sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Nave dos loucos




Visitado o mistério,
como negá-lo?
E, mais, mais ainda,
como explicá-lo,
sem que seja dando-te a mão?
Como o alcanças
se não tiveres o coração na boca,
e a boca no coração?
Se não tiveres as veias-seiva,
salientes de emoção?
Se não pontapeares as pedras
no caminho que não escolhes?
Se não te inflamas
de ciúme,
de remorso,
de solidão,
de terror dela,
e da falta dela?
Se não correres?
Se não ficares em chuva?
Se não fores tu a incomodar o vento?
Se não tiveres a urgência abrupta
de saber tudo perdido num ápice
e num ágape ?
Se não permitires
o não-amor?
Se não exigires igual amor?
Se não te diluíres num beijo?
Se não pensares por pensares demais?
Se não chamares a atenção
para o que os teus olhos vêem?
Se não te desfizeres em dor?
Se não te descobrires na alegria?
Se não olhares os olhos,
prolongadamente,
indo ao fundo deles?
Se não fores todo o fogo
na ponta dos dedos?
Se não sentires
a loucura que é a saudade?
Porque a saudade é só loucura.
Se não quiseres,
sem saberes que queres,
Um voo no infinito?
Um rasgar os céus?
Sem que o saibas
que o estás a rasgar
com a tua alegria
Encharcada em êxtase,
a abarrotar em céu?
Sem tudo isto,
como queres lá chegar?
Quando não há outro caminho,
nem outra flor
que te possa mostrar
a agitação das pétalas?
Sem tudo isto,
nada tenho para te dizer
senão  palavras
repetidas em livros, 
paisagens das viagens,
tão nas margens
do que poderia ser
a nave dos loucos,
atravessando o céu,
capaz de regressar
mais vivo d'outra vida.

(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

L'Esprit



Sem laços visíveis reconheço-te, no entanto, nas gargalhadas soltas, vanguardas d’alma, elementos despertos subitamente reunidos num sentido único capaz de um impacto em choque que vibra na cabeça lançada para trás, obrigando ao riso, para além da vontade.
 
L’Esprit, como mais do que um estado, mas como um argumento escrito em movimento, numa história desenrolada, com apontamentos, inconscientes, espontâneos, em gestos sucedâneos, desvendando sentidos, ou rotas, no improviso da melodia que nasce,  mais do que jazz, melodia em surdina, constituída por gestos e pensamentos, reclamando uma mensagem ou resposta, desde o princípio.
 
L’Esprit, que é também poesia em movimento, chocalhando dúvidas e sentimentos, mas “amansada” pela suavidade da sabedoria, como um maestro invisível, dirigindo sem dirigir, sabendo de antemão que há sensibilidade e inteligência para apreender, interiorizar e sentir, numa abertura de todo o ser à sua voz.
 
L’esprit, desperto e alerta, numa atenção aguda, calada, muda, imóvel, mas segura no gesto, pequeno, pequeníssimo, que inicia, inicia de novo e de novo, em frente ao Ser, caminhado à sua frente, e ao seu lado e atrás dele, não havendo forma, nem fuga, nem permissão interna para não o escutar.
 
L’Esprit, que rendilha e enrodilha, e desenrodilha em rendas e punhos, e palácios e vénias de lições, em presenças e ausências, como as rendas, rendilhadas se permitem, navegar assim entre o cheio e o vazio, num barroco flutuante, admitindo o clássico, por vezes, como pontos de paz, nas curvas agitadas, das almas desencontradas, e encontradas, de novo, nos nós, nas esquinas, nos acasos demasiado sofisticados...

L’Esprit, da cor, do cheiro, dos livros imanando uma saudade aromática, uma nostalgia optimista porque reminiscência mais do que sobreposta com o presente, relevada no presente como âmago da vida.

L’Esprit, de cujo álcool é apenas símbolo, como um vapor essencial que se espalha na tontura dos sentidos, sensíveis e extra-sensíveis e que lembra e re-acorda no paradoxo do torpor do gesto e que lembra e desperta para a essência essencial no que tem de extraordinário, no mais corriqueiro dos gestos, no mais inocente dos olhares, no mais genuíno espanto, na mais travessa gargalhada, no mais extravagante salto do saltimbanco...

L’Esprit, que é mais do que religião ou paixão, por não se fixar n'algum tempo que seja, pairando acima d’elas, numa presença discreta, quase sem querer encontrada, numa amizade companheira, num eclipse impossível, feito apenas de luz sem sombra na transparência dos corpos em derrota voluntária.

L’Esprit, ele mesmo, sempre ele mesmo, acercando o ser, encurralando-o, procurando a loucura d’ele e tornando-a sã nos seus braços.

L’Esprit, assim, só é francês... e porém, porém...


(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Naus várias...



