quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O Museu da Língua Portuguesa...




Chamamos contratempo ao que parece ir contra o tempo. Sendo o tempo elite (eleita ou não) provinda de onde, pelo menos, não existe tempo (não sabemos que outras formas de tempo existem para além destas, o tempo, o intemporal e o não tempo e o contemporâneo está incluído, na categoria de tempo e, sob o ponto de vista zen, poderá ou não, conforme o “espírito com que é pronunciado” entrar na categoria do não-tempo), o contratempo, dizia, indo contra o tempo pode ser que esteja a favor ou do intemporal ou até mesmo do não tempo. Dirão: que bem jogas com as palavras! Coisa que me incomoda sobremaneira, senão, vejamos este caso, não são estas concepções (as concepções são mais do que conceitos) sobre a substância ou consistência ou própria natureza de várias palavras cuja raiz é o “tempo”. E tomamos a palavra “tempo” como sendo a raiz apenas porque estamos retidos num universo que aparentemente usa as coordenadas visíveis tanto para o espaço como para o tempo mas poderíamos tomar cada uma das outras como palavras raízes. Hoje ardeu o Museu da Língua Portuguesa e tal contratempo, porque o é, poderá significar coisas diversas consoante a perspectiva em que nos encontremos: de uma perspectiva intemporal, esse contratempo, pode revelar (falo em revelar e não em razão porque a revelação engole a razão e o vice versa na maioria das vezes não acontece)  que a língua é intemporal, ultrapassando o próprio conceito de museu... por outro lado pode revelar a vontade de um não tempo porque por mais interactivo e informático que fosse o museu, a língua não é uma brincadeira de computadores nem uma interacção em forma de jogo lúdico mas sim, qualquer coisa de importante, vivo, e que longe de estar morta e encerrada num museu, se revela afinal, fora das paredes dele não sendo este necessário. Tudo depende do que entendemos ou de que julgamos fazer com a língua. Tanto a ausência de qualquer coisa como a manifestação de qualquer coisa são sintomas de que esse qualquer coisa deve ser motivo de atenção. Um contratempo destes não poderia deixar de ficar imune à análise para quem escreve e lida com a língua. Muito mais do que jogos de palavras trata-se aqui da forma como concebemos, em última análise, a língua portuguesa. Não se trata de tomar partido por museus, mais ou menos informáticos, de existirem museus da língua ou não, trata-se de reparar que qualquer coisa mexeu. E pelo fogo, ainda por cima.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 20 de dezembro de 2015

A Origem

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Se preferem ou se só sabem assim, comecem por ser pirosos e assim genuinamente tenebrosos, se só conhecem essas rosas de rosa fofo e branquinho puro a contrastar. Se não vos foi dado a preferir das duas uma, ou não começam por nada e se limitam a imitar ou então, choro por vós que genuínos já nasceram, únicos e originais e sem ter essa ambição. Claro, que vocês, os últimos, são o meu motivo de pena... coitados sempre que enfrentam a ousadia de um futuro que vos violenta. Os outros seguirão o curso do rio, natural e límpido com uma ou outra pedra no caminho, estrelas navegando num céu certinho.
 
Mas ai de quem que não procurando encontra
Não temendo foge
Não amando ama mais
 
Ai de quem vivo se faz morto por desporto
e quando da morte diz que é apenas sorte
E ri dos ais das quedas
E ascende num só salto
Como um rasgão impenssavel as altas esferas
 
Deles só outros iguais se aperceberão
Tudo o mais é redução
Temperada, equilibrada
De sabor calculado e acabado
conveniente à emoção
 
E, mais tarde ou mais cedo,
depois de tal  ilusória sublimação,
os que por ais não solto
antes um sorriso de gratidão
procurando não encontram
temendo, fogem
amando amam menos
 
e deles exala o perfume
a subtil odor infecto
e por quem por ais solto
colhem nas trevas que deles resta
toda a luz do sol em festa...
 
se por ais e arrepios
por mim me vires passar
toma em conta o destino
que por maior nos fez encontrar.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Outra afinal sou...





Estou espantada e abismada
No alto desta escarpa
E no cimo dela uma muralha
Contemplo o templo que é em água

Retorno dela, Atlântida
Donde vim sem o saber
Não fosse esse cheiro a maresia
Seu dom sem ninguém saber

Ouço-te no sopro dessa brisa
Que em espuma atravessa meu canto
Só por ele sei e digo
O porquê desse meu espanto

Alma antiga e extrovertida
Num tempo sem o dever ser
Ninguém acredita na primazia
Da alta voz que em nós sacia

Do alto dessa muralha
Sobre a escarpa abismada
Meus olhos atlantes a vêm
Grave sublime a anoitecer

E nesse rosto de cristal
Donde nunca fugi ser
Aproximo-me da vigia
Donde vigio todo o saber

O mar galga afinado
O rosto iluminado
A minha mão estendida lhe dou
Outra de mim e não outra, afinal, sou.

