domingo, 31 de maio de 2015

Não reparaste, ainda?




Não reparaste, ainda? Estão por toda a parte... em mesas, vestindo-as, mas também vestindo humores indiscretos, em sombras de fotografias,  nas festas, nas cidades, nas fogueiras de vaidades. E na diplomacia, serenas, em recantos vibrando em cores, junto à morte e às casas tristes, junto aos olhos nas varandas, livres e soltas e abandonadas, presas e disciplinadas, por entre o público, sem nada que ser e longe, tão longe se as olhamos, e tão perto que nem as vemos e fazem falta, se delas nos esquecemos, sobretudo na alma, em centelhas, deslizando por nós, refazem o eterno elo que vamos sendo, lembrando as estrelas que são, na outra margem... segredos mil de quem as ousa, mais que imagem que em nós ruiu são um vasto clã  da eterna asa... flores, segredos escondem, rescritas na história de um corpo tendente à glória.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Fio ténue


“Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
E a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar."
 
  Fernando Pessoa, in Mensagem
 
Tornavas tudo íntimo porque tudo tendia a tomar mais do que duas dimensões e, ao fazê-lo, nada ficava inocente. Nem podia sê-lo. Descontextualizavas as palavras e os gestos e colocava-las num qualquer outro pensamento, ideia ou tempo. Assim, de repente, raptavas aqueles que de ti se aproximavam para um outro lugar, para uma outra consciência das coisas, para a dimensão mais profunda que delas te conseguias aproximar. Sabias que, em último grau, tudo era afinal revelação, mas sabias também, que se cada gesto era uma viagem, se cada pensamento um passo, se cada ideia um voo, havia uma espécie de ilha que ia contigo, onde quer que fosses. Ilha única, impartilhável pela impossibilidade de quem quer que fosse poder fazer a mesma viagem até lá. Sabias da impossibilidade de duas pessoas fazerem a mesma viagem, por terem tido vidas diferentes, serem outras, e terem até outro corpo que não o teu. Mas no fundo de ti, vivia a dúvida, aquela isenta de vontade ou desejo, e que se prendia com a certeza de memórias sem tempo, coladas a ti como um tempo presente. Era esse o teu limite da dor, o exacto instante em que acabava a ilha e começava o mar. E nesse pequeníssimo espaço de areia e tempo cabia o infinito abismal de separação. Essas ilhas encobertas que se dispunham no mar, atravessando-o eram, sem que o soubessem, a sagração do próprio tempo, tão raras quando vistas, tão próximas quando encontradas, tão ímpares na realidade que propunham, mas tão ilhas que eram e  inalcançáveis, por isso.  Dessas ilhas apenas o vento as sabia quando levava as folhas como poemas, as sementes como esperanças, as poeiras como estrelas... e nada mais era senão isso, e todas as obras dos artistas não eram senão isso... e todos os descontextos das palavras e gestos que proporcionavas a ti e aos outros, nada mais eram senão isso... e os olhos e as almas ficavam sempre por acontecer, enfaixados numa falsa esperança porque a realidade nunca se submetia à vontade do sonho, calando-se este, na viagem que era só promessa... e tudo ganhava a utilidade que o próprio sonho negava: as folhas, as sementes, as poeiras caiam, geravam numa utilidade descarnada, quase, donde tinham vindo. As brumas nunca enalteceram as ilhas e os sonhos nunca foram de ninguém, os deuses entregavam-se em vão, porque não escutaste e, com a capa da esperança se afastavam, deixando-te com um sorriso vago de quem caminha nas esferas e volta a estender a mão, em contra vontade, a quem passa, numa eterna espera.
 