Com Camões, habituámo-nos à ideia, ou mais,  para alguns, verbalizámos interiormente, ou ainda mais, para tantos outros, afastámos a ideia, definitivamente, de um Portugal ausente de nós e ausente de sentido no mundo e de um mundo sem sentido em nós. Fiel d’amor, Camões, espelha-se e deixa que Portugal se espelhe nele, em suas navegações-namoros, em dupla espiral de conhecimento, num movimento a dois tempos simultâneos, o do corpo e o da alma,  em direcção à ilha dos amores, acercada do espírito, dando a resposta mitológica ao desenrolar da História, pois se o mito, é comumente tido como a base, a fundação a partir do qual se dá o movimento da História, ele é, também, e Camões demonstra-o bem, um resultado desse mesmo movimento, num fim e princípio que se tocam, não por seus arquétipos constituintes, mas sim pelo facto de novos arquétipos, no sentido platónico serem assimilados, desvendados, apreendidos e conhecidos, ou seja, a sacralidade da História resulta numa legitimação instantânea, capaz de, não apenas de se resolver a si própria, como também, lançar no futuro, novos alicerces sagrados, novas fundações, novas tábuas para novas caravelas de maneira a que, de algum modo, e por via paradoxal, a eternidade seja mantida.

Cristalizada a História no texto adquire, assim,  centelhas iluminadoras de horizontes em seu redor, em tempos diversos, passado, presente e futuro entendidos, segundo as palavras de Camões, por via do amor, este como meio de conhecimento. É pela voz poética vibrando na palavra como chama viva e transmutadora que a escatologia lusa ganha forma como consequência natural e sobrenatural do duplo movimento do corpo e da alma, não sendo esta, exclusivamente, o resultado do convívio das três religiões dos Livros – e não do Livro – como também, o resultado de uma demanda efectuada no espaço e no tempo em direcção ao centro solar (seja a Ilha dos bem-aventurados, seja o Oriente, nascente do sol), pontuada pela figura feminina que vai esclarecendo a autognose do poeta e indicando, igualmente, uma espécie de salvação prometida como alimento espiritual na fusão do ser e do Amor.

Escatologia lusa e autognose como vias capazes de manter o ciclo, cumprir o destino e tornando-o consciente e afirmativo de uma consciência da dinâmica da eternidade do mundo e adquirindo, esta consciência, uma nova forma de expressão como percepção apurada e retirada do âmago da potência divina que sustenta essa mesma eternidade, não apenas como imagem rarefeita e parcelar, ainda, como meio céu antevisto, na qual a máquina do mundo, em alegria circular,  espelha o ciclo (e não o círculo – esse como centro, ou ilha concava, ou estrela única, ou Mistérios dos Mistérios, muito para lá da Imago ou de toda e qualquer forma), sem espelhar ainda o contexto do próprio ciclo, mas também, inserindo-o  num contexto maior, no qual, não se anulando os ciclos, se diluem estes, porém, no sentido que há em todas as coisas e que, por via mística, se traduz na luminosidade em movimento, contemplação oferecida a Vasco da Gama.

Com Fernando Pessoa, habituámo-nos à ideia, ou mais, para alguns, revimo-nos interiormente, ou ainda mais para tantos outros, afastámos definitivamente a ideia, da não complexidade do ser, e todo o movimento, que em Camões foi de corpo e alma, passa, com Fernando Pessoa, pela interiorização: a alma do homem-mundo ao alcance do Espírito, como se, por via destes dois poetas, se passasse do circulo mais externo, até outro, progressivamente mais interno, num aprofundamento da autognose, tanto do ser, como da pátria, como do mundo e do universo, aqui, já ambos os lados do céu, o cíclico e o escatológico, perfeitamente integrados no plano do ser que se auto-desvenda na sua face mais interna, os deuses-arquétipos de Camões, bem como as suas mulheres musas, faces múltiplas de uma só, em Fernando Pessoa são substituídos por heterónimos-condutas e condutores da alma numa espécie de compensação existentes no movimento pendular da alma.

Essa compensação, no caso português, é escutada e cantada pela voz dos poetas que são sempre o apelo ao Verdadeiro Homem a cumprir-se, o que nos remete, inevitavelmente, para o futuro, ou seja, para o terceiro movimento do pendulo, invisível, mas o verdadeiro motor arcaico de toda a dinâmica escatológica: a intersecção numa primeira fase, e a transmutação numa segunda fase, do corpo em matéria subtil, de acordo com os ciclos, ou Idades do mundo, num cumprir sem se cumprir, como a respiração natural que se auto-anula, quando se torna perfeita sintonia, por mais não ser necessária, regresso ao interior do circulo, translúcido, lugar de paz e transparência, tendente à anulação de qualquer imagem.  Neste sentido Fernando Pessoa lembra: “que o que amámos é o que desconhecemos, que o que sonhámos é o que conhecíamos”, e assim, tenha apontado o terceiro movimento no qual o não tempo se torna manifesto e reconhecível, tomando o sonho o lugar da realidade para que o Real tome o lugar do sonho.


(Cynthia Guimarães Taveira)

