortinas, aos olhos por detrás das cortinas. Todas as aldeias estão desertas. Todas são apenas uma emergência. Todas são silêncios à espera que os sinos dobrem: pelo fogo, pela morte.
Todas são iguais, todas são o mundo.
Todo o mundo é um vasto tédio, infame quase, dessacralizado, ossificado, coisificado.
Só um corvo espreitou hoje. Voo directo em direcção a mim. Sei bem que não era um corvo. Era um símbolo apenas. Até os símbolos ficam apenas no tédio das aldeias vindos direitos a nós. Todos os símbolos são meros espelhos de nós. Todas as aldeias nem símbolos chegam a ser: são um desenrolar cansativo das virtudes e dos defeitos humanos.
Toda a paisagem é uma tela em branco. Serve só para isso no seu silêncio. Todos os mestres, Albertos Caeiro morrem, por isso Fernando Pessoa o matou tão cedo. Todas as paisagens não são novidade no branco que são. Todas elas são um novo início, um perpétuo e entediante novo início.  Todas as telas em branco somos nós, no nosso tédio criativo. Todo o tédio criativo é feito para calar as paredes demasiado brancas, toda a escrita é escrita para calar as não palavras. A eternidade do mundo consiste nisto. O amor, é impossível. Porque preenche demais, porque frustra a criação. O amor quere-se sempre pela metade... metade dele chega, porque quando vem inteiro mata. Ninguém quer amar porque ninguém quer morrer. Todas as aldeias são o tédio do amor pela metade. Todo o mundo fica pela metade, é sempre um gomo da laranja única, do fruto que não se prova. Nada se prova, no fundo, nas aldeias.  Tudo é provado como provação, nada é provado como amor. Todas as aldeias do mundo e todo o mundo que é aldeia, é a tela branca do início... na eternidade que imita, paralelamente a ela. 
Todos os gritos são iguais às aldeias no tédio que são.  Todas as palavras escritas são apenas um grito disfarçado de generosidade. A opção certa de não gritar e ir escrever é tão entediante como as aldeias. Toda a arte é um cocktail. Um tchim-tchim feito no tédio para não se morrer de tédio. O que interessa é não morrer: nem de tédio, nem de amor. E o mestre morre para que isso seja possível, morrendo em nós é porque é nascido em nós, numa profunda e entediante incorporação que é a morte dele para que todos os inícios sejam possíveis no desenrolar cósmico, e tendo tédio não possamos morrer, e tendo amor não possamos morrer. Todas as aldeias são a morte aparente da aldeia que já está morta, da paisagem pré-fabricada que nos eleva à nova criação.  A criação existe para calar o mundo que fala demais e cria de menos numa espécie de equilíbrio entediante.

(Mas extra a tudo isto tu vieste e disseste-me que o amor mata e revigora. É só de ti que tenho saudades. Tão transbordantes como do amor que me deste. É só de ti que sei dizer alguma coisa que não seja um tédio. É só no que me deixaste que posso conviver comigo. É só nessa prova de amor irrefutável, que guardei como um laço, que ousei um dia, dizer, que existes. És só tu que és a eternidade. É só a ti que guardo, que calo e não entrego, para não matar ninguém. )
(Cynthia Guimarães Taveira)

Sorte


(Se me deixasse estar apenas

no bosque do silêncio,

contemplar sem acto sequer

de contemplar o encontro

com o bosque do silêncio


A única mudez permitida

é a nossa como escolha,

tudo mais falta ao encontro,

bate no vidro e vai-se embora)


Longe de todas as solidões, sequer,

nada como dantes vejo agora.

Sorte, se permitisses tu

que a música perfeita entrasse

por uma fresta da minha alma...


Sorte se permitisses tu

que do lado de fora viesse

no passo esperado da demanda

de quem a procura num sorriso...


Sorte se deixasses de ser sorte,

essa desvairada e aleatória,

e permaneceses no meu colo,

e deixasses de fingir que és

o inverso da justiça.


E deixasses de acontecer,

só porque tens de acontecer,

e deixasses de te perceber,

como a outra face

do desejo impossível...


