domingo, 5 de maio de 2024

O drama


 O drama do teatro em vida é que este ocupa tudo, a atenção, o palco, o cenário, o tecto da casa de espectáculos, os atores, o texto, a ideia, as luzes, os trajes, os sons. Ocupa de tal forma tudo que mais nada se passa e o espírito afasta-se por não ser necessário. Isto quando é bom teatro, porque o mau ainda ocupa mais lugar no pensamento. A força da memória aparece como uma musa falante: "O teatro é a queda do Rito". É muito raro conhecer alguém que utilize o teatro para que o Espírito faça a sua aparição.  Na verdade, só conheci uma pessoa capaz disso, todas as outras necessitam de rito como de pão para a boca e uma das coisas que aprendi com essa pessoa, foi a reconhecer aqueles que tentam,  em vão, fazê-lo. A forma de reconhecer passa pelo coração e daí que não haja volta a dar a alguns candidatos a atores-mestres. Continuam perpetuamente no limbo que o seu teatro proporciona. Mas como o espectáculo começa e acaba com eles, o drama é total. O Espírito nem espreita por falta de espaço. Quando estamos perante Ele através daquele único que conheci, Ele brilha como uma jóia na noite. Exactamente  o contrário da máscara. A memória é um forte. O Espírito é a Hora.

domingo, 28 de abril de 2024

O homem e a natureza


 O mundo encontra-se num tal estado de inferioridade que mostrar alguma superioridade perante ele é um acto de lúcida loucura. Obedeço  a regras muito simples quando escrevo, um delas é a de não querer saber o efeito que provocam as palavras. Se quando pinto, a pintura, um vez terminada, vive para além de mim, o mesmo se passa com as palavras. Soltas são e soltas ficam. Se digo que “não somo todos iguais”, essas palavras iniciam o seu voo em revoadas e atingem os que pensam exactamente o contrário só porque não se dão ao trabalho de pensar que não há nada igual a nada na natureza e no mundo. Esse é um dos casos em que a “utopia” pode encarnar, ou seja, a ideia encarna, mas não há corpo que a suporte, apenas e tão só, um corpo deficiente, torto consegue suportar, e mal, a encarnação da utopia, simplesmente, porque a natureza não aceita aquilo que não existe. De maneira que as pessoas podem vir com o argumento que ”em termos políticos somos todos iguais, que por exemplo, que somos iguais perante a lei”, ao que respondo, depende do advogado, do juiz, dos conhecimentos, da riqueza, do prestígio, da sorte, do contexto, da própria lei em vigor no momento. Este é um dos exemplos mais crassos em que se vê que não somos todos iguais. Perante esta frase também podem afirmar: “Pensas que és melhor do que os outros?”, ao que respondo “sou melhor que muitos e pior que muitos”, e mais uma vez, lá se vai a igualdade por água abaixo. Aquilo que a política tenta fazer, hoje, para além de andar a reboque (e só anda a reboque) dos negócios do mundo é achar denominadores comuns, a parte mais baixinha da fracção. E nunca consegue, e nunca consegue ser plenamente justa também, no entanto, tenta fazer crer que é o melhor de todos os sistemas, e o melhor de todos os piores sistemas. O denominadores comuns só conhecem a equidade quando são multiplicados e devem sê-lo por números diferentes, nunca iguais. Isto passa-se também a nível do sistema económico mundial, frágil como a estátua do sonho de Nabucodonosor. Sempre que é atirada um pedra, seja o discurso de alguém, algum desfalque ou algo semelhante, a estátua treme e normalmente os preços sobem para sempre. Assegurado, por isso, deve estar o nosso quintal onde se plantam alguns vegetais, não vá o diabo tecê-las...