Fusão


A fusão

 Cada um é para o que nasce
Neste mundo de ilusão
Uns de pincel em riste
Outros de vassoura na mão
Na volta do ser existe
Um anjo que não perturba
Umas vezes anda no céu livre
Outras difarçado na turba
Altas vozes reclamam
Posição, destaque e assinatura
Mas mais altas ainda
Sabem do sopro do Espírito
E do poema que perturba
De nada nos serve ter
Pomares, hortas
Oficinas e profetas
Se não ousarmos ser
Só teremos as horas tortas
E quem ser será ele que nos assiste
E nos visita em cada praça?
É o negro lodo do cais?
Que em gesto nos embaraça
Ou são as colunas de céu
Erguidas de saber e pela graça?
Vivemos a recordar
Caravelas e ninfas encalhadas
E não nos atrevemos ao voo
Em ameias de asas dadas
Desde castelos no ar
Até  vígilias prometidas
Entre os dois fica o silêncio
Nas velas e festas perdidas
Porquê este luto de xaile?
Esta sombra que nos desmancha?
Quando temos tantas cores à espera
Num horizonte de verde-esperança?
Cada árvore por nós plantada
E cada peixe por nós pescado
É um Verbo não desdenhado
Uma arte de um mundo a vir
Onde não há anjo que não queira
Mesmo em dúvida poder servir
Na raiz do verbo ir
Há o sonho de subir
Seja nos atalhos calculados
Ou em saltos loucos e maltratados
Quando invejas, quando exiges
Tudo deixas por cumprir
Quando sorris para o amigo
Cantas alto o seu florir
Inventas o tom com que se escreve
Essa música do sol que antecede
Todo céu mesmo que breve
Marca a tua presença, o teu ser, o teu sentir
Trocas o passo a dançar
No mercados que te são estranhos
E esqueces  as feiras abandonadas
Os regateios e seus engenhos
Breve laço um dia feito
Entre Portugal e seu anjo
Mas feito com tal amor
Que não há sorte nem vontade
Que o desfaça em desengano
E quando cruzas os braços
Em espera e esperança
Há uma luz que se acende
E uma aventura que se lança
No movimento escondido
Desse uno gesto de temperança
Pois na sabedoria do paradoxo
Essa máscara inerte e parada
É o avesso da acção
Pelo céu atravessada
Onde só os anjos escutam
O verdadeiro mister da oração
Se por fora és perdição
Na canção desafinada
Por dentro és em verdade
Toda a luz do alto e dançada.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Talvez...

Talvez te alegres meu anjo
quando me alegro,
e nas voltas das ondas
em que quase me afogas
procures o meu temor,
o meu erro
para que possas arrancar
alegria do mais interno ser.
Talvez saibas o passado
como aves que se soltam.
Talvez queiras que te ame,
meu anjo,
como tu a mim,
e cries a distância
que nos distingue
para que possa
procurar-te
na solidão
fazendo-te
viver
dentro dela
num abraço
sem
fim

(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Encontro com "Um Poeta" de Dalila Pereira da Costa


Início

Este trabalho visa a crítica de um texto de Dalila Pereira da Costa integrando o livro A Nova Atlântida (Ed. Lello & Irmão, Porto, 1977, pág. 334),  datado de 15 de Março de 1972, com o título Um Poeta.
A obra de Dalila Pereira da Costa é pautada pela tentativa de um estudo aprofundado das raízes e emanações míticas, religiosas, históricas, filosóficas, arqueológicas, psicológicas, literárias, místicas e poéticas da cultura portuguesa.
Possuindo uma estilo muito característico, (a autora é identificável facilmente pela primeira leitura de algumas linhas de um texto seu ) utiliza vocábulos recorrentes, tais como “vero”, “alma pátria”, “segredo”, “rebentar”, “interior”, “assunção”, “redenção”, “esotérico”, “místico”, isto para só referir alguns; o seu modelo de análise (se assim pode ser chamado, uma vez que é muito difícil encontrar uma estrutura linear nas suas palavras), consiste num constante serpentear temático, saltando facilmente de uma perspectiva histórica para uma perspectiva mítica, tocando no mesmo texto diversos aspectos num percurso feito por associações de pensamento, sensibilidades, palavras que sugerem outras.
Mas, acima de tudo, a sua originalidade consiste em utilizar a sua experiência pessoal, mística e visionária, como luz que ilumina as suas análises. Frequentemente, essa experiência procura revelar o “interior” dos movimentos da História, o lado invisível dos dados arqueológicos apenas sugestivos, as “intenções” internas dos poetas, e ainda os sinais que as várias perspectivas (histórica, filosófica, mítica, etc.) deixam no seu percurso daquilo que é próprio do misticismo: a procura de um outro mundo, de um mundo paralelo a este, divino,  ao qual apenas se pode aceder directamente por via do êxtase místico  e, indirectamente, pela via poética.
Poder-se-á dizer, então, que para elaborar o tipo de análise que Dalila Pereira da Costa faz é necessário, primeiro, possuir uma vivência mística interior e interna e, só em seguida, com uma experiência desse outro mundo, tentar captar, nos indícios materiais  deste mundo, particularidades, partículas, centelhas, de um mundo espiritual.
Será essa a razão pela qual a autora, segundo as suas próprias palavras, nos confessou ter começado a escrever apenas aos cinquenta e seis anos de idade. Até aí, toda uma fase de experimentação mística, toda uma leitura de obras-chave na sua formação, toda uma maturação do pensamento, da reflexão e da experiência visionária terá sido necessária para que os textos começassem a surgir, um após outro, textos esses que, segundo as palavras da autora, são elaborados com  um alto sentido de missão.