Se fosses só um sim...

sem seres o sinal de uma outra coisa.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Em verdade, te digo




Te digo, em verdade
que parte da luz que recebes do sol,
foi uma parte já reflectida em ti e a ti é devolvida,
como  parte da luz que a lua te oferece,
é parte desse sol que em ti esteve, revelando-te.
Te digo, em verdade,
que tudo o que recebe a luz
A devolve, tanto à fonte, como ao que o cerca,
e a volta a receber,
e em verdade te digo,
que todo o espelho que vês,
é, em parte verdadeiro,
no que de verdadeiro tens,
e que todo o caminho que percorreste
(e podendo vê-lo, assim)
o verás à luz que te escapou
enquanto o percorrias,
e que todo o caminho que, em seguida,
percorrerás, é o dos deuses,
capazes de formarem o caminho,
com os seus próprios passos.
E que, na dupla iluminação,
para que seja e se cumpra,
é necessária a mais pura intenção,
semelhante àquela que mais tarde,
fará o próprio caminho, o único
que se pode dizer que o seja...
 
Em verdade, e sem ler, te sei
como parte da mesma luz
que me gerando,  te gerou,
gerando-nos para além de nós...

E em verdade, te direi,
que antes de tudo isto,
nada verás, senão o espelho do desejo,
e que, só passando para lá dele,
de todo e qualquer que ele for,
de toda e qualquer forma em que aparecer,
como prece, até... porque indo além e depois dela...
verás a mesma origem,
no mais encantado e reconhecido silêncio.
 
E que todos os astros giram em alegria
mas aguardam, que as tuas lágrimas
secretas não existam mais,
e pelo dia em que, já sem sombra de não haver
a mais pura intenção possas, enfim, ver, o que vejo
e sempre vi no silêncio mais profundo que guardei,
e tão somente porque a pele me disse,
sem desejo, sem nada
que toda a luz que guardavas
era a mesma que, no meu recanto mais secreto,
escuro e sombrio, exaltava.


(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 26 de abril de 2015

Fado d'amor em Lisboa



 
Encontrei-te na travessa da esperança,
quando já a tinha perdido,
subi em degraus que desciam,
só para avançar pelo teu sorriso,
perdi-te e ganhei-te na cautela
comprada a um mal-disfarçado cupido.
Em voltas, vielas, e esquinas,
no miradouro da saudade em que me desvio,
perdi-te, e de novo foste encontrado.
 
A nossa história é a das ruas da cidade,
poços negros de ciúme,
altos da pena e de queixume,
becos sem saída, quando partias,
onde até a caridade vinha pedir,
tal a tristeza encerrada...
 
Todas as avenidas me levaram,
para fora da cidade
chorei sete rios, nem Madalena o conseguiu,
perdida nos braços do senhor roubado...
No regresso que não pensei,
dou contigo na rua imersa no destino,
quando virava a esquina
da rua da rosa que me deste e se cumpriu.
 
No castelo perdemos, de novo, a idade,
e o cais veio lembrar-nos
que todo o amor acaba
num barco talhado em liberdade.
 
Estou contigo na ribeira,
escondo-me por entre as flores
para que não me vejas,
confundes-me de tal maneira
que me escolhes, sem saberes,
o que pela mão desejas e levas...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)


V de verdade


Charada moderna:

 

Quem tem um preconceito é inferior. Quem tem um conceito é superior. Qual é a diferença?