A maior parte do tempo ando magoada, magoada com tudo o que se passa e pergunto-me porque é que é assim, porque não vivo indiferente e feliz, orgulhosamente só. Mas ando orgulhosamente cheia do mundo dentro de mim. Uma das funções que tenho é falar. Não para as pessoas que não ligam ou são surdas, mas falar para o alto e fazer o relato do que se passa. Mesmo sem palavras, lá em cima, são bons leitores do coração. O caractere chinês que indica “o homem”, é também aquele que indica que este faz a ponte entre o céu e a terra. Somos pontífices naturais. É por isso que, as castas tradicionais vão da todas ao mesmo, porque na essência, fazemos todos essa ponte. É esse o único grau de igualdade aceitável, mas até as pontes são todas diferentes... até no que ligam. A melhor maneira de viver, continuo a pensar, é como faço: tenho as conversas que os outros querem (andam tudo louco com o seu próprio espelho, lá está, a igualdade), e escrevo o que me apetece. Com os outros, sou eles, sem os outros, definitivamente, não tenho nada a ver com os outros. A minha total insatisfação, a minha total alma atormentada, não permite conversas, apenas monólogos e alguns recados para o alto. Admitir isto, hoje, é heresia. Da mais pura, porque ser que é ser humano tem de ser sociável, se não o for, não existe. É agradável não existir neste mundo. Mergulhar nas águas e ver as anémonas que não nos veem a nós. Como disse o Miguel Sousa Tavares, a humanidade divide-se entre aqueles que já viram o fundo do mar e os que ainda não viram. Mal sabe ele a razão que tem. As anémonas não se dão conta de que estão no fundo do mar, já dizia Platão. Caverna ou fundo do mar, tanto faz, vai dar no mesmo. No Japão há um passatempo fabuloso por entre os criadores de carpas: procuram a carpa perfeita. Eles sabem que as carpas são todas diferentes, e têm tanques onde elas se reproduzem. Os japoneses têm a esperança de encontrar aquela carpa que é perfeita. Penso que nem eles sabem muito bem o que é a perfeição, mas procuram-na com a certeza em que no dia a que encontrarem a reconhecerão. Acho isto espantoso como alegoria da demanda. Relativamente aos sistemas políticos, já aqui escrevi que como disse um alquimista” o homem é aquele que contém em si todos os animais”, pois na verdade, conseguimos imitar todos e, como cada espécie (às vezes até mesmo dentro da mesma espécie), tem a sua organização, o problema da organização social (hoje denominada de política e transformada em pura economia) é grande pois teria que se escolher uma parte do todo, sacrificando algo. É isso que se passa. O homem completo, total, não necessita de escolher, vive apenas de si para si ligando-se e ligando a terra com o céu. Esta é a anarquia-monarquia sublime. A única capaz de preencher os requisitos e as potencialidade humanas: a anarquia divina da qual o homem é rei. Tudo o resto, são partes, como a economia atual são remendos sucessivos, pensos rápidos paras as crises sistémicas. O homem vai manco enquanto tentar encarnar utopias porque a natureza não admite o que não existe, enjeita e ignora. O homem desperto estará tanto mais ligado à natureza quanto maior o seu despertar. Só assim ela o acolhe e conversa com ele. Só assim, juntos se redimem. Ora se andamos a reboque de economias periclitantes e de pensamentos suicidas em estado permanente (quem pensa que está aqui para se aproveitar e para aproveitar ao máximo é um suicida em acto pois não acredita na eternidade, é um ateu por natureza, natureza essa que o recusa e o rejeita...) nunca haverá sintonia entre o alto e o baixo. Ganham em simultâneo o Euromilhões e um cancro incurável, à conta de tais pensamentos e atitudes. É por isso que penso que esta civilização está condenada, e ainda bem. Foi mais uma tentativa frustrada. Vamos lá ver é se não é a própria humanidade, tal como a conhecemos, que está condenada. Houve várias e se tiver de ser preciso, Deus tenta de novo, sem problema. Tem todo o tempo do mundo...

quinta-feira, 18 de abril de 2024

O deus, o provinciano e o actorzeco

 

 

https://antena1.rtp.pt/programas-antena-1/alguem-diga-a-joaquim-de-almeida-que-nao-e-al-pacino/