O Poeta, a Vida e a Literatura

“Em face dum poeta, o que urgirá é vê-lo para além do campo da mera literatura” . O texto “Um Poeta” abre com esta frase que, logo de imediato, retira o poeta de um qualquer contexto literário, vendo o poeta para além da “mera”, literatura. Colocámos aspas em “mera”, porque aqui a literatura aparece como algo que não é suficiente para a compreensão de um poeta. A intenção da autora é a de descer até as profundezas da origem do poeta: “…as sua raízes, as raízes da sua criação (…)  não penetram nesse solo superficial”. Insuficiente, superficial, a literatura não terá os instrumentos necessários que visam a penetração da própria Vida, essa sim como “fonte escondida” de onde brotam tanto a poesia como o poeta, servirá antes e apenas como “…um anteparo, protector, entre a vida e o homem. Criando uma distância, zona de segurança.”.
A Literatura surge apenas como mediadora, entre a Vida, (palavra escrita no primeiro parágrafo do texto com caixa alta), e o poeta e ainda o falso poeta que é o leitor. A literatura em si, desligada dessa Vida é “fantasmal”, uma ilusão lúdica, artificial, um mero jogo que finge que é a própria vida sem a ser, ela é em si e por si, quando assim desligada, oca, vivendo em corte ontológico com o real, ela não vive, de facto, é “silêncio e vazio”, envolvida num halo de “negro resplendor“, ela é morta e terá como acção apenas o encaminhar o poeta e o leitor para um “adormecimento”. O adormecimento, segundo uma perspectiva mística, é o não estar desperto para a fonte e, essa fonte, tem sempre a sua origem na Vida. A caixa alta, aparece como indicador de que a Vida tem, por sua vez, origem divina. A utilidade da Literatura será então como que um “amortecedor” do encontro entre o poeta e essa fonte, encontro esse, que é sempre “um contacto tremendo, estreme”, perigoso: toda a aproximação ao sagrado é, de alguma forma, um risco porque se entra em contacto com um mundo essencial, pleno de potências e daí as proibições de “roubar o fogo aos deuses” e mais ainda “roubar o fogo dos deuses”, sendo possível apreender (como segundo sentido nas palavras de Dalila Pereira da Costa) a poesia como acto transgressivo, no sentido em que as fronteiras do mundo visível são ultrapassadas até ao limite do não conhecido ainda, do ainda não visível, lugar de onde a poesia espera ser resgatada, nesse acto heróico do poeta que supera o risco trazendo o troféu intacto das esferas celestes. Será um acto heróico porque o perigo é vencido, pois o transcendente move-se num plano que, embora sendo subtil, sem espaço ou tempo, concentra, no entanto, a força dos primórdios, a força integral a partir da qual o mundo visível, concreto e natural se torna imanente, como a força que teria um parto constante.
É possível, portanto, encontrar o poeta para lá da literatura, sendo as suas raízes as de uma árvore invertida: a profundidade à qual conseguimos descer no seu entendimento é equivalente à ascensão a um outro mundo onde reside a verdadeira vida e da qual recolhe o poeta uma “vibração” que é também um “fervor” e no qual se dá uma renovação tanto do poeta como do leitor, porque a criação poética se funde com a própria vida, tendo por isso a capacidade da experiência da ressurreição. Nesse sentido, a poesia aparece como acto sagrado conduzindo a uma dinâmica característica do mundo celeste: a transmutação.
O poema, uma vez tendo recolhido parte de uma sobrenatureza, torna-se uma espécie de “acumulador”, “uma reserva” de Vida. O valor de um poema não está no seu contexto dentro da literatura nem reside no facto de poder ser literatura, nem tão pouco ao nível do pensamento, ele está na vivência que permite acontecer, vivência essa que se estabelece num “Contacto que é acto de viver e conhecer: onde os dois não se diferenciam”. Essa origem do poema num mundo sobrenatural torna-o “intransigente”, inquebrável, de um corpo só e “resplandecente”.
Curioso é o acto de criação do poema, vindo de uma espécie de silêncio, de nada, de vazio, de trevas, de despojamento, ele surge tal e qual o êxtase místico “quando das profundas das trevas ele se ergue em face do poeta: ser vivo e vivificante” e, por isso, transportando dentro de si uma das categorias do plano sagrado: a imortalidade.