(Cynthia Guimarães Taveira)

Birra




Estou em birra com Portugal

E já não escrevo mais

Sou a birra de Portugal

E dele já nem quero saber

Embirro para não berrar

Porque ao berrar já escrevo

Estou em birra com estes montes

Que são só montes e não os símbolos que podiam ser

Estou em birra com este mar donde não vem barco algum

E donde não se pode sair por ser um bilhete postal para turistas

Estou em birra com este vazio de emigrantes emigrados de si

E estes cataventos de um galo abrasador que canta a qualquer hora

Estou em birra com esses navegantes de quinhentos que se foram e não voltaram

Em birra com a vitória inacabada de um sonho que veio sempre tarde e acabou esquecido

Estou neste comboio que já não anda e que se esquece num cais de um Sodré donde restam malas vazias e atitudes frias

Não escrevo mais para poupar a tinta e o cansaço que se quer grande e sublime sinal de muito trabalho feito investido na lapela para todos verem o quanto somos cansadamente grandes

Estou em dívida com o futuro e nada mais e bem vistas as coisas ele é que me deve todos os sonhos que Portugal teve para si

Não escrevo mais nem nas margens desses rios donde brotam as memórias e os sentidos contemporâneos disfarçados de presente com cheirinho a futurismo que já nem fresco é

Estou em dívida para com as palavras a que me recuso por não ter paciência para que não as leiam, por já não ter paciência para quem não tem paciência para elas.

Não escrevo e em birra vou berrando pelo caminho como uma filha do futuro triste a quem o mais do que futuro que é seu avô não faz as vontades e não lhe oferece pelo Natal um Portugal novo à mão de semear esses impérios loucos de gente feliz.

Estou em plena greve da fome das palavras que já não alimentam ninguém porque se habituaram a guloseima das imagens (que ainda por cima são só imagens das imagens) e enchem a barriga antes de jantar como crianças anafadas e desobedientes tornando a discoteca do seu futuro presente na bola de espelhos onde morrerão incrustadas...

Estou completamente desagradável na minha birra de embirrar com todos vós portuguesinhos baixos de baixas invejas, antes a alta como motor para serem mais do que ela... mas nem isso

Somente esgares e sorrisos falsos e conversas a bichanar como gatos vadios sem casa ou país sem alicerces que não seja a caça ao rato que é sempre o outro.

E depois, e depois? Se o único sistema pelo qual se anseia é o da resolução da vida, da vidinha como se ela fosse uma equação com variáveis do mais liberal ao mais conservador.

E porque não estar assumidamente em birra depois de horas de debates em que todos se debatem contra a teias internacionais e acabam comidos por uma aranha que nem entendem nem chegam a ver...

Ó país que me desgraças e me tornas uma velha embirrenta, falando pelos cantos dessa casa escura, batendo com a cabeça contra as paredes em busca de uma visão diurna onde a praia resplandece, onde o sol agracia o mar e devolve intactas as caravelas das esperanças apesar de todas essas paredes ideologicamente insuportáveis como vírus propagado por gerações onde, do alto de um púlpito, todos resolvem, todos se resolvem, e todos se revolvem nas tensões.

Não escrevo mais para não incomodar, para não vacilar, para não antever de mais o que ninguém quer ver. Somente essa voz de noite, senão a voz da noite, que me sibila ao ouvido, que parimos quatro filhos, como quatro lados de um rectângulo e quatro direcções no espaço e quatro luas para navegar e, ainda assim, do alto de seus púlpitos, ideologicamente correctos, religiosamente perfeitos, anacronicamente assintomáticos porque não há doença, ainda assim, ousam julgar... que a minha birra, o meu ranger de dentes, a minha falta de nobreza e bom tom, tragam, do seu fundo ctónico, de onde nasce o céu, toda esta insatisfação, esta inquietação a que ninguém se atreve, e me diga se é assim ou não que desta forma fomos plantados neste planeta selvagem, e que o pouco que tem, acima da fome e do frio, não vem, desta birra sincrónica com a birra que os deuses têm e não desse anacronismo idiota de quem não faz birra nem embirra por se julgar no paraíso e na eternidade que da birra dos deuses vem.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Naufrágio Português



Somos a réstia de um povo
que das memórias só resta
a mais triste delas sem remorso
e nem essa nos serve para mestra...
 
De modéstias falsas e verdadeiras
no ocaso de nós em deserto errámos...
Arde o sol como um rei e dele não sei
se são só histórias breves e derradeiras...
 
Se elevado o sol assim foi feito
para de nós estar sempre apartado
escreve-se hoje a poesia de tudo
e do que tem de profético e de zangado...
 
Sou herdeira de poetas
não das suas palavras que não as tenho
mas dessas lágrimas sem fim
de que Portugal se vai julgando...
 
Fomos separados de nós
há quatrocentos anos e tais,
tão longe ficou essa voz,
só memória e pouco mais
 
Ficámos filósofos e poetas,
às vezes pontuados de brilho,
mas até esses já levantam
todas as armas sem sentido...
 
Resta-nos este choro cantado
por Bandarra em fim de trovas
e ninguém se rebela contra o fado
de tais lamentos que são só amarras...
 
Arte breve seria poder
trazer de volta a raiz
antes de este ter de ser
a rosa aberta a meia-cruz
 
Ninguém se rebela porém
e cheios de rimas assim se ficam
mas na volta que Deus impõem
O Mais desse mistério é ser coisa viva...
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Se houvesse tempo...