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 19 de abril de 2015

A Saudade e o Ser



Tudo é sempre uma tradução para a nossa própria linguagem. Pontos centrais de mil e um pontos de referencia que cada qual possui e cada qual, traduz todos os gestos, palavras, acontecimentos, para os seus modos, que são múltiplos de intervir em si próprio porque toda a tradução é também uma intervenção dentro de si próprio, ou para si próprio conforme o grau de sensibilidade e capacidade de aprendizagem. Nesse sentido somos o centro do mundo e num outro sentido estamos sempre como que desfasados de nós próprios. É no intervalo consciente entre essas duas realidades que se manifesta a saudade que, não tendo corpo é, no entanto,  uma forma de expressão que nos tende a elevar. A saudade está no centro de um mito português, mas um mito activo. O que se passou com os mitos foi que eles caíram numa espécie de teatralidade superficial. A saudade como cerne de um movimento mitológico (que só pode ir sendo descoberto lentamente, ao longo da vida) manteve-se em Portugal e gera, com maior ou menor grau de apreensão, de manifestação e de materialidade concreta, um mito activo. Só foi possível essa sobrevivência por via da filosofia, da poesia e da intervenção sobrenatural. É nesse sentido que ele pode ou não tomar a forma do verdadeiro teatro que, como se sabe, tem a sua raiz no mito. É quando esse teatro arcaico intervém na vida ou se manifesta, de alguma forma, que esse mito se revela profundamente activo. Como um fogo. A saudade é um fogo transmutante e, curiosamente, é uma palavra feminina. Sexuada. Basta ir à Antropologia para se rever o que é dito sobre o papel da sexualidade e do fogo...  logo se perceberá porque é que a saudade é o cerne de uma mitologia activa e não passiva. Todos os que, mesmo que inconscientemente alimentaram essa actividade, puderam, ao longo da História deste país, socorrer-se dos pontos de contacto de certas manifestações ou correntes espirituais ou culturais que nos eram alheias... mas são apenas instrumentos para que a saudade se possa evidenciar com maior clareza ao longo das épocas.
 

(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

A biblioteca mentirosa



Passei pela tua biblioteca mas passei sem que visses porque a tua biblioteca estava toda nos teus gestos, na tua certeza e na tua dúvida. Passei como se estivesse lá estado anos mas foram apenas segundos daqueles outros feitos na escuridão das estrelas. Por estar tão escuro não me viste passar mas os meus olhos iluminaram tudo como faróis e, por cada estante, por cada prateleira tudo vi, quase o mundo inteiro: histórias que havias lido e absorvido quase como se fossem tuas,  crenças, pontos de vista e filosofias, tentativas de alcançar uma escada e por quantas escadas passaste.... as tuas leituras navegavam-te embora pensasses ser o contrário.  Passei apenas na tua biblioteca porque tu pensavas que ela eras tu. E fui ver. Mas eram apenas as tuas roupagens, algumas bonitas, outras de seda apenas porque a seda basta. Sei que não estavas lá enquanto com olhos iluminados decifrava até algumas escritas antigas que tinhas para lá guardadas. A razão pela qual não estavas lá é porque nunca chegaste a reparar que, enquanto estavas lá, dois olhos de luz iluminavam até aqueles recantos mais improváveis e secretos que tinhas entre um livro e outro, uma carta, um postal, outras vidas...
Como sei que são todas essas palavras que te navegam a não o contrário, nunca lá estive, a não ser nestas palavras que te navegam. És igual a um livro distante escrito por ninguém.  Ouço a tua voz como se te lesse, mas não estás onde pensas que és escrito. Ninguém te escreve só os teus livros foram escritos para ti como enredos vagos das vidas que tiveste.  Quando alguém não foi escrito não pode ser lido.
Quando me fui embora da biblioteca que te pertence deixei-te um papiro, maior e mais grosso do que os papiros comuns, feito de terra. Era tão grande que atapetava a tua sala toda mas era invisível e tu não o vias. Nele estavam inscritos símbolos. Todos os símbolos que te compunham e que não eram, no entanto, a escrita de ti, por enquanto. Sabia que, daí para a frente, os pisarias um a um, sem que desses por isso.  Sabia que os gastarias nos teus passos desconhecendo que o fazias e desconhecendo-os andarias às cegas por um universo que só era paralelo porque não o conhecias.  Sabia de onde tinha vindo esse papiro e porque o tinha deixado lá.  Navegado que eras pelas palavras não saberias do solo que pisavas sem querer.  O solo donde tinhas brotado, a réstia de uma memória que poderia tornar possível a escrita de ti próprio. Não o fiz por mal nem por bem. Era a única forma que havia encontrado para te dizer que não eras lido, apenas pisado por ti próprio quando atravessavas a sala em busca de um novo volume, de uma nova referência, de uma nova consulta.  Também sabia que, quanto mais pisasses esse papiro, feito de terra, mais fortificado e denso se tornava o solo da tua memória.  A tua biblioteca é, hoje em dia, provavelmente, a biblioteca mais estranha do mundo porque esse solo que calcas, passo a passo, vai-te tornando cada vez mais invisível nos símbolos que és por tão gastos que ficam e mais visível na aglomeração de massa onde te susténs. A densificação da terra dada pelo teu corpo, pelo teu peso  e pela tua insistência em a pisar trouxe a subtileza dos símbolos, evaporados a pouco e pouco, que te compõem. Se fosse ao contrário nenhuma alquimia era possível. Quanto mais densos os símbolos mais coisificados e caídos se tornam, mas se a densidade da massa for acompanhada pela subtileza invisível do que te compõe, aí, poderei ir vendo a obra a fazer-se. A obra da tua própria revelação. As palavras que te navegam não podem navegar-te em terra, só em mar e, quanto maior a densidade da terra que vais pisando, menos essas palavras que compõem os teus livros te navegarão.
 
