sábado, 30 de outubro de 2021
Nitidamente
domingo, 24 de outubro de 2021
O entendimento
sexta-feira, 22 de outubro de 2021
Testemunho
As pessoas esgatafunham-se por um minuto de fama, a real preocupação com o estado das coisas é outra coisa porque não dá fama alguma, a não ser a de profeta da desgraça. Olhando o panorama geral, chego a desejar que a parte subtil e benéfica do planeta se solte desta avaria materialista e volte em forma de anjo para ir redimindo o planeta. Parece radical, mas para grandes males, grandes remédios. Uma purga é uma purga. Meia purga não chega para um mal maior. Não é difícil de adivinhar onde isto vai parar, ou a um grande cataclismo ou a uma reviravolta impensável, ou as duas coisas. A degradação tem limites, como tudo tem, aliás, neste mundo. O que aflige mais é ter de assistir a isto porque não nos faz sorrir nem nos dá tranquilidade. O que nos faz sorrir ou nos dá tranquilidade é sabermos que tudo tem um limite. O chamado "progresso", filho do evolucionismo, nunca foi tão troca-tintas durante a sua parca existência. Mas talvez exista mesmo "progresso" e este não seja mais do que "ver o filme ao contrário": quanto mais "progredimos" mais estamos perto do "fim do progresso" e isso, sim, é um progresso, atendendo à existência de ciclos, coisa que o "progresso" na sua visão limitada, não entende porque a sua visão é tão limitada que não se enxerga. No outro dia, um amigo, por brincadeira, chamou-me "mulher das cavernas". Ri-me porque não anda nada longe da verdade. Algo de primitivo ou primevo chama por mim, e não é bem aquilo que se encontra nos compêndios da psicologia da História, a pulsão de reprodução, alimento e sobrevivência. Esta caverna, donde sou proviniente, não é escura. De escuridão nada tem porque o elemento que nela mais abunda é o da luz. Assim sendo, eu e o meu amigo, falamos de coisas muito diferentes, aliás é o que nos distingue e o que me torna a mim distinta. Bem vistas as coisas, um minuto de fama é hoje replicado em imagens, reproduzido. É, também, uma forma de sustento e sacia desejos de imortalidade. As cavernas não são todas iguais, isso aponta-nos a história, tal como os corações. É a incapacidade de entender os distintos mundos subterrâneos que vai fomentar, depois, a maior confusão na espécie humana e, meia dúzia de pseudo-iluminados, vão espalhando o testemunho das pulsões arcaicas, quando o homem, já muito caído e com um dilúvio em cima, se deixava reger pela mesma batuta dos seus amigos animais vendo tudo desfocado como se estivesse ainda debaixo de água. É esse testemunho, na corrida desenfreada contra o tempo, que é passado, como o único e verdadeiro e, em sintonia com a época, tem fama e sucesso.
terça-feira, 19 de outubro de 2021
O jardim
Andava a fazer um jardim sem que o soubesse. E um dia reparo que todos os objectos juntos, adquiridos ao longo dos anos, na sua grande, grande, enorme maioria, tinham elementos vegetais, folhas, flores, caules. Aprendi agora como o jardim se torna vivo ou ligeiramente amargurado conforme o seu jardineiro se vai sentido ou vai dando um sentido à sua própria vida. À frente, tenho um jardim para guardar e ele vai adquirindo um verde espesso, uma espécie de potência que só o verde escuro consegue ter. Guardar um jardim é um acto bíblico. A ecologia é uma queda de algo muito mais profundo. É a queda da metamorfose da alma no mais rasteiro sentido prático da existência. A ecologia é um simples eco de uma palavra maior: guardiões. Os que guardam. E, os que guardam, acompanham e fazem-se acompanhar. É esse o significado de guardar, mais tarde caído em mãos bélicas, tornou-se defesa de um potencial ataque. É nessa companhia que se transmuta alguma coisa porque não há obra sem criador nem criador sem obra. É todo um mundo diferente dos factos. Num jardim não há factos porque nada está fixo. Tudo cresce, muda. Questionava-me o porquê de não querer guardar muitos factos na memória, alguns apenas, como portais. Num jardim, não existem muitos, talvez a fonte, mas até essa jorra. E a ideia de evolução parecia-me ridícula quando me perguntavam se tinha "evoluído". O jardim não evolui, limitam-se a ir sendo. Era a primeira flor mais imperfeita do que esta última? Parece estranho, mas todas estas evidência tornam impossível um diálogo com os coleccionadores de factos e com os "vaidosos" do seu caminho. Um jardim assim murcha logo, ao primeiro passo de orgulho na colecção de factos que pensam ostentar. O meu mundo interior é tão estranho como um jardim, tão intrigante como a sua espontaneidade enquadrada na perfeição do gesto do jardineiro. Ao regar sinto a terra a absorver a água, os nutrientes a deslocarem-se e a ficarem mais acessíveis às raízes, as plantas a ficarem mais viçosas. Se não imaginar isto tudo, nada