O provincianismo português, a falta de segurança em nós próprios e a subserviência ao estrangeiro estão incrustadas na nossa gente. Este podcast de Luís Osório, é mais um exemplo disso. No triângulo mental criado pelo autor do texto, existe o deus Polanski, o provinciano que é próprio Luís Osório, fiel representante de três dos maiores defeitos da nação acima mencionados e um actorzeco que venceu lá fora. O texto até não começou mal, mas quando Joaquim de Almeida tem o desplante de duvidar da coerência de um guião que lhe foi apresentado pelo próprio deus da película, aí a coisa começa a correr menos bem. Osório indigna-se porque o atorzeco não chega aos calcanhares do deus Polanski, e tudo o que o deus Polanski quer é para cumprir. O actorzeco Joaquim, como bom português, deveria colocar de lado o seu gosto pessoal, os seus critérios de qualidade, aceitar humildemente o convite, chorar de emoção e até e beijar os pés do mestre, dizendo-lhe que faria tudo por ele. O mais engraçado nisto tudo é que Joaquim de Almeida acabou mesmo por aceitar o papel, não pelo guião, mas pelo realizador. Tudo estaria bem se tivesse ficado em silêncio, mas caiu no erro de abrir a boca e de se manter firme relativamente à sua apreciação do guião, nada que um actor não tenha o direito de fazer. Fico a pensar qual seria o comportamento  que na cabeça do jornalista o actorzeco português (tratado com paternalismo pelos americanos) deveria ter tido e das duas uma: ou devia ter aceitado logo o papel, pois tratava-se de um convite feito por deus, talvez até mesmo sem ler o guião,  ou deveria ter ficado calado, guardando o que se lhe passava na alma para si porque perante os deuses estrangeiros só temos de silenciar. Nós, portugueses, estamos assim desde que D. Sebastião resolveu desaparecer nas areias de Alcácer-Quibir, na queda total na disforia. Isto até vem a propósito de uma conversa que estava a ter à mesa ainda há pouco, antes de ouvir esta magnifica prosa de Luís Osório que exibe, qual super-homem, a t-shirt do provincianismo, da falta de segurança e da subserviência portuguesa (pode até mesmo mandar fazer bastantes t-shirts com essas temáticas, era negócio garantido pois o povo português, no geral, identifica-se com todas as suas palavras), dizia eu que estava a conversar à mesa sobre a forma como quando nos dizem desde a infância que não valemos nada, que não somos nada e nem nada do que fazemos presta, nos condiciona os gestos posteriores, nos condiciona a vida, nos tolhe e não nos deixa sermos totalmente nós próprios. Este tipo de pensamento apresentado pelo jornalista está para o  país como está o nevoeiro pairando sobre a pátria. É muito bonito, chega a ser quente, provoca um certo silêncio interior e exterior, mas não nos deixa ver o sol. O texto de Luís Osório, até não está mal escrito, envolve-nos, convence-nos, mas o bom senso passa-lhe ao lado. Bom, da Luz, então dessa, nem se fala. 