Quando um dia pegares num livro para seres tu a navegá-lo, finalmente, não olhes para mim dizendo que fui eu que to ofereci. A única coisa que te ofereci foi esse tapete de papiro feito de terra onde te pisaste.  Se quiseres podes ler-me o livro em que pegas porque finalmente acredito em ti.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 16 de abril de 2015

As flores do Sol



Há certas flores
que se fecham à noite,
e de dia se abrem...
Flores do sol, lhes chamo,
acesas demais para a noite.
Há flores de saudade,
viúvas de si, uma vez por dia.
Segredo dentro de um outro.
As mais inexplicáveis, respeitáveis,
em facho vistas absorvendo o dia.
As mais surpreendentes
fazendo-nos suspeitar
da eternidade da alegria.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 14 de abril de 2015

O tempo mítico de Camões



 

 

(Solto na encosta sobre o mar,
pairas agora na Luz,
ao longe escreves ainda a invisível sorte...)
 
Vi-te antes na grande ruína dos mundos,
na glória pálida dos impérios,
na preferida demanda dos mortais,
vi-te nas hostes,
e nas praças desertas de sentidos.
 
Hoje vejo-te  nesse inflamado estado,
em pergaminho abandonado,
de quem não permite nem os próprios olhos,
nem que a tremura de um anjo te desfolhe,
malícia de mágoas em que tornaste,
Reclamando uma só alma...
Nefasto gozo de fel vestido,
não te sabem, nem te sentem
retiram-te a viagem e a vida...
Do príncipe nasceu um bobo
nas cortes, de Lisboa, de Sintra,
de novo exposto,
delas, de novo expulso,
e dado aos lobos...

(ela vem, a flor
vem lá do alto
lançada e em voo
por tudo o que não crês
assim enviada
no exacto tempo
quando disseres
que não vendo, vês)


(Cynthia Guimarães Taveira

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Sargaços e nuvens




Sargaços e nuvens dão à costa,
de mil aventuras, ofuscantes e sagradas.
 
Aqui dão e ninguém lhes pergunta
das correntes que os envolveram,
dos tecidos de mares que os cobriram,
das voltas que deram na terra biface.
 
Ninguém é sempre a solidão,
de uma voz que não pergunta,
sargaços e nuvens na costa vertidos,
de longe em longe por poucos sentidos.
 
(que portas atravessa o ser
antes do portal da chave única?)
 
Sargaços e nuvens vos devolvo,
tudo o que em mim trouxeram,
como navios partem as palavras
n’outros mares vestidas de novo
Para longe,  onde dizem que o céu não finda...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 12 de abril de 2015

Trilhos celestes



(para os utentes deste poema foi elaborado um livro de instruções de leitura, visível, com vista a facilitar a interpretação - cuja subjectividade é apenas uma opção - tornando as palavras da mesma espécie, coloridas ou sublinhadas. Deverá ser lido do princípio para o fim, encontrando-se no seu interior, as peças do achamento da objectividade final, podendo esta ser montada no interior de cada interprete com mais ou menos parafusos, consoante os que tenham à mão. Para qualquer reclamação, sugestão ou observação estão disponíveis durante 24h os serviços de atendimento aos utentes através do número de telefone correspondente ao de cada utente.)