O Leitor

O leitor, ou falso poeta, nas palavras de Dalila Pereira da Costa, é mais do que um breve reflexo do poema. Será um ser vivo que se aproxima de um outro ser vivo, o poema, e daí que haja, por sua parte, “uma dificuldade de aproximação”, pois se o poema transporta em si essa centelha primeva de Vida, assim o leitor é também um ser espiritual; são duas naturezas que se encontram, e, nesse encontro, no primeiro embate, há como que uma “voluntária ignorância, ou negação” por parte do leitor que se recusa perante “uma manifestação excessivamente forte da vida”, pois ele traz em si, para além dessa espiritualidade que lhe é inerente, “essa carga que todo o fraco mortal sentirá como demasiado”. A literatura estabelecerá então a ponte que permite a comunicação entre leitor e poema, o leitor passa pela literatura mas nela não se fixa, porque ele é apenas “um simile”, protegendo-o e libertando-o de uma potente “força de criação”.
A leitura de um poema, como vivência que deve ser, não é um acto de “gosto, com prazer ou deleite de evasão”, isso aparecerá como pele superficial, mera noção estética que se encontra ainda num mundo e num plano demasiado humano; essa vivência é afinal uma purificação, “para limpar”, havendo uma espécie de mergulho baptismal “no seio da própria vida”. Dá-se um regresso do leitor ao mundo arquetipal na leitura do poema e nesse sentido, como os místicos, ele participa e vive com todo o corpo num “gesto brusco e violento”,  numa purificação que é também um despertar; o ser total, em entrega, em fuga a “esse perigo constante que jaz sempre nesse nosso corpo, de sono, diluição ou desistência”, obedece de alguma forma ao apelo do poeta: o de uma “vigilância” constante. Lembramos aqui que a palavra vigilância concorda, harmoniza-se com a palavra vigília. A vigília está ligada à noite, quando tudo dorme ela acontece numa tentativa de não se perder a luz, o dia. A vigília é um esforço mas é também uma espécie de suspensão do tempo e da respiração, ela é uma expectação, é esse vazio silencioso que permite a manifestação do divino, como uma tela em branco que espera a pincelada. A vigília é um estado de preparação que permite a recepção do inesperado, um paradoxo, portanto. No caso do poeta, esse inesperado/esperado é o poema que lhe “acontece” em vida. Não é em vão que Fernando Pessoa tenha escrito: “aconteceu-me um poema”; no caso do leitor, poder-se-á dizer, que lhe aconteceu a leitura de um poema.
Numa tentativa de aproximação à obra de Fernando pessoa, Dalila Pereira da Costa, como leitora, confessa alguma recusa na sua análise: “não se quis levar demasiado longe a pesquisa das estruturas simbólicas aparentes na sua poesia”. Estruturas, esquemas, aparecerão na análise como uma “redução”, uma “limitação” à “liberdade espiritual do poeta”. A autora/leitora acerca-se da obra, não numa tentativa de arrancar as estruturas traduzidas numa espécie de semântica matemática simbólica, assim assimiladas à morte por autópsia dos poemas, mas acerca-se da obra numa tentativa de acompanhamento dinâmico, ritmando as suas palavras com as do poeta, tornando a interpretação numa força de vida, unindo, a dois tempos, a pulsão da poesia, como ser vivo, e a sua leitura num tempo sagrado, ou seja num Tempo Forte, e isto porque, no caso da obra pessoana, o encontro se traduz por vias sentimentais ou veias de sangue dinâmico que corre e percorre todo o corpo (do poema, do poeta e do leitor)  e não apenas por via intelectual: “Quantas vezes não nos sentimos culpados em face de uma obra como em face de um ser que está perante nós, sem defesa possível. Passível de todas as agressões…”.
A hermenêutica por parte do leitor pode aproximar-se assim, também ela, de um acto criativo; o leitor, participando nessa fonte de Vida que é o poema, acompanhando-o, vivendo-o por dentro, sentindo-o por todo o corpo, de alguma forma recria-o,  pois se “toda a poesia é uma força de ressurreição”, também o leitor obriga à ressurreição do poema na sua leitura, numa fusão de vontades, em mútua influência e afluência criativa.

