terça-feira, 14 de junho de 2016

"Querida, encollhi a língua" por Jorge Colaço


Com a devida permissão do autor, transcrevo esta excelente reflexão sobre a relação dos portugueses com a sua língua:

«Querida, encolhi a língua».
 
Reflexões sobre empobrecimento da língua 
 
    1.
    Tornou-se lugar-comum repetir que a língua nos é uma pátria. Não se terá ela tornado, porém, uma pátria longínqua, minguada, apenas uma língua de terra?
 
    Aprendemos todos que a língua portuguesa é muito rica. Acontece que todas o são a seu modo. O que faz então a riqueza da nossa? 
 
    Em primeiro lugar, a solidez da sua formação, ancorada na velha ordem latina, depois na energia vernacular resultante da sua territorialidade própria, na sua história de unidade e dispersão, na sua capacidade de dar e receber, na diversidade e ductilidade das suas capacidades expressivas.  
 
     Só uma língua forte seria capaz de dar novas vozes ao mundo, conservando uma unidade essencial. É nesse sentido que se pode falar, e se fala, de lusofonia: uma galáxia de particularismos lexicais, morfológicos, sintácticos, semânticos e prosódicos, mantidos em relação por acção da força gravitacional constante assegurada por uma gramática e um léxico comuns. 
 
    No âmbito do universo lusófono, esses particularismos, ou variantes, não têm hoje um centro geográfico. Essa centralidade é ocupada por um corpo histórico imarcescível: o tecido de peripécias e transformações que a própria língua foi produzindo ao longo do seu trânsito através da História.  
 
    Esse trânsito tem contudo um ponto de partida, um lugar matricial, um rol de circunstâncias e condicionalismos internos que veio a resultar no que se chama a variante europeia do português, ou o «português de Portugal».
 
    É este «português de Portugal» que nos preocupa e aqui nos ocupa. Preocupam-nos os fenómenos de redução, estreitamento, afunilamento, todos eles eufemismos de um empobrecimento, que muito transcendem a questão ortográfica, aquela que mais emoções desperta e que a seu tempo também terá reflexos, embora ainda não totalmente discerníveis, neste processo de empobrecimento, termo que muitos não aceitam, invocando alguma espécie de saldo de uma contabilidade de ganhos e perdas que em todas as épocas se repete.
 
    2.
    Também aprendemos todos que a língua se transforma e que o uso é o grande agente dessa transformação, à qual nos habituámos — de uma forma um pouco simplista — a chamar evolução, presos ainda à euforia e às metáforas organicistas da ciência oitocentista. Tornámo-nos assim condescendentes, ansiosos por corroborar, por participar nessa espécie de progresso que a evolução passou a representar. Até nos dispusemos — e dispomos — a antecipar e «facilitar» essa evolução, cujo desenrolar julgamos vislumbrar, a abrir caminho à sua inevitabilidade histórica, que vemos inscrita na sua própria natureza. 
 
    Rimo-nos gostosa e desdenhosamente dos esforços inglórios — sobretudo por terem sido inglórios — dos gramáticos antigos para preservarem a língua contra o uso espúrio, opondo a língua culta à língua popular, opondo a língua escrita à língua falada. Desarmados pela evidência histórica e munidos do preceito pragmático que é «se não os consegues vencer, junta-te a eles», eis que nos pusemos a agir em nome e a favor de um certo futuro, ou melhor, de uma certa ideia de futuro.
 
    [Quer isto dizer que, para dar um exemplo por enquanto caricatural, dadas as suas actuais misérias, as vogais átonas pré-tónicas — que no português do Brasil vivem na abundância — poderiam um dia vir a ser suprimidas por via administrativa em nome da antecipação do seu destino histórico.] Em desfavor deste futuro, inevitável e irreversível, só poderiam estar os velhos do Restelo, agrupando puristas, saudosistas, conservadores, e todo um exército de contumazes oponentes da mudança e a ela resistentes, que muitas vezes o são, dizem-nos os adeptos do progresso, por mero desconhecimento ou incompreensão (como se conhecer e compreender fosse igual a aceitar). Creio que muitos reconhecerão esta panóplia discursiva de outros contextos, embora se trate certamente de uma coincidência… 
 
    Quisemos, então, examinar os usos em termos quantitativos e determinar que língua falava o cidadão comum, de que mínimo necessitávamos para nos entendermos. Encolhemos a língua na medida das necessidades e fizemos dicionários e gramáticas à medida dessas necessidades.
 