 
Poema em mim
Porque me foi dado mundo
Quando não é dado mundo
Nem Poema em mim
Nem em quem não tem mundo
 
Poema é porque escrevo
Em mesa, secretária, café
Se não houvesse nem mesa,
Nem secretária, nem café,
Talvez não houvesse Poema
 
Todo o Poema é confortável
E o Gesto mais ainda
Se digno e notável de um
Poema que não definha
 
Gesto em mim
Porque me foi dada a Alma
Quando não é dada
Nem Gesto em mim
Nem em quem não é dada a Alma
 
Todo o Gesto é conforme a Alma
Se não a houvesse
Tão cheia de esplendores e horrores
Talvez não houvesse nenhum Gesto
 
Tudo vai sendo um sempre sem fim
No Silêncio que há no Gesto e no Poema
Porque o infinito é um dado que
Quando é dado já não vale
(Só revelado é real)
Se dado for nem Silêncio em mim
Por não caber no infinito que é...
 
Toda a dádiva vai do infinito
Para o finito que somos
Mas no infinito só vive eterno
tudo o que infinitamente é.

(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 11 de abril de 2015

A ironia da esperança



Como criar uma aura de mistério?
Falando por aglutinação de palavras que nunca antes tivessem sido aglutinadas...
Como criar uma aura de vulgaridade?
Falando por palavras que desde sempre foram aglutinadas.
Para quê criar uma aura?
Para que a esperança como hábito, de um lado e de outro sempre perdure. Porque é necessário.

Como não criar uma aura?
Por aglutinações de palavras que nunca antes tivessem sido antes aglutinadas e por palavras que desde sempre tenham sido aglutinadas.
Para quê não criar uma aura?
Para que a esperança não se torne um hábito secreto e nocturno, nem um hábito vulgar e diurno.  Porque é necessário afastar as auras para que o rio flua, por saltos ou devagar,  por entre o mistério e a vulgaridade.  Para que a esperança como imprevista seja um puro movimento do espírito iluminando por dentro tudo o que é vulgar e invulgar.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Noite...


Chamaste-me à parte
para me dizeres do teu aparte,
e assim foi por todas essas festas,
banquetes, danças lá de casa.
Todos se chamavam uns aos outros à parte
para lhes falarem  do seu aparte
e em todas as partes e espelhos via-os dançar.
 
(lembro-me das valsas, dos vestidos,
contemplava a festa
sentada nos degraus de madeira,
espreitando entre uma fresta aberta
dos cortinados escarlate,
sem poder descer por não ter idade)
 
À parte de tudo, lembro-me,
de que todos os apartes
eram todas as valsas,
girando em mundo, ali,
contemplados por olhos,
inesperados, chamados à parte,
por ti, noite,
que te tornas outra
quando, à parte, chamas uma criança
e te esqueces de quando eras adulta...

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

Memória




Alcanço-te, no descanso vago de um olhar
Quem dera que tomasses a forma de um vento
Mas um vento cheio de asas leves
Assisto-te, como quem assiste à passagem
De todos os caprichos que te assistem a ti
 
Sinto-te, vagamente, enquanto fito longe
Tudo o que de mim não ficou
E tudo o que ficou se torna teu, a pouco e pouco
Pó que regressa às esferas...
 
Que importa tudo? Só restam palavras
E pontes a fazer nas brumas estendidas
Para lá do nevoeiro de entre as margens
 
Nada a dizer a não ser esta escuta permanente
D’ outros espelhos improváveis
D’ outras histórias nas tuas mãos que ofereces
 
Alcanço-te e a ave interna ergue o olhar
Nas promessas dos dias aquáticos
Não tenho memórias, nada sei do que vivi
Tudo se colou aos ossos e aí ficou
Sem que fosse nomeável até

 

A memória é só saber...  nada mais,  e tudo o que isso é.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Azul

 
 