Se houvesse tempo...
mas ele não o há.
Passado e presente
é o mesmo atalho
onde te encontro
e revejo e onde é
sempre o mesmo beijo.
 
Se houvesse tempo,
sabia do norte e do sul
como encaminhamento...
E vozes cristalinas não
não enganariam o vento
 
Mas não há tempo,
nunca o houve fora do eterno,
não há sequer presente,
mas a substância antes até
de te ter por ausente.
 
Não há tempo
porque há sempre um sonho
sobreposto a tudo isto
como uma chama insistente
dizendo lembra-te do que não viste
 
Que interessa norte e sul
nos ponteiros  falsos
se meio-dia e meia noite
são o mesmo rosto
do que não escondes?
 
Donde a alma sem caminho
não atravessa ela o tempo
nunca por ele torna mas pelo ser
ergue os olhos aos ponteiros
visita noite e dia e os conhece
não das horas baixas
do logro em sermão
mas para além da esfera
onde em verdade o são.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Quadratura do Círculo


Li outro livro
não aquele enquanto o lias,
outro era que não o mesmo
e sem querer nele o acontecias.
 
E daqui donde te li,
vi as escadas que subias,
no fundo delas, caves frias,
foste para terras que escolhias...
 
Não fosse não teres lido
o livro que te lia,
nele descobririas o livro
que quem o lendo te antecedia...
 
Esperaste o reflexo
no livro em espelho que te estendia,
nele viste a noite escura e fria,
brilhando o sol em pleno dia...
 
Se três livros afinal li,
o meu, o teu e o outro que escondias...
outro daqui aqui ficou,
por teus olhos só lerem o que sabias.
 
Aquele outro sem letras exposto,
no sentido interno do que sentias,
esse ficou por ser lido,
não mo leste porque o não vias.
 

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Promontório de Sesimbra




Não parei nessas flores deleitosas do momento,
nem nas redes de pesca das ilusões,
nem na firme lágrima que deitavas,
nem na dúvida que não alcançavas.
 
Não parei nesse barco onde não me viste,
nem na paisagem solta de Verão,
nem nas escadas após os sótãos,
nem nas brumas do meu país...
 
Tudo foi para que visse,
esse corte abismal
da rocha mãe e sim fatal,
mais do que poema, realidade, afinal.
 
Erguia-se tal como por dentro a vira,
alta consoante do nosso tamanho real,
era só memória viva quando ainda
em pessoa, fado ou sina,
não havíamos dado sinal.
 
Fui beber à fonte viva,
que de água não era feita,
rocha plena e submetida,
ao tempo em torno dela, perfeita...
 
Aves sabias rodopiavam,
em gritos e amor por ela tido.
Promontório és o infinito,
do tempo ausente e com outro fito.
 
Guardei o segredo sem importância,
e levei a rocha da firme esperança,
mais do que na memória de uma só vida,
mas por todas elas bem definida.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 12 de julho de 2015

A propósito



A propósito do teu choro envio-te uma estrela com um fio na ponta e no fio, na sua ponta, um papel e no papel, no seu branco papel, uma mensagem que te fará fazer subir a lágrima de novo ao olho.
A propósito dos teus gestos, desses que danças obscuramente, não tenho gira-discos, mas envio-te Júpiter a esvoaçar e toda a melodia grave de que é capaz.
A propósito do teu sorriso, e da tua vontade, que é única, eu sei, e capaz, até, de nada fazer de propósito para que tudo aconteça de propósito, envio-te os meus passos, acompanhando-te, paralelos aos teus num passeio submerso em imensidade, em totalidade.
A propósito de ti, criei um universo, todo ele é todo o teu corpo e esse coração que sustém o meu, por um fio...
A propósito de aconteceres nessa esfera que é o mundo, trouxe-te aquilo que só tu sabes dar... em segredo autêntico.
A propósito de tu hoje teres descoberto a interna verdade e de a seres, e de eu a sentir tão próxima de mim e dessa pequena mutação que ninguém viu, nem ouviu, nem leu, nem soube, nem disse, nem dançou, nem fingiu... dei-te o que sentes agora, no mais íntimo de ti, essa mudança feita de um desejo único e o único capaz de mudar o mundo porque todo ele verdade, do princípio ao fim, a tua verdadeira razão de vires ao mundo, propósito do mundo, em dádiva encontrado, encontrado para dar.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Em estrela