se passa, e a rega é uma chuva anónima sem o fogo da paixão pela vida que faz deslocar os nutrientes para a posição exacta, e não ao acaso, num jogo de sorte ou azar. Se não imaginar isto tudo o jardim não toma a forma do meu coração nem o meu coração se torna num jardim intrigante. Só assim, as nossas raízes tocam o mistério do mundo, o nosso e o da criação inteira. E é um acto íntimo e invisível cuja repercussão não sabemos. Os guardiães são seres intrigantes. Parecem parados. São o motor imóvel. Os que estão próximos do centro. Tão próximos que nem sabemos se são ele mesmo. Guardar o jardim é um acto bíblico. Não é um acto ecológico. Até porque não tem nada de lógico. É intrigante por isso mesmo. Porque nunca se sabem quais as repercussões. A ecologia está plasmada na linguagem académica, erudita, factual. A ecologia está longe do jardim e não conhece o perfume das rosas. Conhece compêndios. Acções e reacções. Causas e consequências. No jardim tudo é causa e consequência em si. Desta maneira, não sou ecologista. Abomino a palavra tal como abomino os eruditos. São seres fragmentados em factos. E não têm nada de intrigante, nem de misterioso porque se limitam a expor factos, como se estes fossem roupa estendida à janela para todos verem. E a ecologia é a sua filha bem comportada. Irritantemente bem comportada. Bem vestida. Debutante. Deputante. O jardim é livre disso tudo. É fresco e muda de humor. Tem bom humor, mesmo quando não tem. É tão parecido com um coração verdadeiro.
sábado, 16 de outubro de 2021
Civilização
Segredo a segredo, imagino, uma a uma as aves longínquas eternizando-se no meu olhar. Cai a noite sobre a civilização e adormeço na tentativa de um lugar mais luminoso. Como me ardem os versos mudos? Como a prova de fogo de um herói. Sabes, contorno as arestas dos acontecimentos, não como uma serpente, mas como um voo curvo de uma ave e se a noite cai, não caio com ela. Pela janela observo os vultos sombrios retirados das vielas de uma outra realidade e afiguram-se como aquelas marionetas indonésias, sombras numa história hipotecada pela maldição, acorrentadas num pequeno cenário, só delas, onde se movem num enredo que trouxeram para si com o esforço dos condenados ao cadafalso da ausência de consciência. Atordoa-me esta ausência de teatro substituída por essas sombras. Talvez me atordoe demais e não me deixe respirar. Não deixo que isso aconteça no último minuto, quando sobra a palavra “quase” como esperança. E, nesse último minuto, abro ainda mais os olhos e afasto a dormência e inauguro a comédia onde só se encontram os vivos. E os vivos aparecem a cores e a sua voz é um eco da minha própria alma lá longe, escondida num vale do tempo, entre montanhas d’hoje. É imperativo, esse eco. Como um chamamento. Os adjectivos cobrem as palavras que devem ser despidas para que surjam nuas e completas em si mesmas.
Sabes, tremo só de pensar no olhar deles, daqueles que são das sombras. Assemelham-se a franjas arrancadas de um manto real e espalhadas pelo chão do meu palácio. Não as quero por lá. A oferta deles chega sempre demasiado tarde e as minhas palavras chegam sempre cedo demais.
Neste momento tudo é um sonho livre mas aprisionado em si mesmo. Civilização que se auto-cerca sem misericórdia. E as sombras estão nela como habitantes naturais, nativos da humidade de um Inverno demasiado prolongado no tempo. E arrastam as palavras fixas que nunca são ecos da minha própria alma. Vivem em si e por si. Estão absortas desde há muito na perspicaz vontade que lhes esculpe os degraus demasiado baixos para serem dolorosos.
Os vivos não. Sofrem em segredo e sussurram, uns para os outros, palavras inaudíveis. Há uma melodia captável apenas pela sensação da memória. Mas uma memória que é toda ela real. É o manto real estendido pelo palácio que habito. A historia que fica para trás debruada a ouro, com flores brancas e uma paz sossegada, religiosa. Há um corte ontológico com a própria civilização porque o devir é demasiado ingrato, corre como um louco e não nos deixa chorar profundamente nesta comédia que somos. O vivos têm de chorar profundamente na comédia que habitam e que cometem como um crime na tragédia humana. Encontram-se espalhados, aqui e ali, no fundo do olhar de um gato, na cauda agitada de um cão, numa criança que se aproxima e adivinha o centro onde somos todos iguais entre nós. Linguagens outras, mudas e que nos indicam a bússola que surge, por breves momentos, no céu.
Sabes, temo o olhar deles pela luz que lhes possa dar com o meu, mesmo sabendo que não a veem. Nas sombras não se vê nada. E nós, os vivos, vimos a sombras que eles não veem. A luz não os cega porque são cegos e não podem ser mais do que isso. Nem podem cegar novamente sequer...
sábado, 2 de outubro de 2021
Os múltiplos