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Judeus


Fui ganhando respeito e admiração pelos judeus ao longo dos anos. É uma coisa que se aprende. Condenados a serem nómadas, sem terra, sobreviveram pelas suas crenças, os seus valores, a sua cultura , o seu amor às letras, a sua forma de ser (que são variadíssimas), muitas vezes mal tratados apenas por serem diferentes (como os compreendo), muitas vezes bodes expiatórios de tantas situações. A Europa, no mapa está cercada por uma ferradura islâmica. Relativamente ao Islão, que tende a não fazer a exegese do texto sagrado (ao contrário dos judeus que são viciados nisso: para eles um novo ponto de vista sobre o texto é considerado e guardado e lido) e que tende a depositar as esperanças em líderes e em Deus, mais do que no povo (muito ao contrário do judeus, que depositam a esperança nas pessoas e em Deus) e que tende ao conflito, mesmo entre eles, com as suas sistemáticas divisões, esse, não me atrai tanto, talvez por ser mulher e não gostar da forma como essa religião as trata (nada que o ultra catolicismo ou o ultra judaísmo ortodoxo não façam também, é verdade), mas o que menos me atrai no islamismo é a simplicidade: cinco pilares e está feito um muçulmano. O Judaísmo e o Cristianismo, são complicados, sendo que o primeiro ainda é o mais. A vida é complicada e, nessa medida, estão mais próximos da vida e da Vida. Há pessoas em Portugal que se esqueceram da forma como Portugal foi construído: só há Portugal porque houve resconquista cristã. Parece-me que se se passa na Idade Média, conquistar território aos muçulmanos (que são altamente territorialistas), então é legítimo, se os israelitas, rodeados que questão por países muçulmanos, constroem um colonato, cai o céu e a trindade. Eles têm de ser sempre bodes expiatórios de alguma coisa, e no caso português, a reconquista ainda é mais doida: muito território moçárabe e muitos moçárabes (cristãos que viviam sob o domínio muçulmano) morreram às mãos dos cristãos vindos do Norte. Isso é legítimo, aos olhos de alguns apenas porque se passou na Idade Média e não agora, pois conquistar território a muçulmanos de forma a defender uma nação nos actuais dias é criminoso... dois pesos e duas medidas. Seriam os países muçulmanos os primeiros a querer ajudar os palestinos, mas como sabemos, não ajudam, nem querem saber (a humma é uma utopia) porque entre muçulmanos nunca houve paz, nem sabem o que isso é. Ontem vi um filme extraordinário: "Fica connosco" de Gad Elmaleh, inteligente, benigno e com sentido de humor. Aos que me espiam secretamente, recomendo, mesmo que me odeiem por este texto. Francamente, o filme vale mais do que qualquer ódio. Vale pelo humor, pelo amor e pela Vida. 

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Bacocos


Bacoco, aparece como sinónimo de pacóvio, ingénuo, pouco esperto e por aí fora, aparece como um dos argumentos para que o logótipo adoptado para a República Portuguesa, a malfadada, prevaleça e foi,  afinal, colocado de lado. O novo governo, tal como prometido, voltou à esfera armilar. Ouvi de tudo, desde que era muito pouco como primeira medida adoptada até ao facto, segundo alguns progressistas entusiasmados, de o antigo logótipo, leia-se a bola amarela e os dois quadrilongos laterais, serem muito mais fáceis de trabalhar pelas novas tecnologias, mas, por enquanto, ficar-me-ia pela palavra “bacoco”, pois penso ser uma palavra deveras interessante. O pacóvio, o ingénuo e o pouco esperto que prefere o antigo logótipo é também um conservador, um anti-progressista, um retrógrado, um palerma. Tive um professor de parentesco (parte do estudos antropológicos) que me disse para atirar os livros de Mircea Eliade para o lixo porque estava ultrapassado, pelo que lhe perguntei se também Platão estaria, algo que o deixou calado. Os antigos gregos, com todos os seus defeitos, deixaram-nos, entre outras, três perguntas fundamentais, “Quem sou? De Onde vim? Para onde vou?” e são elas que estão no cerne do debate que nasceu em torno de um logótipo, ou de dois logótipos. Os que defendem o logótipo com a esfera armilar, podem não entender racionalmente porque o defendem, mas pelo menos intuem estas perguntas, os outros nem conhecem estas perguntas. Passado presente e futuro não vivem uns sem os outros e são os bacocos que parecem aperceber-se disso, consciente ou inconscientemente. Já os outros acreditam no futuro e em mais nada, como se isso fosse possível na terra do devir. Um futuro sem passado não se aguenta, abate-se sobre si próprio, e os símbolos, descobertos nesse passado, fazem parte do passado (digo descobertos porque lhe foi retirado o véu) e logo, pertencem à esfera da pergunta “De onde vim?”. Sabendo isso, passa-se para a seguinte, “Quem sou?” de depois para a outra “Para onde vou?”. E na verdade, o movimento actual de progressistas, não sabe, nem quer saber. Só sabe que o antigo logótipo não é bom para trabalhar com informática. Não se submete, e faz muito bem. Porque não é o símbolo que tem de se adaptar à tecnologia, é a tecnologia que tem de se adaptar ao símbolo. Esta é apenas uma das caraterísticas da inversão das coisas. O símbolo é hierarquicamente superior à tecnologia e não o inverso. O bacoco sabe disso, intuitivamente. Mas, os verdadeiros pacóvios, bacocos e ingénuos são aqueles que acreditam que a tecnologia é um grande barco que nos leva não se sabe muito bem onde, porque nunca fazem a pergunta “Para onde vou?”, até porque não fizeram as duas primeiras. São uns ingénuos, crentes e cegos. Os dilemas do século XIX continuam em força. Isto são questões básicas, o b-á-bá da existência. A criação de um mundo onde a assimbolia, ou seja, a impossibilidade de utilizar os sinais e/ou símbolos para se compreenderem ideias é o encontro com a bestialidade, e parece-me ser essa  a vontade inicial de todo este movimento progressista, porque há sempre um propósito nas acções ainda que não esteja visível. A raiva ao símbolo é apenas um sintoma de uma doença, de uma falha, de uma incapacidade. Nós, que nascemos para expandir a consciência, procuramos dar cabo dela, contraindo-a até à sua inexistência, até que se abata sobre si própria. Um dos propósitos dos símbolos é serem capazes de abrir portais da consciência. Mas o progresso está na tecnologia... que se irá abater sobre si própria, arrastando os homens com ela. O que não é novidade nenhuma. E aí, seremos uma bestas, tal como sonhámos, longe dos símbolos, longe do céu e bem longe de nós próprios.

