sábado, 30 de outubro de 2021

Nitidamente

 



Está-se bem, neste silêncio apurado,
longe como um barco esquecido,
perto como uma nítida e encontrada verdade.

domingo, 24 de outubro de 2021

O entendimento

 



Símbolos? O que é isso? Os nossos políticos desconhecem o que é um símbolo porque ou são laicos, ou são ignorantes ou são condescendentes para quem os conhece. Ainda que o sábio fale, ainda que o político o escute, a última palavra é do político que pratica o surf nas palavras que lhe dão jeito como prancha. É desta forma que um político, mesmo que esteja rodeado de sábios, é um preconceitoso porque ouve ou acata apenas o que quer. A democracia é um conjunto de déspotas nada esclarecidos porque, acima de tudo, são déspotas que se toleram no pior sentido do termo e todos têm por certeza que o povo é estúpido, facilmente manobrado e enganado. A democracia é um jogo de forças com o povo, se este é mais manobrável, ganham eleições, se é menos, perdem-nas. Tanto à esquerda como à direita, puxam a corda, mas nunca empunham a espada porque esta está proibida pelo "progresso". É a ignorância que conduz o país, neste momento. Os podres são visíveis na pseudo-educação, na própria semente e depois é sempre a "subir" até à podridão total. Quando mais se desenvolve este drama mas é necessário enrolamo-nos em nós mesmos e crer, de uma forma completamente irracional, que alguém lá em cima, na esfera celeste, nos ouve e nos responde. O intelecto quando supera o racional, ou o racionalismo, irrompe na esfera do entendimento, uma esfera totalmente desconhecida desta actualidade sem amor, nem alma grandiosa, e nem sequer capaz da simples inteligência. Sabe-se mais de Marte do que dessa esfera onde tudo é sintonia como um hino bem cantado... 
Escapa-nos, este mundo, por entre os dedos, como areia, porque é areia de um deserto sem gota d'água que o torne fértil. Desenganem-se os que pensam que têm peso nas decisões dos políticos, eles só respondem ao espelho de si mesmos e nunca aceitam nada que venha do alto, porque eles pensam que são o "alto". 
A única face verdadeira deste país é a de gente anónima que vai dizendo coisas e ouvindo coisas num diálogo invisível e, até mesmo esta frase pode ser aproveitada e lida como "conversas de gabinete" ou diálogos "sub-rosa" no que têm de mais convencional, ou seja, uma simples conversa em segredo entre um ou mais ignorantes, ficando assim, rapidamente desvirtuada. O segredo nunca foi garante de qualidade alguma só por si, a maioria das vezes apenas serve para aguçar a curiosidade. Do que falamos aqui, é da essência do coração que fala, algo completamente invisível, mas visível do "outro lado", mais próximo do centro ou mais acima, conforme lhe queiram chamar.  Desta feita, é cada vez menos seguro aquilo que se escreve ou que se diz da boca para fora porque o desfasamento entre o interior e o exterior chega a ser radical.  A leitura de um coração não é da incumbência dos humanos, não faz parte da sua missão neste mundo. A leitura de um coração é atributo daquilo que é, nas palavras de Guénon, supra-humano e, ou se chega a isso, ou não se chega. Já se vê que nunca existe um verdadeiro problema de comunicação entre dois ignorantes. Eles entendem-se perfeitamente porque são a pele da pele. A conversa entre dois ignorantes é sempre o eco das vozes dos protagonistas do mundo da moda que viram a cara a quem não está na moda, e viram-na, porque sim. O problema da comunicação reside sim, na incapacidade de nos fazermos escutar pelo "alto" porque só alcançando "o alto" nos podemos fazer escutar. Parece a pescadinha de rabo na boca e é. A esfera do entendimento nada tem a ver com o conhecimento das coisas: planetas, vírus, anomalias ou fenómenos naturais porque ela obriga-nos a sair de nós, o movimento inverso desta civilização vaidosa de si. Sair de nós em direção ao que nos transcende. Um político que procure num sábio as suas próprias certezas que são sempre (e hoje é mesmo sempre) fruto da sua ignorância, não procura comunicar, procura aquilo que pensa que ele próprio é e dizemos pensa, porque, na sua ignorância, nem a si próprio se conhece. É curiosa a forma como esta oligarquia economista disfarçada de democracia tenta, por vezes, transmitir a imagem de que é uma oligarquia de sábios. Para isso, dá a entender que "ouviu os sábios" e que até concordou ou se reviu num ou noutro aspecto. Ora não têm que concordar nem têm que se rever porque não sabem tanto como o sábio. Têm que ser humildes e tentar acompanhá-lo. Os sábios não abrem a boca para que os políticos se revejam nas suas palavras. Se assim fosse não eram sábios e a inversão era total. Os políticos actuais não sabem nada, procuram, como Narciso, rever-se perpetuamente, tão convencidos que estão de que são "abertos ao diálogo", quando a esfera do entendimento lhes é totalmente desconhecida. E tudo isto cansa. Cansa muito porque é sempre mais do mesmo e daí que o mais importante não passe pelo que se diz ou se escreve, mas sim, por essa capacidade que algumas pessoas têm de "tocar" o alto porque o seu coração é transparente sobrenaturalmente. Para governar bem é necessário o silêncio. O profundo silêncio. Só assim ecoa a humildade necessária e então, talvez, e dizemos talvez porque isto não é uma ciência, é uma arte, a esfera do entendimento esteja acessível. 



sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Testemunho


 As pessoas esgatafunham-se por um minuto de fama, a real preocupação com o estado das coisas é outra coisa porque não dá fama alguma, a não ser a de profeta da desgraça. Olhando o panorama geral, chego a desejar que a parte subtil e benéfica do planeta se solte desta avaria materialista e volte em forma de anjo para ir redimindo o planeta. Parece radical, mas para grandes males, grandes remédios. Uma purga é uma purga. Meia purga não chega para um mal maior. Não é difícil de adivinhar onde isto vai parar, ou a um grande cataclismo ou a uma reviravolta impensável, ou as duas coisas. A degradação tem limites, como tudo tem, aliás, neste mundo. O que aflige mais é ter de assistir a isto porque não nos faz sorrir nem nos dá tranquilidade. O que nos faz sorrir ou nos dá tranquilidade é sabermos que tudo tem um limite. O chamado "progresso", filho do evolucionismo, nunca foi tão troca-tintas durante a sua parca existência. Mas talvez exista mesmo "progresso" e este não seja mais do que "ver o filme ao contrário": quanto mais "progredimos" mais estamos perto do "fim do progresso" e isso, sim, é um progresso, atendendo à existência de ciclos, coisa que o "progresso" na sua visão limitada, não entende porque a sua visão é tão limitada que não se enxerga. No outro dia, um amigo, por brincadeira, chamou-me "mulher das cavernas". Ri-me porque não anda nada longe da verdade. Algo de primitivo ou primevo chama por mim, e não é bem aquilo que se encontra nos compêndios da psicologia da História, a pulsão de reprodução, alimento e sobrevivência. Esta caverna, donde sou proviniente, não é escura. De escuridão nada tem porque o elemento que nela mais abunda é o da luz. Assim sendo, eu e o meu amigo, falamos de coisas muito diferentes, aliás é o que nos distingue e o que me torna a mim distinta. Bem vistas as coisas, um minuto de fama é hoje replicado em imagens, reproduzido. É, também, uma forma de sustento e sacia desejos de imortalidade. As cavernas não são todas iguais, isso aponta-nos a história, tal como os corações. É a incapacidade de entender os distintos mundos subterrâneos que vai fomentar, depois, a maior confusão na espécie humana e, meia dúzia de pseudo-iluminados, vão espalhando o testemunho das pulsões arcaicas, quando o homem, já muito caído e com um dilúvio em cima, se deixava reger pela mesma batuta dos seus amigos animais vendo tudo desfocado como se estivesse ainda debaixo de água. É esse testemunho, na corrida desenfreada contra o tempo, que é passado, como o único e verdadeiro e, em sintonia com a época, tem fama e sucesso. 

  