Às vezes tenho pena do universo por ele ser submisso aos meus pensamentos, outras vezes tenho pena dele pelo pouco que sabe deles. Finjo-me numa amostra humana e, todas as outras formas humanas resultam de uma visão que tive. Mas vi um filme que me disse qualquer coisa assim: “Se as almas comunicassem, comunicassem verdadeiramente, a arte não seria necessária”. E vi nessa frase todo o futuro prometido, num relance.  Para que serve ela, afinal, a arte, senão para activar os infernos da consciência da distância? Toda a arte é uma saudade e, se a incorporamos em nós, tornamo-nos, sem querer, dragões lançando chamas. Se há paz na arte, ela é breve, se não a há, ela é desejada... e tudo é distancia no acto criativo. Deus só pode criar o mundo quando se esqueceu dele próprio, e se perdeu na distancia que vai de si a si. Foi nesse intervalo que a criação surgiu, porque não há espaços vazios. Não por muito tempo. Quando o há, somos outro. Até nos pode acontecer ser Deus, de vez em quando, num momento da imensa humanidade que transportamos na memória, nos genes, nas recordações de outra vida. Nessas alturas a tradução “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança” fica enfim bem feita: “O homem foi criado em co-relação com Deus”. Cai a imagem e fica Deus.  O sabor do universo pode ser saboroso quando já não há uma sua submissão ao pensamento e quando dele o pensamento sabe. Nessa alturas todo o tempo é profético. O que é necessário é voltar a aprender a aprender. Os reis magos voltaram “por um outro caminho” depois de terem ido por esse caminho que é o do re-conhecimento e o da dádiva, dupla espiral seguindo a estrela que é  síntese inominável porque vivente no silêncio. E é no silêncio que se passa tudo. Devem ter voltado pela manhã. Pelo caminho da manhã. Em manhã. Em estrela.


(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 5 de julho de 2015

Crítica Literária Simples


Gosto da poesia com sentido e com perfume a eternidade e, se o culto dos santos é permitido enquanto o dos poetas é esquecido, o que os distingue?
Uns fizeram o milagre no tempo de Kairos os outros o vão fazendo em tempo de Cronos... toda a poesia que assim não seja é como a água evaporada da roupa estendida,  justificação da nossa própria adolescência, evaporando-se e, paralela a essa vida quotidiana, ficam os heróis-poetas como estacas, suportes do mundo em santidade adiada.

(Cynthia Gumarães Taveira)



segunda-feira, 29 de junho de 2015

Inteligência aprumada


 
Não te falo da sabedoria que a ti ouvi,
porque dela já sabes e onde fica:
naqueles espaços em vazio,
entre um gesto e um sentimento,
entre a verdade e a mentira,
entre o bem e o mal,
e onde, a justiça aparece
como a mais isenta e flamejante
das donzelas das cortes reais,
resguardando sempre,
todo o tamanho do mundo que me deste.
Sabedoria invisível e guardada
por entre o espaço dos lábios fechados,
bem no meio do silêncio
e onde o sopro ocorre,
visível apenas no espírito refinado
de uma inteligencia aprumada
por rosas colhidas depois das noites frágeis,
imensamente sapientes,
dessa manhã que há no jardim reservado.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 25 de junho de 2015

A elegância

 
“A prospecção e aceitação do sobrenatural, não será uma fuga perante o real ou um corte com o quotidiano.
Mas, antes , o contrário: será ela a forma mais forte e perfeita de fidelidade ao Real, porque da sua total e plena inclusão e aceitação na nossa existência. (...)
O problema do real será resolvido por um movimento que surgirá como sua paradoxal resolução – porque ele só se desvendará pela visão e aceitação do seu avesso”.
 
Dalila Pereira da Costa, “A Nova Atlântida”, pág. 326, Lello e Irmão – Editores, Porto, 1977
 
Olhava atentamente para essa formas de mexilhão que tendia a fazer nos vestidos, nas rendas que pintava e lembrara-se do que tinha dito antes, momentos antes:
O ovo é a forma arredondada do losango , ambos necessitam de dois pontos centrais para serem desenhados... e sorria, na volta dos próprios pensamentos, sabendo que o selo, o losango era tantas vezes firmado e afirmado pela linguagem alquímica como sendo o segredo e sorria, lembrando-se das aulas que havia tido com Freud em pano de fundo, da análise corporal e sexual dada a esses losangos, como desenhos repetidos pelos povos “primitivos” dum mundo ainda de um jeito  Neolítico e de como tal tipo de interpretação freudiana havia sido presenteada com a fórmula: o losango  é a vulva, com pinta no centro foi fertilizada... e esses símbolos e interpretações giravam na sua cabeça e, do nada e de tudo, se lembrou de como o povo diz: “quem se lixa é o mexilhão” e, na sua cabeça, aparecia agora a imagem desse mexilhão a negro desgastado primeiro, como um marisco associado ao povo que o recolhia na baixa das marés, como dádiva do mar, sem preço ou mercado, oferecido ao povo e a ele assimilado. E esse negro mexilhão, aparecia agora sob a forma híbrida que fica entre a oval e o losango, e essa palavra colada a ele, ganhava agora as vestes, não de um negro desgastado, mas elegante, como um vestido de noite  brilhante com a água num qualquer serão de príncipes e princesas, e esses pequenos laivos de branco em relevo que o cobriam, eram os cetins, dos mais modernos padrões, de uma fineza real, unindo o clássico ao moderno e, com esse mexilhão, lixado mas transmutado, pode ver a realeza do próprio povo, escondida num mexilhão pobre, apanhado numa baixa maré e, com ele, todos os outros pobres portugueses, de uma antiguidade expressa nas rugas e nas mãos com calos, e nos ofícios, e nas horas de labor, e nos silêncios dele, e nas frases que rematavam dúvidas ao fim de anos de trabalho. E viu um povo rei, como quem vê o paradoxo de que fala acima Dalila Pereira da Costa, e não mais passou a suportar o escárnio de quem, perto do povo com suas vestes pobres de quem se esquece de si, só o sabe desprezar como classe inferior, sem Mercedes ou vivendas e novos-riquismos plasmados de um estrangeiro que não é nosso. E olhando tal desprezo, tal pouca fineza d’alma, saber, como quem sabe um filho ou irmão, que a realeza se esconde, nesse mexilhão do mar, criação dele dada aos pobres, criação da mãe simples que apenas está... como vestido legitimo, de um requinte assombroso, afastando o nevoeiro, brilhando numa manhã, acendido por lágrimas e fogo, ao nosso lado, real e biface, como nós portugueses sabemos ser.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 22 de junho de 2015