E há, no entanto, esse fio ténue aproximando-se, e segreda tanto a voz como a escuta.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 28 de maio de 2015

No extremo


Há, no extremo oposto de nós, um lugar reservado ao imenso que em tamanho que somos. Como um mapa que tão bem conhecemos... E, é desse promontório, tornado sagrado, por o ser, que nos elevamos à condição do que somos. É, nesse extremo oposto, que há o gesto mais imenso de que somos capazes, tornando o desejo num sem número de impossíveis, e nele e com ele, resgatamos, como marés, todos os desafortunados e todos os naufragados e todos os infurtunios e naufrágios de todas as formas pelas quais a vida se reveste.

Nesse promontório, que nos foi dado como paisagem e no qual, extremo oposto de nós, submersa e imersamente nos adivinhamos, para lá se estar, com as vestes ainda límpidas e esvoaçantes neste fim de ciclo, há uma resistência imperceptível a tudo o que nos cerca como forças tenebrosas, maléficas, caóticas, próprias de um Adamastor que é todo rocha e histórias tristes. Há, como uma espécie de dança, vinda do fundo dos tempos, celebrando a vida no que tem de mais genuíno e mais espontâneo e mais simples, numa claridade e transparência capaz de se fundir com qualquer gota desse mar onde somos imensos. Há, uma resistência firme incapaz de ceder a toda a incompreensão, a todo o desamor, a toda a vaga alternativa de horrores que este fim de ciclo nos dá. A haver uma nova religião, que nem sabemos se é necessária, ou não, ela será a do mar ou marítima porque só ele nos dá a dimensão, tanto do infinito espelho do céu, como, ao mesmo tempo, em matéria viva, em corpo agitado, em vida múltipla, em faces e cores de uma criatividade transbordante, em alegria exacta espelhando a luz do sol sem a noite negra, só ele nos explica sem palavras, como um mestre, o papel dos homens na terra e a forma como, por mais Adamastores que sejamos, estancamos frente ao mar, estancamos frente ao Vasco da Gama que todos somos, e desaparecemos em sal e lágrimas, vencidos por nós mesmos, nesse confronto eterno entre nós e o extremo oposto de nós, onde somos imensos...

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Antes de...


Era no que não vias, no que nem suspeitavas que te poderia dizer o segredo. Como se houvessem segredos quando deixassem de haver alusões, pressentimentos, ou ideias. Era na nudez completa da tua ignorância de todas as coisas, excepto de ti, como se fosses apenas factos acumulados e sensações várias ao longo dos factos que eras que, sentada nessa praia, te poderia dizer, a palavra simples, a palavra azul de mar. Que poderias ser o azul do mar, e o barco, e o tripulante, e o capitão, e as estrelas e o infinito... porque o mar, consegue, mas só perante a tua nudez, ser o que não vês, nem suspeitas, indiviso no seu mistério, altivo na sua exigência, transmutador da tua essência, abrindo-te todas as moléculas do corpo ao infinito. Antes de haver segredo, deverias saber que há segredo... mas sabê-lo, não é lê-lo, nem dizê-lo, é sê-lo.
 

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

O essencial?





Há coisas que só em jeito de transexulidade profunda anunciada por Herman José e mangificamente interpretada por Maria Rueff: “Sou mulher mas tenho um homem dentro de mim que é uma Drag Queen”. Assim, só nesse jeito  é possivel de fazer uma regra de três simples absolutamente surpreendente no excesso de barroco, que é já a tontura final: o problema dos historiadores é não terem memória, ou não terem a memória necessária, por isso, se pode dizer, ainda de que modo intuitivo, sem se saber bem do que se está a falar, que, acesso, podemos nós ter a dois planos, mas o terceiro é que vem ter connosco. Os tempos, são outros hoje, e aquilo que pensamos ser necessária, a repetição, é afinal causa de desgraça por se ficar apenas à superficie das coisas. O terceiro plano vem ter connosco de uma forma evidente. Temos sorte, no entanto, se somos pressentimento.

(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Para quê?