O azul não dorme,
nem pela manhã,
nem pela noite,
é inteiro como a alma.
Todas as cores se tranquilizam,
só o azul é tranquilo.
Em boa verdade achei muitos,
deslizando de uns para os outros,
em viagem...
Há por todo o lado essa cor
lembrando-nos o quanto somos de passagem...
O azul não dorme e não age,
fica quieto em céu e mar,
como em nós todo ele se quer,
como a alguns se pode entregar.
O azul é para quem vê
muito mais longe que o céu,
sobe tranquilo em fino fio,
em promessa de uma outra cor.
O azul não dorme nem adormece,
não há tempo que não seja,
encontro-o perto e longe,
mesmo até onde não o querem.
O azul é mais que um símbolo,
código ou desligamento até,
é por onde se tece o destino
quando liberta a alma é já sem dor.
Só contemplo o que sustento
Oh alegria, oh esplendor,
poder olhar para ti,
e para todo o teu pensamento...

(as naves são azuis, as do céu e as do mar
vigoram entre as estrelas, dão saltos em pleno ar)
  
Vejo-te e sou um pêndulo parado,
no que ficou por atravessar...
É lá que te encontro elevado,
no portal da ausente flor que é mar...

 


(Cynthia Guimarães Taveira)

O silêncio da pintura




Pintando, sobretudo, símbolos, são aqueles, no entanto, que nada percebendo de símbolos, mais apreciam este tipo de pintura. Os outros inflamam-se em horrores ou venerações e vejo-os ardendo nos símbolos que elegeram. Muito haveria a dizer sobre a transposição ou viagem através dos símbolos mas aquilo que mais será entendido, no final, será, não o que fala ao inconsciente, porque para isso os símbolos são apenas parte de um todo universo, incluindo o mundo,  falando tudo na totalidade ao inconsciente, mas antes, o dado último da simples revelação. Passado esse limiar, até qualquer fragmentação soa a absurdo. Mas não há absurdo naqueles, que nada percebendo de símbolos, apreciam o símbolo. O sagrado é a ausência de absurdo na prova absurda de que existe. Quando alguém contém o sagrado dentro de si, torna-se, inevitavelmente, absurdo para o mundo dessacralizado. É no maior ou menor grau de sacralização entre as várias pessoas que se torna possível o entendimento. Falo de entendimento, não de boa educação, porque dessa está o mundo cheio, e quando não está também está... senão já tinha desaparecido.

Donde partiste?
Dou-te  o sorriso.
Donde partiste, assim o lerás...
É esta a verdadeira arqueologia,
Até lá, tens uma grande viagem a fazer

Chama-se demanda
Em Portugal chama-se Portugalidade
Se o teu corpo o for, podes partir
Se não o for terás de nascer de novo
Passando pela morte, que não é crise
E, ainda assim, isto é só o princípio

 
Em Portugal, ser-se eleito, é já ter nascido a partir da morte. Os que os são de nascença, não precisam de morrer. As suas vidas são, normalmente, absurdas, a sua missão é tornar os outros absurdos.  Mas absurdos aos seus próprios olhos. Alguns poetas, substitutos dos profetas, têm-no feito melhor do que ninguém.


(Cynthia Guimarães Taveira)


quinta-feira, 9 de abril de 2015

Esoterismo entre nós


Há nós tão cerrados que parecem ter sido feitos pelos marinheiros que o foram e o deixaram de ser e ainda por aqueles que o voltaram a ser, espalhados pela História do mundo. Nós duplos, triplos, tornando as paralelas unas,  formados que foram a partir das histórias, contadas no porão, onde, entre saudades e aventuras, olhando as estrelas, na cachimbada permitida, os enlaçaram esses marinheiros  a um ponto que, até para Deus, são quebra-cabeças porque o nó górdio divino é sempre  um raio que desmancha todos os poentes de uma vez.

E há outros, nós, feitos directamente lá de cima, corda pontuada ao longo da História, por essas voltas, tornando o baixo cima e o cima baixo, com a naturalidade de quem tece uma história que é amor interminável, e que puxa o mundo, por esse universo fora, tornando-o motivo da mais alta contemplação e da mais alta satisfação que aos humanos é dada viver.  Entre uns e outros há como que a diferença entre uma prosa difícil vinda da memória, cuja justiça, soa sempre a pouco, na imensidão das histórias que acompanham os homens e uma prosa fácil, bela, de simples palavras e gestos, mas na qual, a misericórdia prevalece, num toque simples de coração, no voo de asa que acompanha o passo. A primeira não espera e vai acontecendo, a segunda é toda esperança num devir igual a si próprio por provir de um passado que é tão fundo que não há memória sequer memória dele. Apenas acontecimento na plenitude dele.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