O Poeta, a História e a Nação

Necessário será, para Dalila Pereira da Costa, ver a obra de Fernando Pessoa “dentro da sua pátria, como uma das criações mais significativas desta”. E, aqui, mais uma fusão, mais umas núpcias, desta vez não entre um outro mundo e o poeta, mas entre o poeta e a sua pátria; a criação da obra poética por parte do poeta é igualmente uma criação da sua própria pátria. A pátria, fundindo-se com o poeta é, também ela, um ser criativo reunindo no poeta as palavras/força  pelas quais se faz ouvir, porque o poeta “não é a própria Força, mas como o centro onde ela se reúne e adensa, cresce e se eleva - em manifestação”.  O poeta é tão somente um veículo para uma manifestação, o centro que reúne as forças vitais que compõem a alma de uma pátria, a voz material das palavras que melhor traduzem a composição invisível desse corpo invisível. Pátria e poeta confundem-se e, para o entendimento de ambos, “será necessário que nos debrucemos, de forma atenta, e profunda, e amante, sobre o aspecto interior e espiritual dos seus poetas, para neles e por eles tentar captar um certo «filum», ou rede condutora e organizadora da alma dessa nação”.
A forma mais imediata pela qual a nação se manifesta é pela sua  História, numa linguagem que, à primeira vista, parecerá “puramente explicita” mas que, e mais uma vez, por ser esta a pele superficial de um corpo, obrigará à questão da existência ou não de uma linguagem nela inscrita “recôndita e cifrada”, só passível de conhecimento por via de uma comunhão entre perspectivas que se completam: “através duma criação visionária (então necessariamente pessoal, pela imaginação, mas não subjectiva), tal como a de Garcia de Resende ou de Oliveira Martins, completando assim a duma repetição documental que se quer estrita e objectivamente realista e impessoal, como a de Damião de Góis ou Alexandre Herculano?”
A História de Portugal, assim recontada, surgir-nos-á à imagem e semelhança da poesia, também ela animada por uma força vital e dinâmica mas cuja seiva será a própria nação, esta como identidade cultural e espiritual manifestando-se ao longo do tempo por via de um diversidade de acontecimentos que, embora diversos, revelam um “estilo”, estilo esse só possível de existir por via de uma certa perenidade cultural que “é como uma teima, serena e desesperada”. Serão eles, provavelmente, alguns “mitemas”, para usar a expressão de Gilbert Durand, como a saudade, o mito do Encoberto, o Culto do Espírito Santo, as Descobertas, o milagre das rosas da Rainha Santa, etc. Mitemas que funcionam como força motriz, anímica,  razões e emoções inconscientes que promovem, fazem mover as acções conscientes de um povo. Os acontecimentos históricos não aparecem, para Dalila Pereira da Costa, como compositores autónomos uns dos outros, indiferenciados, ou, de alguma forma aleatórios, mas sim, mais do que compositores, esses acontecimentos, demonstram uma “unidade, como ser vivo: que através da  sua história, se vai realizando, ou desintegrando -- salvando-se ou perdendo-se, sucessivamente e intermitentemente”.
A nação salva-se ou perde-se e isto porque é um ser vivo, e também vivificante naquilo que possui de universal. Porque se o percurso humano, de corpo, alma e espírito, é um percurso que, em princípio, se dirige ao Real, (mais uma vez a caixa alta indicando que esse Real se situa na esfera do outro mundo), e sendo que esse Real  (revelado pelo poeta) é alcançável por parte de uma nação através de acções que visam a santidade, o desenlace desejado será o da redenção dentro de uma perspectiva ou vivência mística na qual se identifica “o Real e o Santo”.
Disse acima que a nação será viva mas também vivificante, sendo por isso universal. Essa universalidade terá  raiz num dos mitemas nacionais, o das Descobertas. Porque, ao procuramos uma das matrizes que regem a obra de Dalila Pereira da Costa, encontramos as Descobertas como forças motrizes da universalidade. Se o poeta, a poesia, o leitor, a história e a nação são mais do que simples pedaços de matéria intelectualizável, também as Descobertas se podem encontrar para além do plano terrestre, constituindo esse plano apenas a contra-face de um plano espiritual, no qual elas teriam acontecido como consequência de “desígnios superiores”, os mesmos que se ocultam nas verdadeiras razões da escrita de uma obra, quer a Pessoana, quer a de Dalila. A esses desígnios superiores apelida a autora e também Fernando Pessoa, de Missão. Portugal, com o seu corpo, alma e espírito teria, assim, uma missão e essa missão estaria traduzida no movimento das Descobertas como dupla viagem: a descoberta do Real e a descoberta da Realidade. A realidade terrestre seria apenas um espelho da Realidade celeste, a descoberta de uma era a descoberta de outra, pois foi no mar que “Deus espelhou o céu” para usar a expressão de Pessoa.
A obra pessoana, como a interpreta Dalila Pereira da Costa, é afinal uma aventura espiritual decalcada da aventura espiritual e terrestre que foram as Descobertas. Os elementos constituintes dessa aventura são diversos e passam por várias expressões: exigência, missão, sacrifício, a “procura e contacto vivido, feito e testemunhado em toda a veracidade, com o sagrado”, sendo a caravela e o poeta incumbidos por forças espirituais superiores de efectuarem um percurso em cujo horizonte se antevê o Absoluto: “Porque, inclusa a toda a poesia (e na especialmente deste poeta), há uma aventura espiritual, levada a cabo pelo seu criador -- e aventura como procura do absoluto: e que assim, na sua forma e exigência, está para além do seu criador”.


No capítulo Um Poeta, Dalila Pereira da Costa condensa. também ela, uma série de forças e princípios que são, em simultâneo, instrumentos para análise e objectos de análise. O principio fundamental que rege este tipo de discurso é o da existência de um ou mais planos da realidade para além do mundo material e visível ou do intelectualizável. Esses planos estão situados numa outra esfera, invisível, dificilmente traduzível, não por ser uma mera abstracção mas por ser uma realidade concreta que concentra em si as potencialidades iniciais de tudo a que chamamos de manifestação; inclusivamente a própria poesia que se reveste de uma camuflagem literária com vista ao desvendamento desse Real, superior.
A poesia, o poeta, o leitor, a história, a nação são  passíveis de uma análise, mas uma análise que passa pela vivência e experiência, e não pelo desmembramento a que o racionalismo seco obriga. Dá-se privilégio ao acto criativo efectuado por aquele mesmo que analisa. Vivificando a obra, o leitor vivifica-se e, vivificando o leitor, a obra vivifica-se, o mesmo se passando com tudo o resto: a  nação e a história vivificam o homem e o homem, por seu lado, vivifica a nação e a história.
Este texto é elaborado por movimentos dúplices,  ascensão e descida à profundezas, havendo nele uma procura de harmonização de opostos numa fusão crescente entre as várias matérias em análise: o poeta funde-se com o outro mundo, com a poesia, com o leitor, com a história e com a nação, numa tentativa de alcançar o absoluto. No fundo, tudo se funde em tudo, Dificilmente assim se poderá encontrar o observador e o objecto porque ambos participam na Criação Absoluta,  concretizando, deste modo, na Vida como acto criativo constante, e, em última análise, eternos porque nunca interrompidos, nessa dinâmica, pelas categorias fragmentárias do espaço e do tempo. A criação de um poeta rompe os céus e consegue roubar o fogo da imortalidade aos deuses: “O que existe e persiste, intocável e sublime, hoje em sempre no tempo, será essa obra dum poeta.”


(Cynthia Guimarães Taveira)

A diferença...

                                   Matisse, harmonia em vermelho, 1908
 
 
A diferença entre a tradição e a vanguarda é que a vanguarda é capaz de surpreender, de resto não há diferença nenhuma.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Teia

Oh, teia cósmica
de invisíveis traços
sem que aranha se vislumbre
ou insecto a sustente
de polos diversos apontada
cada gota de pura água
ou de desentendida lágrima
tem no verso um fio de prata
onde jaz a alma farta
nela é o tempo torcido
em reviravoltas de fino rigor
Nas estrelas vibra a dor
No espaço o amor
e se te digo é porque salto
no limite do tremor
Entre o certo e o avesso
não há diferença
nem distancia
entre a estrela e o amor.