Ver-te assim, quase como se não quisesse ver-te assim, impressiona-me o teu choro final. Não viste e tudo viste. Não sentiste e tudo sentiste. Portugal não morre porque reencarna, neste e naquele, e com este e aquele vai dizendo, ou com todos os outros que se lhe aproximam vão dizendo. Corpo sem alma nem corpo é... pó estrelar e pouco mais... toda a substância se une em ti. Único em voz e em esperança. Que posso dizer ou fazer sendo o país assim? Irregular e indeciso, branca de neve adormecida em castelo e caixão, qual deles de cristal, qual deles prisão? Consegui um monte que é um vale e um vale que é um monte. Que mais posso fazer desta torre que de tudo me cerca? Todos são parte de um poema já escrito. Reconheço todos os passos e todos eles em mim. Quase em tédio me envolvo se os leio dentro, fora de mim e ainda em outros traços... Deste-me uma folha branca, para que acabasse o poema que iniciaste... e agora que passos darei, que deuses evocarei, que sorte ou perdição esperam tudo o quanto ainda não sei? Não, nada se repete e, no entanto, tudo surge igualmente mas transformado e, transformado, pode ser diferente, e transformado pode ser concreto. Sei que queres o milagre de um poema acabado... sei que queres esse milagre, da luz, das estrelas e de outras coisas que, ao contrário,  não vi... mas se não vi? Sou a memória viva dos poetas e nem escrever os sei, apenas vivê-los por onde ninguém os vive.  Sou apenas a sua memória dos seus passos... e que são passos. Para que serve uma memória? Para que serve para que sirva?
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Lembro e não sei, sei e não lembro


 
 
Não recordo como se tivesse saudades tristes
alguns barcos navegando,
vapores de longos fumos junto às margens,
entre despedidas e festas de longos fatos,
e trajes negros e distintos, charutos e champagne.
Não recordo algumas memórias
como se precissase delas e sem elas não pudesse
achar tudo o que é futuro...
 
Do que não recordo, mas sei,
disso sim,  um barco de longe vindo,
junto das nuvens e com elas confundido,
de patamares de mármore quente,
de uma claridade consciente,
e essa temperatura mais doce que morna,
que não recordando amei.
 
Guardo impressões do mundo,
como se por aqui tivesse passado,
em passeios de tempo e campo,
em histórias colhidas num jardim de jasmim
e, só por isso, ao vê-lo nascer na calçada
recordo não serem ramos de alecrim,
estes que vejo aqui, e as flores, essas
possam ser canções que canto de cor,
quando perante o vento se inclinam, ainda assim...
 
(Todo o mundo é um cenário que vivi,
mudando a cena para outras de outra vida.
Quem sabe cenários de um amor sem fim...?)
 
Mas nada disso entra por esse outro de mim,
que de longe parece guardar um eco d’outro passado
dizendo-me em Saudade o que sei e onde nunca estive...
 
Entre o que recordo e o que sei,
há uma infinita ponte erguida no vento,
toldada pela neblina da eternidade,
brilha vagamente sem lembrar ser o que é:
esse estar dentro do abraço num certo tempo,
a festa, girando por entre os sóis, debruada a dança,
a lua aplaudindo quase silenciosa esse outro tempo,
e dele sabe, e dele não se lembra e dele não se cansa.

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 11 de maio de 2015

A escrita dos deuses




Vi os deuses a passar,
um a um e bem parecidos,
não no Olimpo longínquo,
mas em vestes de terra,
no teu rosto acontecidos.
Tal é o amor que sentem,
por esta terra verde e breve,
o meu corpo é o seu piso,
minha alma sua voz que dura.
Vi os deuses descompostos,
ou enlaivados de ternura,
no teu rosto transparentes,
que é de ventos e de aventuras.
Vi como se movem,
e sucedem no caminho,
no patamar do encontro,
entre escrevê-los e o destino.
Ora bebem, ora conversam,
ou se levantam em desatino
ou em passos de dama leves,
se aproximam se os sublinho.
Outros fogem num ápice,
se seu nome é acontecido,
outros disfarçam a carapaça,
enquanto caçam e estão a pino.
Vi tantos deles no caminho,
na dança que do cerne do ser parte,
enchendo os copos e os erguendo,
no ar das ideias soltas e ligeiras e
das gotas de luz diluindo as penas.
Outros trovejando na cabeceira,
prosas densas parando as naves,
outros não desejando tais conversas
cantavam seus feitos e sua sorte
dos seus amores e da  natureza,
e dos despojos desses encontros...
Vi-os nesse patamar estendido,
em mármore quente sobre a serra,
nem em cima nem em baixo,
mas no centro do sol
que o teu rosto encerra.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 9 de maio de 2015