terça-feira, 19 de outubro de 2021

O jardim


 Andava a fazer um jardim sem que o soubesse. E um dia reparo que todos os objectos juntos, adquiridos ao longo dos anos, na sua grande, grande, enorme maioria, tinham elementos vegetais, folhas, flores, caules. Aprendi agora como o jardim se torna vivo ou ligeiramente amargurado conforme o seu jardineiro se vai sentido ou vai dando um sentido à sua própria vida. À frente, tenho um jardim para guardar e ele vai adquirindo um verde espesso, uma espécie de potência que só o verde escuro consegue ter. Guardar um jardim é um acto bíblico. A ecologia é uma queda de algo muito mais profundo. É a queda da metamorfose da alma no mais rasteiro sentido prático da existência. A ecologia é um simples eco de uma palavra maior: guardiões. Os que guardam. E, os que guardam, acompanham e fazem-se acompanhar. É esse o significado de guardar, mais tarde caído em mãos bélicas, tornou-se defesa de um potencial ataque. É nessa companhia que se transmuta alguma coisa porque não há obra sem criador nem criador sem obra. É todo um mundo diferente dos factos. Num jardim não há factos porque nada está fixo. Tudo cresce, muda. Questionava-me o porquê de não querer guardar muitos factos na memória, alguns apenas, como portais.  Num jardim, não existem muitos, talvez a fonte, mas até essa jorra. E a ideia de evolução parecia-me ridícula quando me perguntavam se tinha "evoluído". O jardim não evolui, limitam-se a ir sendo. Era a primeira flor mais imperfeita do que esta última? Parece estranho, mas todas estas evidência tornam impossível um diálogo com os coleccionadores de factos e com os "vaidosos" do seu caminho. Um jardim assim murcha logo, ao primeiro passo de orgulho na colecção de factos que pensam ostentar. O meu mundo interior é tão estranho como um jardim, tão intrigante como a sua espontaneidade enquadrada na perfeição do gesto do jardineiro. Ao regar sinto a terra a absorver a água, os nutrientes a deslocarem-se e a ficarem mais acessíveis às raízes, as plantas a ficarem mais viçosas. Se não imaginar isto tudo, nada se passa, e a rega é uma chuva anónima sem o fogo da paixão pela vida que faz deslocar os nutrientes para a posição exacta, e não ao acaso, num jogo de sorte ou azar. Se não imaginar isto tudo o jardim não toma a forma do meu coração nem o meu coração se torna num jardim intrigante. Só assim, as nossas raízes tocam o mistério do mundo, o nosso e o da criação inteira. E é um acto íntimo e invisível cuja repercussão não sabemos. Os guardiães são seres intrigantes. Parecem parados. São o motor imóvel. Os que estão próximos do centro. Tão próximos que nem sabemos se são ele mesmo. Guardar o jardim é um acto bíblico. Não é um acto ecológico. Até porque não tem nada de lógico. É intrigante por isso mesmo. Porque nunca se sabem quais as repercussões. A ecologia está plasmada na linguagem académica, erudita, factual. A ecologia está longe do jardim e não conhece o perfume das rosas. Conhece compêndios. Acções e reacções. Causas e consequências. No jardim tudo é causa e consequência em si. Desta maneira, não sou ecologista. Abomino a palavra tal como abomino os eruditos. São seres fragmentados em factos. E não têm nada de intrigante, nem de misterioso porque se limitam a expor factos, como se estes fossem roupa estendida à janela para todos verem. E a ecologia é a sua filha bem comportada. Irritantemente bem comportada. Bem vestida. Debutante. Deputante. O jardim é livre disso tudo. É fresco e muda de humor. Tem bom humor, mesmo quando não tem. É tão parecido com um coração verdadeiro. 

sábado, 16 de outubro de 2021

Civilização

 


Segredo a segredo, imagino, uma a uma as aves longínquas eternizando-se no meu olhar. Cai a noite sobre a civilização e adormeço na tentativa de um lugar mais luminoso. Como me ardem os versos mudos? Como a prova de fogo de um herói. Sabes, contorno as arestas dos acontecimentos, não como uma serpente, mas como um voo curvo de uma ave e se a noite cai, não caio com ela. Pela janela observo os vultos sombrios retirados das vielas de uma outra realidade e afiguram-se como aquelas marionetas indonésias, sombras numa história hipotecada pela maldição, acorrentadas num pequeno cenário, só delas, onde se movem num enredo que trouxeram para si com o esforço dos condenados ao cadafalso da ausência de consciência. Atordoa-me esta ausência de teatro substituída por essas sombras. Talvez me atordoe demais e não me deixe respirar. Não deixo que isso aconteça no último minuto, quando sobra a palavra “quase” como esperança. E, nesse último minuto, abro ainda mais os olhos e afasto a dormência e inauguro a comédia onde só se encontram os vivos. E os vivos aparecem a cores e a sua voz é um eco da minha própria alma lá longe, escondida num vale do tempo, entre montanhas d’hoje. É imperativo, esse eco. Como um chamamento. Os adjectivos cobrem as palavras que devem ser despidas para que surjam nuas e completas em si mesmas.