cor de rosa


Se te visse, cor de rosa,
desbravada como se fosses uma floresta,
via-te em piares das aves do dia e da noite,
partindo espelhos em desafio,
aos azares, às sortes e aos destinos...
Ritmo de saltos e cascos,
égua em nervos destinada,
se te visse selvagem trepando, escalando,
as absolutas  nuvens que não imaginaste,
a as tornaste vivas biformes, triformes,
quadriformes e assim, além...
Se te visse cheia de ritmo
Impossível até para os animais
E para os enigmas...
Na força bruta que enche a sofisticação
que há no traço dos teus lábios.
 
(Se encarnas o Absoluto,
não há guerra que te entenda...)

 


(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Quatro espelhos...


Quem ousa tomar
Portugal no seu inteiro corpo?
Quem urge pagar
em dores, tormentas, naufrágios
esse desacordo que há
entre o ser e o para ser?
E em quatro espelhos adivinhar
os gestos duplos e amplos
do que é e do que parece ser
e dos outros, iguais e maiores
de um país a acontecer?

(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 2 de junho de 2015

Astro

 
 
Nós, seres,
no caminho de pedra,
corpo e sombra,
linha rarefeita,
deixando por nos explicar
porque negra há-de ser a sombra,
e não outra cor nos tome,
e nos fale da outra sombra,
oculta e acima do sol,
onde transparência a guarda,
na outra sombra,
só assim chamada,
porque escondida, além do astro.
Outro nome que não sombra,
eventualmente terá,
esse outro de nós,
que dá brilho ao sol,
muito para além,
do que aquele que o sol nos dá.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 31 de maio de 2015

Não reparaste, ainda?




Não reparaste, ainda? Estão por toda a parte... em mesas, vestindo-as, mas também vestindo humores indiscretos, em sombras de fotografias,  nas festas, nas cidades, nas fogueiras de vaidades. E na diplomacia, serenas, em recantos vibrando em cores, junto à morte e às casas tristes, junto aos olhos nas varandas, livres e soltas e abandonadas, presas e disciplinadas, por entre o público, sem nada que ser e longe, tão longe se as olhamos, e tão perto que nem as vemos e fazem falta, se delas nos esquecemos, sobretudo na alma, em centelhas, deslizando por nós, refazem o eterno elo que vamos sendo, lembrando as estrelas que são, na outra margem... segredos mil de quem as ousa, mais que imagem que em nós ruiu são um vasto clã  da eterna asa... flores, segredos escondem, rescritas na história de um corpo tendente à glória.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Fio ténue


“Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
E a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar."
 
  Fernando Pessoa, in Mensagem
 
Tornavas tudo íntimo porque tudo tendia a tomar mais do que duas dimensões e, ao fazê-lo, nada ficava inocente. Nem podia sê-lo. Descontextualizavas as palavras e os gestos e colocava-las num qualquer outro pensamento, ideia ou tempo. Assim, de repente, raptavas aqueles que de ti se aproximavam para um outro lugar, para uma outra consciência das coisas, para a dimensão mais profunda que delas te conseguias aproximar. Sabias que, em último grau, tudo era afinal revelação, mas sabias também, que se cada gesto era uma viagem, se cada pensamento um passo, se cada ideia um voo, havia uma espécie de ilha que ia contigo, onde quer que fosses. Ilha única, impartilhável pela impossibilidade de quem quer que fosse poder fazer a mesma viagem até lá. Sabias da impossibilidade de duas pessoas fazerem a mesma viagem, por terem tido vidas diferentes, serem outras, e terem até outro corpo que não o teu. Mas no fundo de ti, vivia a dúvida, aquela isenta de vontade ou desejo, e que se prendia com a certeza de memórias sem tempo, coladas a ti como um tempo presente. Era esse o teu limite da dor, o exacto instante em que acabava a ilha e começava o mar. E nesse pequeníssimo espaço de areia e tempo cabia o infinito abismal de separação. Essas ilhas encobertas que se dispunham no mar, atravessando-o eram, sem que o soubessem, a sagração do próprio tempo, tão raras quando vistas, tão próximas quando encontradas, tão ímpares na realidade que propunham, mas tão ilhas que eram e  inalcançáveis, por isso.  Dessas ilhas apenas o vento as sabia quando levava as folhas como poemas, as sementes como esperanças, as poeiras como estrelas... e nada mais era senão isso, e todas as obras dos artistas não eram senão isso... e todos os descontextos das palavras e gestos que proporcionavas a ti e aos outros, nada mais eram senão isso... e os olhos e as almas ficavam sempre por acontecer, enfaixados numa falsa esperança porque a realidade nunca se submetia à vontade do sonho, calando-se este, na viagem que era só promessa... e tudo ganhava a utilidade que o próprio sonho negava: as folhas, as sementes, as poeiras caiam, geravam numa utilidade descarnada, quase, donde tinham vindo. As brumas nunca enalteceram as ilhas e os sonhos nunca foram de ninguém, os deuses entregavam-se em vão, porque não escutaste e, com a capa da esperança se afastavam, deixando-te com um sorriso vago de quem caminha nas esferas e volta a estender a mão, em contra vontade, a quem passa, numa eterna espera.
 