quinta-feira, 28 de março de 2024

A picareta

 







Este irmão do ex-primeiro-ministro não quer guerras culturais mas quando faz estas afirmações já está numa.
Podia explicar-te muito melhor o que se passa, mas como tu sabes sempre tudo não precisas que te explique nada, bem sei que te preparas muito bem sempre que tens de entrar no ar. Imagino que começas a estudar logo pela manhã e só páras à hora em que apareces na televisão. Apeteceu-me oferecer-te uma picareta para destruires os símbolos portugueses, mas em vez disso, proponho-te que estudes o seguinte tema e subtema: símbolos e símbolos portugueses ou de Portugal. A sapiência e a cultura, ao contrário do que pensas, não leva uma manhã e uma tarde a adquirir, leva milhares de anos e tu és a prova viva de que a informação só serve para que possas desbobinar aquilo que aprendes rapidamente, em poucas horas, enquanto a sapiência fica em silêncio a admirar ignorantes como tu. Também, e sendo tu filho de pai indiano, brâmane ainda por cima, te posso oferecer uma picareta para ires à Índia destruir duma vez por todas os símbolos de uma cultura que te corre no sangue e assim ficas com o serviço terminado. A verdadeira guerra não tem nada a ver com partidos políticos que são todos idiotas e só servem para partir o país todo (eles nem sequer são reflexo de algo maior pois a qualidade dos políticos hoje é uma desgraça), a verdadeira guerra é entre a sabedoria e a ignorância. Também te posso oferecer uma t-shirt com uma pintura de Mondrian para passeares com ela todo contente com as duas picaretas, uma em cada mão. Mas vendo bem, até tens razão, o símbolo é tão mau que serve perfeitamente a República, nunca o Reino e para ficar mesmo perfeito só falta acrescentar um cacho de bananas.



sexta-feira, 15 de março de 2024

Lua Nova

 


 