    O descritivismo triunfou sobre a normatividade. Significou isso, na linha do que acabámos de dizer, que a descrição linguística operou sobre um corpus em parte determinado, ou pelo menos sancionado, pelo uso. A norma gramatical tornou-se permeável, por exemplo, à suposição de uma «intenção» do falante ou mesmo às suas «preferências». [Vejam-se por exemplo as hesitações na concordância com expressões partitivas, ou de quantificação, e respectivas justificações.] Além disso, o antigo sistema de regras e excepções gramaticais, considerado insuficiente para abarcar todas as possibilidades da língua usada, foi tomando a forma de um vasto e complexo estendal terminológico.
 
    Esbateram-se as antigas distinções entre culto e popular, entre escrito e falado. Quem alguma vez deu aulas de português a estrangeiros conhece as dificuldades de explicar a «utilidade» da aprendizagem do mais-que-perfeito do indicativo, do futuro do indicativo, ou do condicional, que a língua oral substitui sistematicamente, substituição que ninguém parece particularmente interessado em corrigir: ninguém quer ficar do «lado errado da história». Porque é assim que os falantes dizem, é claro. «É a evolução da língua, estúpido!», dirão alguns mais acerbamente. Algum dia alguém exigirá que se amputem essas excrescências inúteis.
 
    Entrámos assim no reino da superstição democrática (a expressão é de Jorge Luís Borges). A lógica é, grosseiramente enunciada, esta: «se se diz (ou se se diz assim) é porque existe; se existe tem de ser descrito». Certíssimo! O pior é que esta proposição gera outra, igualmente verdadeira: «se não se diz, é porque não existe; se não existe não tem de ser descrito». 
 
    A «pátria antiga», arcaica e empoeirada, e a «pátria pequena», no sentido em que por exemplo João Araújo Correia ou Tomaz de Figueiredo a evocaram, foram assim convidadas a retirarem-se da mesa e irem para a cama de castigo, uma por ser velha e desconforme, a outra por ser aldeã e rural.
 
    Temos reduzido, então, a língua, por desbaste, a uma língua essencial e urbana, ufana da sua contemporaneidade, desconfiada de vernaculismos obscuros e de construções inabituais, aberta sobretudo ao momento, atenta a rumores e tendências, sempre um pouco avessa à nacionalização de terminologias em voga com que nos damos ares de cosmopolitismo e sofisticação. Sobretudo, a «pátria» estreitou-se, resignada a uma certa ideia de simplificação, que é, no nosso modesto entendimento, um argumento inaceitável em linguística.
 
    Creio que temos de ser capazes de olhar este processo com lucidez, quer reconhecendo os erros e excessos, quer sublinhando as qualidade e virtudes. O que não podemos é olhar o fenómeno, prazenteiramente, como um infeliz embora divertido acidente, que, por meio de jigajoga, se haverá finalmente de recompor. Talvez não possamos mesmo limitarmo-nos a descrever o acidente e anunciar: «Querida, encolhi a língua». Afinal, o empobrecimento nunca é um filme cómico. 
 
    3.
    Mas não é tudo.
    A língua literária foi sempre considerada o repositório dos tesouros da língua, guardiã da sua história, a sua linhagem nobre, espaço de fixação lexical e sintáctica, e, na mesma medida, o lugar da sua reinvenção.
 
    Tal era possível porque o escritor — «semelhante a uma luz que, invisível em si, aquece e torna visível o mundo», como escreveu Jünger — era uma reconhecida autoridade no domínio da língua, fonte de abonação e de legitimidade. Exemplar, mesmo que disruptor, pois só sabe desfazer bem quem também sabe fazer bem. A principal razão disso residia no facto de terem os escritores, em geral, um forte domínio da língua e uma consciência aguda das suas variações e possibilidades, bons conhecedores dos seus usos literários através dos tempos e, muitas vezes, defensores, com especial filáucia, das suas particularidades. Desses, já só se reconhecem uns poucos. Mário de Carvalho ou Fernando Echevarria representam bem os que aqui não menciono. 
 
    A abonação e a legitimidade é hoje vulgarmente procurada em jornais e blogues, onde todos podemos ser autores. O texto publicitário, a reportagem, a entrevista, a notícia, o requerimento ou a carta dividem entre si, em partes irmãs, com a literatura, o espaço curricular da língua, nas escolas. A literatura veiculada escolarmente barricou-se num universo «infanto-juvenil», e daí não sai.
 
    Mais do que para a literatura, os poderes públicos estão orientados para os problemas da literacia, que é, hoje, entre outras coisas, também um problema de saúde pública, o que só por si diz muito sobre o empobrecimento da língua. Não que esses problemas não sejam reais por esse mundo fora, mas porque a aprendizagem afastada da língua literária é objectivamente empobrecedora. É um trabalho de modista que desconhece a alta-costura. 
 