E há, no entanto, esse fio ténue aproximando-se, e segreda tanto a voz como a escuta.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 28 de maio de 2015

No extremo


Há, no extremo oposto de nós, um lugar reservado ao imenso que em tamanho que somos. Como um mapa que tão bem conhecemos... E, é desse promontório, tornado sagrado, por o ser, que nos elevamos à condição do que somos. É, nesse extremo oposto, que há o gesto mais imenso de que somos capazes, tornando o desejo num sem número de impossíveis, e nele e com ele, resgatamos, como marés, todos os desafortunados e todos os naufragados e todos os infurtunios e naufrágios de todas as formas pelas quais a vida se reveste.

Nesse promontório, que nos foi dado como paisagem e no qual, extremo oposto de nós, submersa e imersamente nos adivinhamos, para lá se estar, com as vestes ainda límpidas e esvoaçantes neste fim de ciclo, há uma resistência imperceptível a tudo o que nos cerca como forças tenebrosas, maléficas, caóticas, próprias de um Adamastor que é todo rocha e histórias tristes. Há, como uma espécie de dança, vinda do fundo dos tempos, celebrando a vida no que tem de mais genuíno e mais espontâneo e mais simples, numa claridade e transparência capaz de se fundir com qualquer gota desse mar onde somos imensos. Há, uma resistência firme incapaz de ceder a toda a incompreensão, a todo o desamor, a toda a vaga alternativa de horrores que este fim de ciclo nos dá. A haver uma nova religião, que nem sabemos se é necessária, ou não, ela será a do mar ou marítima porque só ele nos dá a dimensão, tanto do infinito espelho do céu, como, ao mesmo tempo, em matéria viva, em corpo agitado, em vida múltipla, em faces e cores de uma criatividade transbordante, em alegria exacta espelhando a luz do sol sem a noite negra, só ele nos explica sem palavras, como um mestre, o papel dos homens na terra e a forma como, por mais Adamastores que sejamos, estancamos frente ao mar, estancamos frente ao Vasco da Gama que todos somos, e desaparecemos em sal e lágrimas, vencidos por nós mesmos, nesse confronto eterno entre nós e o extremo oposto de nós, onde somos imensos...

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Antes de...


Era no que não vias, no que nem suspeitavas que te poderia dizer o segredo. Como se houvessem segredos quando deixassem de haver alusões, pressentimentos, ou ideias. Era na nudez completa da tua ignorância de todas as coisas, excepto de ti, como se fosses apenas factos acumulados e sensações várias ao longo dos factos que eras que, sentada nessa praia, te poderia dizer, a palavra simples, a palavra azul de mar. Que poderias ser o azul do mar, e o barco, e o tripulante, e o capitão, e as estrelas e o infinito... porque o mar, consegue, mas só perante a tua nudez, ser o que não vês, nem suspeitas, indiviso no seu mistério, altivo na sua exigência, transmutador da tua essência, abrindo-te todas as moléculas do corpo ao infinito. Antes de haver segredo, deverias saber que há segredo... mas sabê-lo, não é lê-lo, nem dizê-lo, é sê-lo.
 

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

O essencial?





Há coisas que só em jeito de transexulidade profunda anunciada por Herman José e mangificamente interpretada por Maria Rueff: “Sou mulher mas tenho um homem dentro de mim que é uma Drag Queen”. Assim, só nesse jeito  é possivel de fazer uma regra de três simples absolutamente surpreendente no excesso de barroco, que é já a tontura final: o problema dos historiadores é não terem memória, ou não terem a memória necessária, por isso, se pode dizer, ainda de que modo intuitivo, sem se saber bem do que se está a falar, que, acesso, podemos nós ter a dois planos, mas o terceiro é que vem ter connosco. Os tempos, são outros hoje, e aquilo que pensamos ser necessária, a repetição, é afinal causa de desgraça por se ficar apenas à superficie das coisas. O terceiro plano vem ter connosco de uma forma evidente. Temos sorte, no entanto, se somos pressentimento.

(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Para quê?




