segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Templária à força


Já é o segundo que me diz "se quiser vi ver é só telefonar". Em comum, produzem obras. A falta de espaço e de interesse ainda vai fazer nascer as galerias em casa. Estive a ver uma galeria que dá ""oportunidade" aos artistas. Por duas semanas cobra novecentos euros. Diria antes que dá a oportunidade aos artistas de "apostarem" que vão vender pintura acima dos novecentos euros. O artista torna-se um apostador e o galerista, esse, joga pelo seguro. Assim, já é o segundo que conheço que mantém as coisas consigo e, se é para apostar, então que se aposte no "além-vida", ou seja, depois de morto, logo se vê. As galerias caseiras poderiam começar a nascer como cogumelos o que era uma boa resposta ao vampirismo dos "galeristas" que se limitam a alugar um espaço. Por convite ou por marcação, quem fizesse uma romaria pelas casas dos artistas iria encontrá-los no seu meio ambiente, de melhor humor e provavelmente ainda seriam convidados para almoçar. E então, sim, poderíamos falar numa "democrátização" da arte e não nesta fantochada da banha da cobra onde é dito que todos "podem fazer tudo" mas que, na prática, é um "vê se te avias" no aluguer de espaços de exposição.  Se não fizesse as coisas para a glória de Deus estava tramada. Templária à força, é o que é. 


 

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Factos


https://pontofinalmacau.wordpress.com/virgula-cronica-de-jose-luis-peixoto/?fbclid=IwAR2pK5vxmU-zq5GgCnL9MfXl3gySk9jtzF-d5bytDdfoYvakA9LWpI4UYEk


Nesta crónica José Luís Peixoto queixa-se da doença crónica do saber factual. Começou com os enciclopedistas e tem agora o seu auge na Internet. Já uma vez me questionei aqui como é que Leonardo da Vinci reagiria com tanto acesso a informação, ele que queria saber tudo. O saber desalmado é apenas isso, desalmado. Pode ter utilidade mas não tem nem produz efeito na alma. E aqui está o busílis de muitas questões. Inevitavelmente conduzem ao belo (que contém sempre a sabedoria). A informação pode deslumbrar mas é fugaz. A sabedoria acaba sempre por criar. E a criação só pode ser feita com alma. Cientificamente não se sabe o que a alma é. Apaixonadamente, sabe-se o que ela é.  Ainda muito haveria para dizer sobre a Iniciação e o papel das Hierarquias. Oh, se havia.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Intriga-me