Talvez seja apenas necessário guardar um grão de vida e andar com ele no bolso interior do coração e não o mostrar excepto às crianças e aos animais, os únicos capazes de o identificar, os restantes estão cheios de rugas na alma e têm os olhos pregados ao desgosto e o desgosto pregado nos olhos.  Desde que saí do jardim, tem de ser assim. Lá podia ser eu própria e andar desnuda, sem vergonha nem medo, mas cá fora temos de nos cobrir de trapos e de véus para não haver nenhuma desgraça. Neste mundo woke, todas as excentricidades são permitidas, menos a verdade. E no mundo anti-woke, o mesmo se passa e o mesmo ainda no que não é nem deixa de ser e onde se é funcionário  de uma democracia bizarra encaixotada em tecnocracia e profissionalismo, seja lá o que isso for. Já passamos por muitos escritores que agarraram o “sonho de Portugal” sempre esbatido no pano de fundo que é o Quinto Império. Hoje olho para trás e vejo uma grande jornada feita durante décadas por esse sonho fora, mas a sua materialização não pode ser feita dentro de pessoas cheias de rugas ou com o desgosto pregado nos olhos e os olhos pregados ao desgosto, de maneira que afasto o pensamento desse sonho e coloco-o, como uma vez fiz com um livro, no topo da estante, encostado à parede, num ponto incessível e invisível que só eu conheço. Não se deitam fora os sonhos, sobretudo este, o de Portugal. A única coisa a fazer é colocá-lo longe do nosso olhar, não pensar muito nele para não nos tornarmos impacientes numa altura em que o globo terrestre não está para brincadeiras com noventa e nove por cento de loucos, enlouquecidos por o restante um por cento. Evidentemente que temos de estar fora do mundo, a orbitar em volta dele, com um grão de vida no bolso interior do coração e a brincar com ele, dentro de nós e para nós, como se fosse um berlinde. Um abafador, abafado, só utilizado nas almas que valem a pena, como as das criança ou dos cães. Giramos à volta do mundo como se fossemos satélites à espreita e à espera de uma oportunidade para cair em cheio nele e então sim, começar a transformá-lo. Até lá, apenas ouvimos a música das esferas e rebolamos na relva com cães e crianças. Também descemos dunas de areia gigantes e rebolamos como se fôssemos bolas e rimos todos juntos do nosso segredo que o mundo não vê. Desse e do segredo da gruta onde escondemos, num sítio inacessível, o sonho de Portugal. Claro que há quem fale dele, mas ou o desvirtuam (apenas quando falam dele) não o beliscando sequer na sua essência (é apenas uma tentativa de apropriação impossível de se concretizar) ou não serve para nada falar dele  porque há palavras cujos ouvidos actuais nem reconhecem, ficam imediatamente surdos à passagem do seu som e por isso não vale a pena falar de certas coisas, mais vale rir e rebolar pelas colinas e ser-se satélite sem nome, nem voz, nem fama, ser uma constante lua nova e permitir que as trevas se instalem em sossego, deixá-las respirar e ser o que são e não as incomodar com sonhos nem com nomes de países demasiado misteriosos para serem ditos em voz alta. Não se pode dizer o nome de Portugal em voz alta, só se pode sussurrá-lo pois a força do seu nome equivale a um tsunami e ninguém quer um tsunami na sua alma. Ninguém quer morrer para renascer. Às vezes penso-me como guarda-livros, mas não daqueles que fazem contas, antes daqueles que os guardam de facto dentro de si, como no filme Fahrenheit 451. Ainda não chegámos ao ponto dos livros serem proibidos, apenas os sonhos o são. Podemos ler tudo, desde que não sonhemos. E muito menos temos permissão para entrar num sonho, isso é o sacrilégio mais trágico. Duas realidades apenas se querem sobrepostas, nunca fundidas. É por isso que o ponto não é uni-dimensional, é bi-dimensional. A sobreposição é aceite, ser-se várias coisas ao mesmo tempo, em paralelo, sem se tocarem e dizer a toda a gente que se trata de um ponto, de uma unidade. É mentira. São várias, sobrepostas num líquido. São liquefeitas, dissolvidas, mas não unidas, fundidas numa só.  Como o nome de Portugal é unidimensional, não pode ser dito em voz alta, como o segredo do Templo. Simplesmente porque o mundo não ia aguentar e talvez passasse por um grande período de choro, ou de dilúvio e ninguém quer um dilúvio, nem chorar. Preferem um desgosto colado aos olhos porque assim a boca ainda pode sorrir sem conhecer o sabor da lágrima. Sem o sal, sem a vida. As trevas, neste momento, são muito mais interessantes porque ofuscam a luz e nós disfarçamo-nos de lua nova, mas as trevas que carregamos são de uma outra espécie, daquela que contém tudo e onde tudo flutua em expectação, embora quem nos veja de fora, veja apenas a lua nova, a permitida, como um livro que se lê sem poder ser sonhado.