Ver-te assim, quase como se não quisesse ver-te assim, impressiona-me o teu choro final. Não viste e tudo viste. Não sentiste e tudo sentiste. Portugal não morre porque reencarna, neste e naquele, e com este e aquele vai dizendo, ou com todos os outros que se lhe aproximam vão dizendo. Corpo sem alma nem corpo é... pó estrelar e pouco mais... toda a substância se une em ti. Único em voz e em esperança. Que posso dizer ou fazer sendo o país assim? Irregular e indeciso, branca de neve adormecida em castelo e caixão, qual deles de cristal, qual deles prisão? Consegui um monte que é um vale e um vale que é um monte. Que mais posso fazer desta torre que de tudo me cerca? Todos são parte de um poema já escrito. Reconheço todos os passos e todos eles em mim. Quase em tédio me envolvo se os leio dentro, fora de mim e ainda em outros traços... Deste-me uma folha branca, para que acabasse o poema que iniciaste... e agora que passos darei, que deuses evocarei, que sorte ou perdição esperam tudo o quanto ainda não sei? Não, nada se repete e, no entanto, tudo surge igualmente mas transformado e, transformado, pode ser diferente, e transformado pode ser concreto. Sei que queres o milagre de um poema acabado... sei que queres esse milagre, da luz, das estrelas e de outras coisas que, ao contrário,  não vi... mas se não vi? Sou a memória viva dos poetas e nem escrever os sei, apenas vivê-los por onde ninguém os vive.  Sou apenas a sua memória dos seus passos... e que são passos. Para que serve uma memória? Para que serve para que sirva?
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Lembro e não sei, sei e não lembro


 
 
Não recordo como se tivesse saudades tristes
alguns barcos navegando,
vapores de longos fumos junto às margens,
entre despedidas e festas de longos fatos,
e trajes negros e distintos, charutos e champagne.
Não recordo algumas memórias
como se precissase delas e sem elas não pudesse
achar tudo o que é futuro...
 
Do que não recordo, mas sei,
disso sim,  um barco de longe vindo,
junto das nuvens e com elas confundido,
de patamares de mármore quente,
de uma claridade consciente,
e essa temperatura mais doce que morna,
que não recordando amei.
 
Guardo impressões do mundo,
como se por aqui tivesse passado,
em passeios de tempo e campo,
em histórias colhidas num jardim de jasmim
e, só por isso, ao vê-lo nascer na calçada
recordo não serem ramos de alecrim,
estes que vejo aqui, e as flores, essas
possam ser canções que canto de cor,
quando perante o vento se inclinam, ainda assim...
 
(Todo o mundo é um cenário que vivi,
mudando a cena para outras de outra vida.
Quem sabe cenários de um amor sem fim...?)
 
Mas nada disso entra por esse outro de mim,
que de longe parece guardar um eco d’outro passado
dizendo-me em Saudade o que sei e onde nunca estive...
 
Entre o que recordo e o que sei,
há uma infinita ponte erguida no vento,
toldada pela neblina da eternidade,
brilha vagamente sem lembrar ser o que é:
esse estar dentro do abraço num certo tempo,
a festa, girando por entre os sóis, debruada a dança,
a lua aplaudindo quase silenciosa esse outro tempo,
e dele sabe, e dele não se lembra e dele não se cansa.

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 11 de maio de 2015

A escrita dos deuses




Vi os deuses a passar,
um a um e bem parecidos,
não no Olimpo longínquo,
mas em vestes de terra,
no teu rosto acontecidos.
Tal é o amor que sentem,
por esta terra verde e breve,
o meu corpo é o seu piso,
minha alma sua voz que dura.
Vi os deuses descompostos,
ou enlaivados de ternura,
no teu rosto transparentes,
que é de ventos e de aventuras.
Vi como se movem,
e sucedem no caminho,
no patamar do encontro,
entre escrevê-los e o destino.
Ora bebem, ora conversam,
ou se levantam em desatino
ou em passos de dama leves,
se aproximam se os sublinho.
Outros fogem num ápice,
se seu nome é acontecido,
outros disfarçam a carapaça,
enquanto caçam e estão a pino.
Vi tantos deles no caminho,
na dança que do cerne do ser parte,
enchendo os copos e os erguendo,
no ar das ideias soltas e ligeiras e
das gotas de luz diluindo as penas.
Outros trovejando na cabeceira,
prosas densas parando as naves,
outros não desejando tais conversas
cantavam seus feitos e sua sorte
dos seus amores e da  natureza,
e dos despojos desses encontros...
Vi-os nesse patamar estendido,
em mármore quente sobre a serra,
nem em cima nem em baixo,
mas no centro do sol
que o teu rosto encerra.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 9 de maio de 2015

De facto, a poesia...




A interpretação dos factos está muito mais sujeita à crítica do que a poesia ou o acto poético. Os factos confrontam-se com o tempo, e as pessoas com esses dois factores, a poesia e o acto poético, abrem-se ao tempo, integram-no e anulam-no e não há batalha entre as pessoas por causa da poesia ou do acto poético e quando a há, tanto a poesia como acto poético sofrem uma queda no domínio dos factos. Há, no entanto, o percurso híbrido, capaz de fazer suspender a respiração, a interpretação dos factos pela própria poesia. Aí, entra-se num domínio que pode ter tanto de pantanoso como de divino. Aí, ganha-se a força dos lutadores e a sensibilidade dos poetas e aí se prova o amor.


(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 8 de maio de 2015

"A rosa que te dei não foi criada num jardim" *



* Título retirado de um verso de José Cid


Não há nada para imitar num jardim,
nem essa rosa abrindo a norte,
nem a pétala que cai e sobe o monte,
nem o canteiro pelo musgo atravessado,
nem essa terra que na chuva foi.
Não há nada que se imite,
nem nada que seja arte
é só a realeza que lhe imprime
este e aquele tom e a sua sorte.
 