Fontes várias



Perto do pavilhão das flores
Junto à fonte no largo maior
Mesmo antes de tal sorte
Vi um anjo a pairar
 
Disse-me ele, sem ser segredo
Porque segredos não os há
Não vás à casa escura sem antes
Beberes a água fresca que o sol doura
 
E afastando-se apontou:
Ora de um lado tudo é voz
Ora do outro tudo é canto
Aqui está o segredo que torna
O mundo todo ele tanto e tanto.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)


terça-feira, 7 de abril de 2015

Convulsão

A convulsão criativa dá sempre uns belos tabefes a quem a nega. Serve, nem que seja para isso. Mas serve sempre, até porque a convulsão criativa é um serviço.

(Cynthia Guimarães Taveira)

A floresta




Desenfreadamente procuramos encontrar o mudo sentido que há no que foi sentido mudamente. Como bichos se procuram na floresta, com os sentidos amplos, atentos, perscrutamos  cada espaço entre as árvores, cada sombra, cada movimento na quietude. A diferença está nos sentidos. E como não usamos os sentidos, esses dos bichos que desenfreadamente se procuram, usamos outros, infinitamente transparentes, onde não há orelhas, nem olhos, nem gosto,  nem nariz e muito menos o toque da terra... porque essa floresta, onde como bichos, nos perscrutamos  desenfreadamente é toda diferente de uma floresta vulgar. Nela, não há uma única árvore sequer. É céu.


(Cynthia Guimarães Taveira)


segunda-feira, 6 de abril de 2015

No primeiro limite



Escrevo sempre a correr... corro para a frente com as palavras. Há uma forma de urgência nítida nesta pressa. Às vezes penso que escrevo a correr para que as palavras não se percam pelo caminho, outras, penso que o faço para as apanhar melhor, ou antes, para elas me apanharem melhor, como se de surpresa. Não sei onde está a verdade. Mas talvez a verdade de um momento único fique nelas. Aquele momento em que foram assim juntas pela primeira vez. O mais perto da origem possível. Nunca pensei que elas fossem algo de tão vivo, tão prontamente a serem vertidas. Sempre houve um lado de mim oculto que escrevia sem que desse por isso. E se nós tivéssemos, cada um, alguém que escreve, ou vá escrevendo pela vida, dentro de si? Um redactor invisível do jornal que tem a forma da nossa consciência? E um dia, um dia, ele surge, quase como se impondo na aparente monotonia dos números que foram saindo sem que tivéssemos dado por isso. Escrevo como um jornalista que trouxesse novidades de uma alma velha, sabendo que não há novidades e que todas as almas são novas a partir da antiguidade de tudo o que visivelmente nos cerca.  Ando pelas ruas do infinito procurando, sem que dê conta, de todos os factos sentidos, de todas as imaginações suficientemente aparatosas para o escaparate da consciência, mas a notícia no mundo sou eu, contemporânea das noticias que todos são. A sincronicidade é uma aparente troca do mesmo jornal contendo lá dentro uma consciência diferente. O tempo investe-nos da legitimidade da novidade e, no entanto, todas as novidades são a prova da antiguidade do mundo, de nós. Ausento-me nessa correria das palavras. Quem chega à meta são elas e não eu. Não estou em parte nenhuma dessas pistas a que concorro e vejo-as, às palavras, subir ao pódio, medalhadas e ouvindo o hino delas próprias. Espanto-me com a distância de tudo isto, mas sei, que foi a velocidade que  criou essa distância e apenas ela porque as palavras são uma incriação criativa ou criadas e, por isso, incapazes de se criarem a elas mesmas, incriativas, por isso.  Às vezes penso que escrevo numa espécie de primeiro limite do ser (porque há outros), como um sonho que tive um dia: corria a tal velocidade que a alma se soltou. Há no tempo um mistério indefinido capaz de alterar o espaço. Como há no tempo das palavras o mistério da sua manifestação. As palavras não são uma manifestação do tempo porque o tempo não se manifesta, é apenas um veículo, uma cápsula para tudo. No limite do ser há, como que mil canetas, e todas as faces são as possibilidades de um anjo que pode passar, cair, por vezes, ou até ficar.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