De facto, a poesia...




A interpretação dos factos está muito mais sujeita à crítica do que a poesia ou o acto poético. Os factos confrontam-se com o tempo, e as pessoas com esses dois factores, a poesia e o acto poético, abrem-se ao tempo, integram-no e anulam-no e não há batalha entre as pessoas por causa da poesia ou do acto poético e quando a há, tanto a poesia como acto poético sofrem uma queda no domínio dos factos. Há, no entanto, o percurso híbrido, capaz de fazer suspender a respiração, a interpretação dos factos pela própria poesia. Aí, entra-se num domínio que pode ter tanto de pantanoso como de divino. Aí, ganha-se a força dos lutadores e a sensibilidade dos poetas e aí se prova o amor.


(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 8 de maio de 2015

"A rosa que te dei não foi criada num jardim" *



* Título retirado de um verso de José Cid


Não há nada para imitar num jardim,
nem essa rosa abrindo a norte,
nem a pétala que cai e sobe o monte,
nem o canteiro pelo musgo atravessado,
nem essa terra que na chuva foi.
Não há nada que se imite,
nem nada que seja arte
é só a realeza que lhe imprime
este e aquele tom e a sua sorte.
 
Passas e levas a flor,
e ao largo passaste e a levaste,
se te dão o ancinho sabes o que baste
para iludir a morte sem a levares.
 
Mas não há nada nesse jardim,
que não seja espelho e não consorte,
nem por dentro o levas
se te desvias do desvio da morte.
 
Não há nada para ser num jardim,
nem jardineiro, nem flor, nem arte,
enquanto ele te suprimir visível,
extingue-se a chama da sagrada ponte.
A arte é somente o silêncio
deixando ouvir a fonte.
 