Passas e levas a flor,
e ao largo passaste e a levaste,
se te dão o ancinho sabes o que baste
para iludir a morte sem a levares.
 
Mas não há nada nesse jardim,
que não seja espelho e não consorte,
nem por dentro o levas
se te desvias do desvio da morte.
 
Não há nada para ser num jardim,
nem jardineiro, nem flor, nem arte,
enquanto ele te suprimir visível,
extingue-se a chama da sagrada ponte.
A arte é somente o silêncio
deixando ouvir a fonte.
 
Há um tipo de memória que é um fio finíssimo de verdade. É essa uma memória complexa,
sobretudo quando se quer manifestar como coisa real e fora do tempo. Esse tipo de memória usa como que de um voluntarismo próprio e tenta, a todo o custo, contrariar as falsas memórias e aparências da História. É complexa porque é o relâmpago de verdade que houve no cerne da inexactidão do tempo. É o “concreto” e “definido”, no que tem de absolutamente harmonioso na confusão das fífias da orquestra...
A relação com ela pode ser semelhante à relação que se tem com um anjo, nunca passiva (apenas para os místicos que suportam tudo, e crêem em tudo, até na ilusão como ilusão) , embora essa relação tenha o seu quê de místico, como detalhe necessário, que parece não se importar com o próprio tempo. Uma vez entendendo-a, e assimilando-a no que tem de tipicamente eterno, então poder-se-á unir tal integração (que é uma integração plena naquilo que é a intensão do acto) às palavras de Pessoa: “quando se é mestre já se está fora dela” [ordem].  Aí, a linguagem torna-se de facto uma escadaria com vários níveis, na qual, cada qual apreende o seu grau ou parcela da sua própria realidade, sendo que o que “está fora dela” entende todos os degraus como realidade, ao mesmo tempo que a escadaria se dissolve. É nessa altura, também, que o cálice é dado a beber. Expectantes, os discípulos, e só e apenas quando são discípulos, provam a sua própria missão, incorporando-a, como elementos complementares de um zodíaco.  É o brilho dos doze sóis brilhando na simultaneidade. Doze que são um. O reconhecimento do discipulado é também o reconhecimento do mestrado.  E não há semântica, sequer, que possa falar do inominável. As forças opostas/complementares tendem a tornar ainda mais forte o vinho dado a beber. E não é no vinho dado a beber que reside o sangue do mestre. É no acto de dar o vinho a beber que ele reside. Pedir para afastar o cálice não é negar o cálice, é pedir que o gesto mude. Nessa memória, o gesto é meticulosamente divino.
Caindo-se no erro de chamar destino a toda e qualquer coisa, sobretudo nos dias de hoje, isso parece ser uma espécie de leviandade com o próprio tempo...  a fórmula que se ouve em determinados círculos, de que cumprindo o destino se cumpre a vida, é, na maioria das vezes, a capa  e a espada do herói e apenas isso, nada tendo a ver com o destino, ou aquilo a que se deverá chamar destino que é, tão somente, quando se dá a manifestação desse fio intemporal embora, temporalmente, diluído no vinho. Daí à legitimação do próprio tempo vai um grande passo... pois o movimento deve ser pendular, da mesma forma que se colhe e semeia. A dessacralização contemporânea, que é apenas o bloqueamento do acesso a tal tempo mítico, que, ainda assim, permanece na sua força como um tempo, não se afastando da sua noção, ainda que intemporal, não é a-temporal... não permite sequer a escuta... É por aí que, para quem já está fora dela [ordem], possa haver um ataque de riso, ou de choro, tanto faz, na observação de um rito. A consciência do desfasamento torna-se dramática pela incapacidade de comunicação desse desfasamento a que se assiste. No entanto, e ainda assim, cada um prova o seu cálice, porque tudo o que é eterno funciona de alguma forma e esse cálice é mais ou menos saboroso conforme a quantidade de espírito no vinho dissolvido. Quanto menos estiver sujeito o sujeito à imitação, menos sujeito será e mais próximo está da prontidão.  Em última análise, neste zodíaco activo, os planetas possuem mais dois movimentos que estão praticamente invisíveis no mundo ilusório, pois aqui só os vemos girando sobre si próprios e em torno de um centro de forma elíptica. A forma elíptica permite, no entanto, a percepção de um terceiro movimento, de afastamento maior ou menor do centro, e o outro que falta nesta quadratura visível, mas que é visível no invisível, é o ascendente e descendente, e quantas vezes este movimento é reintegrado nos sonhos... possuindo os sonhos a capacidade de repor determinados “valores” ou “aspectos” que se encontram invisíveis.
 
A iniciação é, de facto, um conjunto de “estados”, daí que a quantidade de ritos seja absolutamente irrelevante para que ela suceda. Até porque o rito, na sua intensão, é tão rito que nem de rito necessita. Apenas de intensão. A intensidade é uma resposta, que pode vir ou não, na sua liberdade, não é uma consequência, porque a liberdade é livre até da consequência. A intensidade é a intensão expandida. Como a não-palavra é a palavra no seu esplendor.
(Cynthia Guimarães Taveira)