Sabes, tremo só de pensar no olhar deles, daqueles que são das sombras. Assemelham-se a franjas arrancadas de um manto real e espalhadas pelo chão do meu palácio. Não as quero por lá. A oferta deles chega sempre demasiado tarde e as minhas palavras chegam sempre cedo demais.

Neste momento tudo é um sonho livre mas aprisionado em si mesmo. Civilização que se auto-cerca sem misericórdia. E as sombras estão nela como habitantes naturais, nativos da humidade de um Inverno demasiado prolongado no tempo. E arrastam as palavras fixas que nunca são ecos da minha própria alma. Vivem em si e por si. Estão absortas desde há muito na perspicaz vontade que lhes esculpe os degraus demasiado baixos para serem dolorosos.

Os vivos não. Sofrem em segredo e sussurram, uns para os outros, palavras inaudíveis. Há uma melodia captável apenas pela sensação da memória. Mas uma memória que é toda ela real. É o manto real estendido pelo palácio que habito. A historia que fica para trás debruada a ouro, com flores brancas e uma paz sossegada, religiosa. Há um corte ontológico com a própria civilização porque o devir é demasiado ingrato, corre como um louco e não nos deixa chorar profundamente nesta comédia que somos. O vivos têm de chorar profundamente na comédia que habitam e que cometem como um crime na tragédia humana. Encontram-se espalhados, aqui e ali, no fundo do olhar de um gato, na cauda agitada de um cão, numa criança que se aproxima e adivinha o centro onde somos todos iguais entre nós. Linguagens outras, mudas e que nos indicam a bússola que surge, por breves momentos, no céu.

Sabes, temo o olhar deles pela luz que lhes possa dar com o meu, mesmo sabendo que não a veem. Nas sombras não se vê nada. E nós, os vivos, vimos a sombras que eles não veem. A luz não os cega  porque são cegos e não podem ser mais do que isso. Nem podem cegar novamente sequer...

 

 

 

sábado, 2 de outubro de 2021

Os múltiplos

 




Aí, Fernando, nem queiras saber o que por aqui vai

A multiplicidade de Fernando Pessoa é criativa. Depois dele, tornou-se moda ser múltiplo e, com esse escudo, alguns aproveitam para justificar as asneiras dizendo: "Não fui eu, foi o outro que há em mim", e safam-se do raspanete ou de algo pior. Normalmente os neo-múltiplos não criam nada, limitam-se a dizer que são múltiplos e, ao contrário de Pessoa, não sabem quem são. Fernando Pessoa escreveu muito em nome dele próprio. A melhor forma de lidarmos com os neo-múltiplos e dizer que também o somos. No diálogo fica criado um vazio suficiente para que nada sobre a não ser o passatempo dos "incriadores" que é fazerem tudo em nome da lei, que é múltipla também. Antigamente isso tinha o nome de vira-casacas, agora, com a leitura de Fernando Pessoa tornou-se tudo mais culto e mais fino. Já conheci dois que me disseram ser eles mesmos Fernando Pessoa ao que respondi: "Então porque é que não escreve?". Evidentemente que sempre poderão inventar que são a quarta personagem vista numa visão por Pessoa e que ninguém sabe qual é e se ele a viu mesmo e que consta não ter deixado nada escrito, uma excelente justificação para as duas pessoas que me disserem ser o poeta e que deixo aqui em forma de sugestão não vá alguém fazer-lhes a mesma pergunta. Em nome da multiplicidade e da ignorância do que se é, faz-se o que se quiser. Assumir a liberdade é coisa que fica mal nos círculos e circuitos intelectuais que são circuitos em círculo porque não a conhecem nem gostam dela. Mas, se nesses circuitos circulares alguém se afirmar "múltiplo" o aplauso é total e em pé. Fica assim escancarada a porta para o caos moderno que é sempre bem vindo e nada criativo. A liberdade é outra coisa e fonte de criatividade, feita de um diálogo constante entre nós e nós, nós e os outros e nós e Deus. Até mesmo quando Deus soletra o que deve ser escrito, fá-lo num clima de liberdade que é desconhecido dos circuitos em pista (normalmente a competição é feroz nesses círculos intelectuais, à imagem das empresas multinacionais que angariam clientes, o princípio é o mesmo) e há uma convergência, um ponto de encontro entre duas ou mais vontades, o contrário da competição. Quando ouço dizer que são múltiplos quero ver o aspecto criativo que contêm e nunca contêm, ou apenas os mínimos como quem sabe identificar as cores quentes e frias. São técnicos.