Há um tipo de memória que é um fio finíssimo de verdade. É essa uma memória complexa,
sobretudo quando se quer manifestar como coisa real e fora do tempo. Esse tipo de memória usa como que de um voluntarismo próprio e tenta, a todo o custo, contrariar as falsas memórias e aparências da História. É complexa porque é o relâmpago de verdade que houve no cerne da inexactidão do tempo. É o “concreto” e “definido”, no que tem de absolutamente harmonioso na confusão das fífias da orquestra...
A relação com ela pode ser semelhante à relação que se tem com um anjo, nunca passiva (apenas para os místicos que suportam tudo, e crêem em tudo, até na ilusão como ilusão) , embora essa relação tenha o seu quê de místico, como detalhe necessário, que parece não se importar com o próprio tempo. Uma vez entendendo-a, e assimilando-a no que tem de tipicamente eterno, então poder-se-á unir tal integração (que é uma integração plena naquilo que é a intensão do acto) às palavras de Pessoa: “quando se é mestre já se está fora dela” [ordem].  Aí, a linguagem torna-se de facto uma escadaria com vários níveis, na qual, cada qual apreende o seu grau ou parcela da sua própria realidade, sendo que o que “está fora dela” entende todos os degraus como realidade, ao mesmo tempo que a escadaria se dissolve. É nessa altura, também, que o cálice é dado a beber. Expectantes, os discípulos, e só e apenas quando são discípulos, provam a sua própria missão, incorporando-a, como elementos complementares de um zodíaco.  É o brilho dos doze sóis brilhando na simultaneidade. Doze que são um. O reconhecimento do discipulado é também o reconhecimento do mestrado.  E não há semântica, sequer, que possa falar do inominável. As forças opostas/complementares tendem a tornar ainda mais forte o vinho dado a beber. E não é no vinho dado a beber que reside o sangue do mestre. É no acto de dar o vinho a beber que ele reside. Pedir para afastar o cálice não é negar o cálice, é pedir que o gesto mude. Nessa memória, o gesto é meticulosamente divino.
Caindo-se no erro de chamar destino a toda e qualquer coisa, sobretudo nos dias de hoje, isso parece ser uma espécie de leviandade com o próprio tempo...  a fórmula que se ouve em determinados círculos, de que cumprindo o destino se cumpre a vida, é, na maioria das vezes, a capa  e a espada do herói e apenas isso, nada tendo a ver com o destino, ou aquilo a que se deverá chamar destino que é, tão somente, quando se dá a manifestação desse fio intemporal embora, temporalmente, diluído no vinho. Daí à legitimação do próprio tempo vai um grande passo... pois o movimento deve ser pendular, da mesma forma que se colhe e semeia. A dessacralização contemporânea, que é apenas o bloqueamento do acesso a tal tempo mítico, que, ainda assim, permanece na sua força como um tempo, não se afastando da sua noção, ainda que intemporal, não é a-temporal... não permite sequer a escuta... É por aí que, para quem já está fora dela [ordem], possa haver um ataque de riso, ou de choro, tanto faz, na observação de um rito. A consciência do desfasamento torna-se dramática pela incapacidade de comunicação desse desfasamento a que se assiste. No entanto, e ainda assim, cada um prova o seu cálice, porque tudo o que é eterno funciona de alguma forma e esse cálice é mais ou menos saboroso conforme a quantidade de espírito no vinho dissolvido. Quanto menos estiver sujeito o sujeito à imitação, menos sujeito será e mais próximo está da prontidão.  Em última análise, neste zodíaco activo, os planetas possuem mais dois movimentos que estão praticamente invisíveis no mundo ilusório, pois aqui só os vemos girando sobre si próprios e em torno de um centro de forma elíptica. A forma elíptica permite, no entanto, a percepção de um terceiro movimento, de afastamento maior ou menor do centro, e o outro que falta nesta quadratura visível, mas que é visível no invisível, é o ascendente e descendente, e quantas vezes este movimento é reintegrado nos sonhos... possuindo os sonhos a capacidade de repor determinados “valores” ou “aspectos” que se encontram invisíveis.
 
A iniciação é, de facto, um conjunto de “estados”, daí que a quantidade de ritos seja absolutamente irrelevante para que ela suceda. Até porque o rito, na sua intensão, é tão rito que nem de rito necessita. Apenas de intensão. A intensidade é uma resposta, que pode vir ou não, na sua liberdade, não é uma consequência, porque a liberdade é livre até da consequência. A intensidade é a intensão expandida. Como a não-palavra é a palavra no seu esplendor.
(Cynthia Guimarães Taveira)

O sorriso da Palavra





Serei vale, sombra e solidão,
serei palavras completas demais,
exaustas em si,
nas quais, encontrais o desejo,
o apelo, a asa d’ouro que cobiçais...
 
Serei vale e discussão,
sombra das tristes certezas,
solidão das almas sem memória,
Adamastor de impérios desistidos...
 
Potentemente fazendo tremer a vossa ira,
poderão, até, puxar os cabelos,
revolver-se naquela náusea nocturna
do horror do sabor a nada,
poderão ver vivo o vosso inferno,
erguido diante de vós...
 
Vale, sombra e solidão, sentir-se-ão
tristes, de farrapos arrastados nas ideias,
tontos aplaudindo o vosso circo,
esguichando assombros
de quem teme a criação que não for
o apelo, a asa d’ouro que cobiçam...
 