(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Fazer para crer


“Mas que tudo seja sempre em primeiro lugar, serviço: trabalho de e para Deus.(...) E que a seus olhos humanos se mostra nesta aparente não-utilidade, como canto escondido, fechando-se sobre si mesmo, no seu segredo; e durante um tempo indeterminado; em toda a esperança, esperando uma segunda revelação: a que será feita, ou melhor, dada, a nós próprios, os homens. Como segunda vinda do Verbo. Será preciso que a obra se faça sempre na fé. Como espera do Século a chegar.”

Dalila Pereira da Costa “Encontro na Noite”, Edições Lello & Irmão, 1973, pág. 114

 

Deambulam os desempregados numa espécie de inércia encostada a restos de subsídios, deambulam pelas cidades e deixam-se adormecer. Outros, fogem na diáspora genética. Outros arrastam-se em serviços desvocacionados.

Àqueles que partem, que levem consigo o todo que é Portugal, nessas viagens, que são sempre caravelas-laboratórios, onde, parte se afadiga e a outra parte guarda em oração a sua casa, a sua família, ou a terra que ficou por lavrar...

Àqueles que se arrastam nesta sociedade numérica, de dígitos de artifícios encantatórios mas com data marcada para desilusões, que não esqueçam o que amam... e que no extremo do cansaço, ainda bordem, ainda cultivem a horta, ainda sejam os engenheiros dos vossos próprio carros... ainda o façam, num espaço mínimo da existência, que se cumpram para o que nascem escutando a voz do coração que nos diz da Alegria de completar o que sai de nós. Alegria secreta, tendente ao alto, e que nos dá a surpresa de nós mesmos como recompensa do Ser.

Àqueles que deambulam, que se descubram o possível nesses passeios que deixaram de ser apressados e que nos deixam, nesse tempo morto, olhar a montra, olhar os edifícios, as pessoas, as ruas, num prazer lento... mas que outro lado seu, perscrute a vocação, e tudo faça, mesmo no silêncio de uma poesia que se fecha numa gaveta, mesmo numa arte que se pratica, mesmo num voluntariado que vos exalta, mesmo na crítica que vos assola, mesmo em noites escuras de dúvidas, feitas para ser esclarecidas quando olham as vossas mãos e desejam ardentemente, aquilo para que o vosso coração tende, e que vos preenche, e vos dá a Alegria, mesmo que passageira, da obra, ou parte dela feita.

Aos que passam fome. Bem aos que passam fome. Fome a sério. Que se indignem. Que discutam. Que enviem cartas. Que façam petições. Que se sentem em frente à casa dos que vos governam. Que exijam. Que digam que não votam. Que mostrem as contas e o que ganham. Que falem dos vossos filhos. Que se unam. Que leiam a constituição da Republica. Mas não deixem que o corpo quebre a vossa voz. Que denunciem. Que façam barulho.  Que por cada vez que peçam comida tenham um gesto de revolta visível.

Só assim, se prepara o futuro e se afastam os mercados abrutalhados, as crises injustas, os anti-depressivos, as infelicidades “à la carte” e alguma grandeza, que todos temos, se manifesta e aninha os sonhos que hão-de vir.

(Cynthia Guimarães Taveira)

Porque te ouvi


Porque te ouvi
e te escutei
uma e outra vez
Ao longo destes caminhos
feitos de renda
cruzados eles
em curtas frases retidas
em pequenos nós
onde nascem desenhos.
Porque são essas frases
de futuro
mal compreendido,
maltratado,
por vezes,
Porque te escutei
de alma debruçada
na varanda estendida
pela eternidade
e te vi em barcos
passando Leve
como um pássaro
flamejante.
Porque as tuas palavras
logo que ouvidas
passam limpas
para o meu coração
como se sempre lá estivessem estado
ainda não o mundo inteiro
a saber delas
e a deixarmo-nos ecoar nelas
Como balouços vamos
cumprindo o tempo
para o não cumprir.

E aguardamos
todos
e não só alguns
debruçados em varandas
onde a eternidade ecoa
e aguarda
O nosso mergulho nela

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Enfado

Dão-me enfado

Estátuas mal feitas e de bolor transversal
Paradas no ópio das igrejas
E os dias brancos
de uma só nuvem cobrindo o céu
dão-me enfado as crenças cegas
servidas em bandejas nuas
sem  cinzelas do imaginário
e as palavras esvoaçantes
de cumprimentos feitos à medida
da vaga resposta
dão-me enfado as memórias vivas
como polvos esbracejantes
e os dilúvios de outrora que nunca passaram
dão-me enfado as imagens caídas
nas tentações das modas descaídas do cérebro
e não nascidas na ponta dos dedos
dão-me enfado as previsões do tempo
que nos fazem sentir pequenos profetas
num clima de altivez
face à imprevisível e grande natureza
dão-me enfado as noites tristes
como um destino forjado
na ponta de uma mágoa
dão-me enfado as violências contidas

e as não contidas
por serem só violências
dão-me enfado as sociabilizões abstractas
penteadas por entre as estrias
das bem-aventuranças com que nos estrangulamos
na tentativa absurda de por um minuto
sermos “como”  Buda, Cristo, um deus pagão
todos eles espreitando na floresta
e de não sermos qualquer coisa, apenas,
por sermos abstémios até da floresta
dá-me enfado o próprio enfado
de fados distantes
de palavras que nos desmoldam
e nos raptam o coração
sem que fado algum
o repita simplesmente
no trote da vida