O fenómeno da chamada Nova Ordem Mundial intriga-me. Há uns anos era uma teoria da conspiração terrível da qual era dito que um único governo totalitário comandava o mundo  (ver a Wikipédia) e eis que, com a pandemia, para alguns esotéricos portugueses, subitamente, (deve ser da virose), se transformou numa coisa boa. Já é o terceiro a quem ouço isto (não percebi se lhe tiraram a palavra Mundial ou não). É a mesma coisa que pegarem num partido de extrema Direita ou de extrema Esquerda e dizerem que, segundo a sua interpretação, são partidos moderados. Pode ser também que seja estratégia hermenêutica de maneira a fazer desaparecer a ideia de totalitarismo do horizonte. Ou pode não ser. Como não confio nas hermenêuticas de alguns esotéricos há muito tempo, a dúvida intala-se. Talvez queiram simplesmente comunicar (os esotéricos portugueses gostam muito de comunicar), chegar às massas com as palavras que as massas utilizam. Como isto já não tem ponta por onde se lhe pegue e, olhando para o caos à minha volta (segundo Mircea Eliade, o homem, no espaço e tempo sagrados é o centro do mundo -- por isso é que olho à minha volta), há uma nomenclatura muito mais apropriada e capaz de chamar os bois pelos nomes: "Kali-Yuga", o ciclo mais pequeno e mais destrutivo de um conjunto de ciclos temporais. Mas como isso é chamar os bois pelos nomes, ninguém está interessado. Preferem entrar em hermenêuticas intrigantes sobre Novas Ordens Mundiais, nem sei bem para quê porque do caos não se livram. Evidentemente que muitos sofrem da síndrome nacional do Chico Esperto na esplanada, sentado a fazer o quatro com as pernas, de óculos escuros, com ar de quem "controla", com ar de quem "domina", de quem "sabe" tudo o que se acontece à sua volta, desde as "gajas" que passam, passando pela política mundial. Com ar de quem, se tivermos dúvidas sobre qualquer questão, são a pessoa certa a quem devemos perguntar. Na verdade, não são o centro do mundo, apenas o centro do seu próprio mundo que criaram e encontram-se no terreno do profano julgando que são chão sagrado. Qualquer pessoa, com dois dedos de testa (são muito raras), só pode denunciar o que se passa. Constatar, como crianças (atenção aqui às crianças porque estamos a falar no sentido superior da infância e não na divinização da infantilidade mórbida que tem muito a ver com a obesidade mórbida - nome fantástico para designar os cérebros e corpos em papa) que o que se passa hoje no mundo é caótico. É um caos à escala Mundial. Como é um caos, apela-se à palavra Ordem com interpretações várias mas sempre acoplada com as palavras "Nova" (da qual suspeito), e "Mundial" que se encontra absolutamente fundida, nos dias de hoje, com a palavra "globalização" que é o que sabemos. Assim, quando tentam novas hermenêuticas do conceito "Nova Ordem Mundial" esquecem-se do velho conceito indiano "Kali-Yuga" que, por ser velho, é sábio e preciso no que aponta.
E esquecem-se do diagnóstico. Correm para a putativa cura como uma manada de elefantes descontrolados, utilizando conceitos de trazer por casa que vão roubar à Net (não aos livros), só para conseguirem vender o seu peixe, que é diferente e variado (cada qual defende coisas diferentes e, relativamente à iniciação, não me parece que saibam muito bem do que estão a falar ) e que atrai público, honrarias, aplausos e admiração, crescente em número, no domínio virtual, e decrescente em número, no domínio presencial (já era assim antes da pandemia). Mas, se tivermos em conta o conceito de "iniciação virtual" e o de "iniciação efectiva", veremos que até a palavra virtualidade decaiu. O virtual deixou de ser a semente efectiva que se lança à terra para passar a ser um mundo decadente, em ciclo final, espelhado na Internet. Assim sendo, a Mania das Previsões, torna-se facilmente na Mania das Antecipações (nos telejornais, devido à americanização da língua, já não se diz "prever", diz-se "antecipar", o que são duas coisas totalmente diferentes) e os esotéricos portugueses lançam-se numa corrida (que é sempre competitiva entre eles - basta um colocar um vídeo  no Facebook onde aparece a falar para os outros, logo de seguida, colocarem o seu, só um ceguinho é que não vê) em direcção a essa Nova Ordem , seja lá o que isso for. De uma coisa tenho a certeza. O nome é horrível. E, a palavra Ordem, nunca poderá ser Nova. Ela pertence à Tradição que está para além do Tempo e do Templo. Aliás, a "com - templação" é estar com o Templo, não é ser o "Templo" (aquele que é o templo é o fanático), e, nesta altura, só podemos constatar, depois de contemplar, que nos encontramos num fim de um ciclo. Os germes do seguinte estão na Iniciação efectiva. As virtualidades são recursos de emergência para uma época onde as pessoas são incapazes de chamar os bois pelos nomes. Até porque não sabem os nomes dos bois, não conhecem a sua linguagem, por mais que falem na linguagem dos pássaros, espampanante nas suas penas e colorida na internet. Essa linguagem, permanece o véu por retirar e nada tem a ver com "bocas" ou "sugestões", como muitos crêem. É superior a isso.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Chocolate

Tive a sorte de conhecer bons jogadores e maus jogadores e, assim, penso que os maus jogadores e com mau perder (para não dizer, péssimo), estão envolvidos numa teia da qual só podem sair sem jogar. O gozo que me dá ver a sua cara de pau, ainda com os mesmos truques a espreitar por debaixo da manga e incapazes de franqueza, só é igualável a comer um chocolate.

Estão horríveis




‌Perguntou-me ontem um vizinho por causa da minha pintura se já tinha feito exposições. Disse-lhe que sim embora sem grande interesse por parte das pessoas. "Mas como?" Perguntava ele. Respondi-lhe que o sentido estético tinha sofrido uma grande anomalia e que a capacidade de decifrar símbolos ainda mais e que, por isso, não havia grande interesse por parte das pessoas. As pessoas gostavam mais de borradas do que de outra coisa. Vivemos numa época estética atípica, não é só o vírus que torna a época atípica. No outro dia o meu irmão ligou-me e adivinhei-lhe o sorriso maroto do outro lado do telefone (já não se pode dizer, do outro lado da linha porque já não há linhas, é tudo pelo ar) quando me perguntou: "O que é que achas da cultura?" referindo-se ao mundo cultural actual. Respondi-lhe que era uma "mer...". Ele disse que já sabia que iria responder assim. Nem costumo dizer asneiras, mas, neste caso, não há volta a dar. O desgraçado do meu irmão também apanhou por tabela com a cultura clássica da minha mãe e sofre de uma síndrome irreparável: a não identificação com nada disto. Já pintei a casa toda. Ao menos serve para alguma coisa. Demos por nós a falar sobre frascos transparentes para a casa de banho. Ele parou a meio da conversa e disse: "Já viste sobre o que é que estamos para aqui a falar? Sobre frascos!" Ri-me. Chegámos à conclusão que era uma tentativa desesperada de nos agarrarmos a qualquer coisa de bonito numa época tão feia. E é verdade, agarramo-nos a coisas aparentemente fúteis mas que são a ponta de  um iceberg enorme, com as suas raízes numa educação da visão, da harmonia, do símbolo. Quem gosta de grafittis, de arquitetura contemporânea, das porcarias expostas, não pertence ao nosso universo, tomamo-los por tontos (por parvos). Vivemos numa espécie de solidão a dois. Na solidão de quem, pela infância, passeou pela mão da nossa mãe, ele com cinco, eu com sete anos, pelas ruínas de Roma e sentiu o tempo como coisa viva. Estamos vivos por entre ruínas. As pessoas, por seu lado, na sua grande maioria, surgem aos nossos olhos, como algo incompleto, tosco e difuso. Sem a dignidade das ruínas. Vivem numa ignorância pestilenta e peganhenta. Gostam das coisas piores e desdenham as melhores com a arrogância de quem se sente superior. São insectos obedientes. Horríveis. As pessoas, na sua grande maioria, estão horríveis. Dizer o contrário é mentira.