    Se escritor é todo aquele que escreve, ao contrário do que afirmaram Nemésio ou Mourão-Ferreira, confunde-se agora com o publicista, que não pode ir muito além da língua essencial que lhe permite ser lido: a língua literária também encolheu, talhada e tolhida pela necessidade. Passou a quase não se distinguir da língua comum, a procurar mesmo uma normalização, uma habitualidade reconhecível. Até porque a língua comum absorveu e banalizou certas fórmulas e recursos, como a inversão da ordem entre nome e adjectivo. O fenómeno, que não é exclusivamente português, tem uma clara dimensão económica e editorial.
 
    Folheemos romances ao acaso para vermos como as personagens reagem encolhendo significativamente os ombros a cada passo e a cada página; para vermos como, em diálogo, respondem sempre, mas rarissimamente replicam, retorquem, retrucam, redargúem, anuem, assentem, objectam, argumentam ou contrapõem; para vermos como as estruturas sintácticas e lexicais não ultrapassam um determinado grau de simplicidade ou de sensaboria. A simplicidade e a sensaboria de uma língua normalizada e abençoada pelos processadores de texto, que maldosamente insinuam a dúvida em quem não tem já muitas certezas. 
 
    Significa isto também que o leitor médio, e sobretudo o leitor jovem, tem vindo a perder a capacidade de ler os clássicos, antigos ou modernos, crescentemente feridos de ilegibilidade, quantas vezes impedidos de entrar, quando não expulsos do cânone escolar.
 
    Sabemos que a língua sofre transformações. Sabemos que cada época tem a sua língua essencial. Mas sabemos igualmente que a língua é cumulativa, o que não é usado num certo momento não deixa de existir por isso, é um remanescente, pronto a entrar em acção quando tal lhe for solicitado, ou, para ceder aos usos de agora, um importante activo.
 
    É preciso olhar este fenómeno de encolhimento, não de forma relativista, observando apenas — encolhendo os ombros — que sempre foi assim em todas as épocas, mas trabalhando para que os múltiplos afluentes da língua não sejam estancados. 
 
    4.
    A nossa língua – a comum e a literária, nos seus diversos registos – é muito rica em tesouros escondidos. Como desenterrar e recuperar essa riqueza?
   
    Lendo. Descobrindo, aprendendo. Lendo. Redescobrindo, reaprendendo. Observando as diferenças necessárias entre a língua falada e a língua escrita. Escutando. Corrigindo. Lendo. Redescobrindo e reaprendendo a língua na sua grandeza e na sua diversidade, diacrónica e sincronicamente considerada.
 
    Evidenciando, por exemplo, a importância de uma prática de escrita e de leitura confiável: 
 
    «No que toca à precisão e propriedade da linguagem, fontes indispensáveis da clareza, é preciso que desde logo aprendamos a distinguir o sentido próprio e figurado das palavras, a explicar, por meio de frases, diferentes acepções da mesma palavra, a indicar a ideia geral comum a várias ideias e a ideia particular expressa por cada uma delas.
 
    Aprenderemos a descortinar, por exemplo, que em “abater, demolir, arruinar, destruir” existe uma ideia comum qual é a de “fazer cair”, mas que cada um destes verbos tem um significado e emprego particulares. Compreenderemos que indicar sinónimos não é tanto apresentar palavras que exprimam as mesmas ideias (caso que geralmente só acontece com palavras de origem diversa ou chegadas até nós por via diferente, e ainda assim com diferente emprego), mas sobretudo ideias semelhantes. Aprenderemos a encontrar por nós próprios locuções e frases correspondentes de outras, por meio das quais possamos evitar as repetições de forma ou as desarmonias do estilo. Aprenderemos também até que ponto os provincianismos e os neologismos são admissíveis, e seremos levados a reconhecer que os barbarismos de construção são muito mais reprováveis que os de simples palavras, porque sujeitam o pensamento a moldes estrangeiros e brigam com o que há de fundamental no espírito de uma língua.» 
 
    Palavras colhidas no livro Problemas de Análise Literária, de F. Costa Marques, licenciado em Filologia Clássica, professor do Liceu de D. João III, em Coimbra, na sua já longínqua primeira edição da Livraria Gonçalves, de 1948. 
 
    Muitos serão os caminhos, como as moradas. Apenas me atrevo a enunciar um deles: voltar a uma orientação que faça regressar a semântica, e com ela a atitude e o procedimento filológicos, que faça regressar todo um programa de minúcias e subtilezas com que sejamos capazes de enfrentar a bruteza dos tempos. 
 
 
 
Jorge Colaço
 
Lisboa, Maio de 2016