(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Pessoas como livros, livros como nós. Leitores, alguns, como palavras em vida



No único e permitido
Horizonte aparecido
A Dama de Xangai
Move-se por entre espelhos
Seu rosto
Ganha outros rostos
Seu vestido
Outros criadores
Seu tom de cabelo
Outras tonalidades
Sua voz, outros cantos
Seu gestos
Outros modos
Seu coração
Outros segredos
Sua alma
Almas outras
Move-se e torna-se
Marioneta do que é
No gesto do teatro
Do absurdo da existência
E que outros modos são?
E que outros segredos desvendam?
Almas outras que não partiram?
No encanto de saber
Pára o gesto um segundo
Além dele, o permitido há
Outros olhos mais acima
da cópia falsa da verdade
Da mentira original
Antecedem o início
Da cópia falsa da mentira
Da verdade original
E no fuso
Bem no centro dele
Almas outras
Nem outras são
Mas a mesma
Noutras histórias
Se o vento a ergue em solidão
Cai em chuva forte
De mãos e almas dadas
Só assim se mente
A semente da verdade do futuro
E nasce a verdade no presente
Para além do espelho mentido e duro

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

 

 

 

 

 

Negro

~


O meu coração
É de noite
E de estrelas tristes
E nem tais cores
Ou sensações
São admissões
Do que há
Para lá da montanha
O meu coração
É feito de um jardim
De muros tão altos
Que nele
Só existe a sombra
De uma asa negra
O meu coração
Já não caminha
E toma o nevoeiro
Como seu
E o Inverno
Como testemunha
O meu coração
Arde fundo
Onde ninguém o pode alcançar
Onde ninguém o pode ver
Onde ninguém o pode ser
Ele é rubro para o céu
E negro de aço para a terra
Não é vitória porque não há guerra
Não é derrota porque não há glória
Origami de várias formas
Em papel de que alguém se farta
E deita fora
Em reciclagem prometida
Pelo universo desconhecido
Algures no lado de fora
Da minha alma

(Cynthia Guimarães Taveira)

 

 

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Contemplação da Perfeita Memória



 
Perco-me e de novo me perco
A contemplar os vossos cabelos
Embranquecidos que conheci negros
Perco-me nas curvas das vossas rugas
Que cumpriram e vos roubaram os sonhos
Sem que os roubassem alguma vez
porque se lembram deles
E vejo-me assim abandonada
Nesse jeito vos ver
No próprio jeito de vos ver
E em vos ver
Ao vosso jeito, a atravessar a rua
Com vestidos leves reencontrados
Nos verdes anos
Ai, e como namoram o tempo perdido
E a vertigem que guardam e aguardam
Perco-me no ligeiro e insuficiente consolo
Que têm ao contemplar o mar
E que ainda assim preenche os intervalos
das dúvidas tremendo
E como a vossa voz ainda vibra, do mesmo modo
De quando eram surpreendidos
E agora ainda o são, uma e outra vez
Ainda que a mesma surpresa vos surpreenda
Na amnésia gratuita de que somos feitos
E de como os vossos passos nostálgicos
Ainda saltam na energia louca
E despropositada como um milagre
acontecendo no des-sonhado crepúsculo
e de como vos atravessa a eternidade
no fumo que sabem ser
perco-me como se vos amasse
no despropósito descomposto
da exigência engravatada e formal
com que o espírito se veste
quando quer fingir que não o é
e vos vejo em todas as paisagens
eruditamente elaboradas
esperando-vos na paisagem espontânea do ser
vejo-vos na aparência morta
e vivem já, no meu seio,
sem que o saibam ou pressintam
assim ligeiros
na idade que desejam ser
no vosso jeito único de atravessar a rua
de atravessar a vida
de atravessar o meu ser


(Cynthia Guimarães Taveira)

 


Homenagem a Fernando Pessoa





(Tanto se me dá como se me deu
Tanto se me dói como me doeu
Tanto se me faz como se me fez
Não morra o mundo e não morra eu)

 
Há uma indiferença diferente
Vivente num ser ausente
Não deixa pegadas na areia
Mas dança pela lua cheia

No sorriso esconde a solidão
Na solidão esconde o sorriso
Intermédia da vastidão
É-o em vasto ser insubmisso

Não talha a obra por querer
Talha os sentidos que quiser
Abrange o céu na sua mão
Escolhe e vive de viver
 

Vê para além do que não vê
Em velhas tontas vê donzelas
Escuta em tom de acontecer
Os poemas na voz das estrelas
 
Fala de saber ouvir
E nada ouve ou sabe saber
Acolhe a voz a partir
Liberta o silêncio que há-de vir

Escreve o sentido e significado
No mudo papel do outro lado
E na frente o verso acabado
Invoca o ser assim encontrado

Abre caminhos já abertos
Na precisão do gesto dado
Permite o sonho e o devaneio
Onde o sol dorme e donde veio
 
Nasce por si em cada cor
por tudo saber de cor
no centro do mundo a flor
em quatro cantos dista da dor

 
(Cynthia Guimarães Taveira)