Meia-noite


Meia-noite. Todas as subtis palavras de aviso são verdadeiras. Mesmo que desagradáveis. Meia-noite. Atento em teus modos como etento em dois ponteiros no relógio. Atento em ti. Dois modos de ser. Subitamente és outro. Retiro os pés da calçada, depois da meia-noite. E aguardo a tua voz de novo. A verdadeira, longe dos ponteiros do relógio. Fora da meia-noite é tudo nevoeiro cerrado, tão cerrado que esticar a mão é atravessar o denso... meia-noite, e agradeces com vénias demasiado visíveis aos outros. Só lá, noutro lugar entenderão o que é a meia-noite. Ou o meio-dia, tanto faz. Desde que a sombra não se confunda mais com os seres por não haver ou o céu não se confunda com as estrelas... Insistes em ser meia-noite e desvendas-te em palavras como se eu as quisesse ouvir. Nunca as pedi, mas tu falas na mesma. Falas sempre desde que descobriste que à meia-noite o verdadeiro feitiço do desencontro das horas se desfaz, e tudo recomeça aí. Nessa meia noite das tuas asas como ponteiros. Quando desces, fechas as asas. Ficam em meia-noite. Juntas. Falas à meia-noite de todas as horas. Surpreendes qualquer tempo porque vens fora dele. Transformas todo ele na tua essência. As tuas palavras ardem sempre. Em brilho, em fogo, em dor, em amor.  Todos os relógios param na tua meia-noite e dizes o que tens a dizer, porque és a hora, em verdade. Depois, vais-te embora levando contigo o segredo. Comigo ficam as tuas palavras e o que posso fazer com elas nas horas que restam e são só desencontros.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 5 de abril de 2015

Talvez...


Para a minha mãe

 

Talvez não me tivessem dado ritos na infância, mas deram-me tudo aquilo de que os ritos são feitos...

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

Elas, as palavras




Todas as palavras são vestes,
modas, túnicas...
Todas sentimentos,
todas absurdas...
Nenhuma é real,
todas se podem tocar,
e usar-se como pulseiras,
ou podem eternizar
o que de pouco eterno
tem a terra inteira.
Passam por nós
como vestais translúcidas,
o seu fogo guardado
é em fora sol e chuva...
Todas são possíveis
dos actos impossíveis.
Passam por nós,
como nós passamos
nesta noite que é o universo,
e até ele passa e não perdura...
Uns disseram que o vento
era a passagem da amargura,
outros que a brisa
era Deus a passar na sua ternura,
passaram nas palavras,
tudo se passou nas palavras,
todas em sopro ditas...
Todas as palavras não são mentiras,
vestem apenas de naves e sistemas,
tudo que não é nave, nem sistema.
Todas fogem do primeiro sentido,
e tentam encontrá-lo nessa fuga.
Todas são vestes e incríveis,
nenhuma se iguala em tamanho
às que não sendo ditas, são entendidas.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 4 de abril de 2015

Montanha



Não esperes em quem nega
a aventura do que somos,
senão a desventura do dia-a-dia.
E porque tormentas e porque montes,
se há-de atravessar a rebeldia,
ousando as cores do real decaídas,
as do sol, as do céu e as da luz sentida.
Não esperes em quem nada espera,
se não consolo do seu medo,
nem a tristeza como pesadelo,
nem a graça em fio de novelo...
Não esperes de quem não inflama
a voz em pleno choro,
se não há grito não há remédio,
se não há dor não há Império.
Sustém a respiração para tais,
como quem espera um sol novo,
e procura noutros locais,
a vida, o sangue e um coração d'Ouro.
Não esperes que o sol se rasgue,
sem que teus pés não os sintas,
depois de calcar o grande sonho,
na volta bem centrada do destino,
calado e mudo reside o tudo mais,
que inaugura e tinge,
o que viste e viveste pelo caminho.
 
 

(Cynthia Guimarães Taveira)