(Oh, pequenos deuses somos
em palavras menores,
e grandes se falamos
do esplendor, da glória, da luz)
 
Revolve-se-vos as entranhas,
entre o acordo e o desacordo,
entre o juiz e o arguido,
entre vós e essa balança,
à qual não dão um pontapé
Por tudo tentar em vão...
 
Toda a verdade tem de vir,
mas que não venha
em fúria escarlate, ou venha,
mas que não seja ruiva, ou seja,
mas que não tenha sardas, ou tenha,
mas que não levante a mão esquerda
ou a tenha erguida
como prova da capaz imensidão do gesto...
 
Ou então, que venha  mansa ou não,
cuidadosa, e seja Beatriz,
assim, leve, ligeira, ou não,
de olhos redondos, de criança, ou não,
que ela não levante a voz, ou grite,
para que a verdade seja mais mansa, ou alta,
mas se pague com a morte...
 
Que venha pura e inocente, ou não,
ainda que magoe no dizer, sempre,
ainda que seja vale, sombra e solidão,
ainda que vos faça morrer...
 
Nada é assim, vos digo,
não há poeta que não omita!
Todos eles cantam e são flautistas,
todos dão a imagem que imaginam que imaginam,
todos eles enganam para poderem segredar!
 
Até no vómito, e nas palavras duras,
até nos escombros de uma guerra,
até nas manchas que expõem,
são o engano da palavra!
 
Toda a realidade é essa e mais um pouco,
toda a verdade desnuda,
só ao ouvido é dita...
 
Todas as palavras são vestes,
daquilo de que vós,
se se aproximarem,
e, ao despirem,
não acreditam.
 
Só ao ouvido
e sem som,
nesse silêncio
de cada um,
longe de cada um,
no distante horizonte,
que é só memória e mais...
é dita aquela,
que ao cair,
acesa e erguida,
vos dá o dom, ou não.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Aos portugueses:



Se não cantarmos o mar, ele não nos dá glória.


(Cynthia Guimarães Taveira)

Pequena diferença




Entre ti e essa onda do mar,
não há diferença nelas,
apenas a pequena que há,
no que trazes dos navios,
no que trazes na memória,
nos destroços de naufrágios,
nas horas vingadoras,
e noutras vigilantes,
e em todos os sonhos em mar alto,
e nas estrelas dos navegantes,
e nas promessas das ilhas tidas.
Entre ti e essa onda
que de tão cristalina e pura,
límpida de nada e de ar,
lisa, sem imagem, nem memória,
só sal, só vida, só luz,
deixo que se chegue a mim,
e me envolva em espuma,
nesse azul de todos eles,
sucedendo-te em transparências.
Entre ti e essa onda,
dista só essa diferença que não sabes,
e por, não saberes que a trazes,
sem dar por isso, trazendo-a, a fazes.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Só lá



Antes tivesse sido uma visão,
uma miragem,
uma alternativa à realidade.
Antes tivesse sido uma revelação,
mas nada fui,
nada, como a aparente vacuidade
transparecendo de um lago parado
 
Movia-me no silêncio,
movia-me no silêncio,
que nunca ouviste.
Movia-me e via-te,
espreitando,
o insuspeitado por ti.
 
Movia-me no silêncio,
sem esperar sequer,
via-te no pormenor,
acontecendo nas tuas células...
de quem viva em ti, para além de ti.
 
Via a involuntária mão estendia,
o abismal raciocínio toldando-te,
o infernal monstro cercando-te.
 
Nada poderei dizer,
porque  foi no silêncio,
do qual nunca soubeste,
nem nunca entraste,
nem pressentiste,
nem te arrepiou, 
que te vi...
E nele não corre nem uma palavra,
apenas a brisa do sentido de tudo isto,
apenas o encontro de tudo isto,
apenas o inacreditável segredo
que troco com Deus e ele comigo...
 
Antes fosses a miragem,
antes fosses a ilusão,
antes fosses a revelação súbita,
da graça da flor numa Primavera qualquer...
mas nada disso és
neste silêncio que te acolhe,
nada de irreal transportas,
nada de insubstancial,
nada de visível,
não tens nada do mundo,
porque não és do mundo,
és desse segredo dito ao ouvido,
és dessa tão próxima alma,
que colhes nas brumas ocultas
toldando a tua própria alma...
 
És o que entende,
sem saberes que és entendido,
és um secreto compenetramento,
além da oração,
és a recolha como gesto,
e nada mais podes pressentir,
se nada dessa brisa apalavrada,
no espanto daquele outro vivente em ti ,
sabes ou sequer intuis,
e não conheces,
apenas o representas,
não crendo nele,
e sendo ele...
 
(és o que já lá estando,
não está lá ainda,
que, no meu silêncio sei,
não estar já lá...)
 
Entre nós,
um abismo feito de ascensão.
Entre nós,
cada movimento
é uma dança estrelar.
Entre nós,
o espaço move-se na diferença
entre um passo de magia e a magia.
 
És a margem
do rio que sou,
pensando seres o rio que sou...
escapo-te por entre os dedos,
quando, qual narciso,
te vês transparente.
Viajo-te como um rio escorrendo
por ti, margem eterna,
como a própria vida,
sempre paralelo ao mar
e só lá, depois dessa duna
em pensamento atravessada
e nunca encontrada,
no mar feito gota a gota
a cada toque da tua mão,
onde não há navios
por não haver ilusões,
onde as tempestades,
são apenas o suporte
das nossas lágrimas,
o pôr-do-sol,
é onde a nossa luz se deita,
e as aves são a paz que lhes demos,
só lá ,onde nuvens imensas,
são o passo de magia para a magia,
vivente para além delas,
só lá, onde não há manto, nem espada
em guarda, te aguardo, guardando-te.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 3 de maio de 2015

Pássaro de madeira


Há como que um espaço no tempo,
pequeno como um segredo,
um sítio que contém
a resolução no apropriado templo.
Ainda que viva no tempo,
é fora dele que vislumbra,
o momento do acrescento da verdade
a um certo engano que perdura.
É como um coração que bate,
nos escombros da desventura,
só aquele que o mesmo sonda,
aguarda no templo a investidura.
Há como que um pilar,
que não oscila, nem permite,
que as voltas do tempo ditem
nem uma, nem toda história escrita.
Dizem-nos que o destino se estende,
como janelas abertas por inquilinos,
de meia em meia hora acordam,
sem que nunca se saiba toda a rotina...
É como a folha verde,
a despontar ao santo sol,
o sol é certo e não desdiz
a semente pelo vento colhida.
Cruzam-se as vontades,
sem que haja vontade certa,
e há no entanto o sinal
de que essa cruz é feita.
Se atentos, mais do que alerta
formos lendo a poesia,
num lânguido canapé,
escuta-se a melodia antes do canto...
Se se sai do quotidiano dia
num ligeiro voo imprevisto,
inscreve-se o desabafo
que o vento teve em solo fixo.
Limita-te a ficar, então,
de braços cruzados assistindo
ao fátuo e farto sabor do tempo
que num certo instante ,em deslize,
se descai e diz: “de mim não sei, e nem existo.”


(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 2 de maio de 2015

Magia



Passo, sem deixar passos na areia,
não porque seja puro espírito,
mas porque a areia não é pura matéria,
quando pensada e reinventada,
na insubmissão da palavra às leis da física.
 
Passo pela palavra porque a sei,
como a graça de uma garça,
que uma vez dita e sentida
nas fibras do coração,
passa a etapa, larga e total,
daquela outra que vem,
no silêncio da compreensão.
 
Passa então a palavra por nós,
e uma vez dita, passando,
por essa outra que vem,
no silêncio da compreensão,
torna-se verdade e acredita,
que de toda a matéria que há,
nenhuma é mais real.


(Cynthia Guimarães Taveira)