domingo, 13 de setembro de 2020

Enquanto as estradas forem estas, nós não vamos continuar



Enquanto tivermos uma sociedade bi-polar, por um lado virada para as novas tecnologias e, por outro, virada para os neo-tradicionalismos, autores como António Telmo, Dalila Pereira da Costa ou António Quadros continuarão desconhecidos. Porque a única via para conhecer as suas obras é através de um apelo muito forte para a Verdade. E enquanto se embarcar nas modas que nada mais são do que acções e contra-reacções de manipulações políticas  e financeiras, por mais que apelemos para que se conheçam esses autores, o desinteresse é total. Tanto os neo-tradicionalismos como as novas tecnologias, agradam pelo poder que propõem. E o poder, meus amigos,  não é mais forte do que a verdade mas conduz a que se perca muitíssimo tempo com coisa nenhuma. Um veneno. 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Os Durrell


https://youtu.be/wHFPoTkLpTM

Das séries mais deliciosas que vi nos últimos tempos. Já vai na quarta temporada. De segunda a sexta na RTP 2 depois do Jornal da Noite. Simplesmente perfeito.


Sensibilidade e bom senso


Os intelectualmente iguais parecem sofrer do uma apoplexia que os mantém a respirar e com a sua circulação activa por entre os pares. Relativamente à sua sensibilidade e ao seu movimento geral (que é muito mais do que a simples circulação), observa-se uma paralisia ao nível da comunhão. Perante tal desfile circulatório, embora donos de uma respiração sonora, lamento o meu lugar entre pares pois, ao contrário deles, a minha respiração é inaudível, a circulação social não vai além do supermercado  enquanto a sensibilidade, por seu lado, se encontra  activa e em osmose com movimento imparável de quem percorre o seu próprio país, o que, neste caso, se mistura com Portugal. O sistemático elogio da mediocridade obriga-me pois ao convívio com os intelectualmente diferentes (e não com os intelectualmente iguais) muito por causa daquilo que nos une: factores simples como o estado do tempo, as pequenas observações sobre a actualidade (sem grandes voos, nem pretenções), o gosto por comida saborosa e por apanhar sol. O enxovalho sistemático com que os intelectualmente iguais brindam a literatura e o pensamento obriga-me ao silêncio recriminador. Num infantário, quando um adulto fala, os bebés pensam que está a palrar, e nestas escolas esotéricas e filosóficas (cujos pés se colocam em pontas para tentar chegar à literatura) supostamente para adultos, quando um bebé palra, os adultos pensam que está a falar. Onde é mais crasso o erro situa-se na contradição inferior (não no paradoxo superior). No mesmo discurso, tão depressa dizem uma coisa como outra. Se é para isso, antes situar os "pontos de vista" contraditórios em diversos personagens como o fez Fernando Pessoa cuja vida o obrigou a mudar de país, de casa e de personagens. Trindade que não encontro em ninguém intelectualmente.  igual. Até porque não estão em movimento. Apenas circulam por aí sem sensibilidade e sem bom senso.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Tempos




Prefiro ter uma visão romantizada da História a ter a visão romantizada do presente. Prefiro passar por entre portas de madeira trabalhada a passar por entre portas de vidro e cuja transparência é o inverso da realidade. O meu mundo é feito de barcas de velas amplas e alvas e as memórias que me assaltam surgem de repente. Subindo uma colina, o ângulo do sol bate sobre o mar e sobre o céu, de tal forma, que me encontro num postal antigo onde o tempo é parado e onde todos somos diferentes, num ritmo outro, numa percepção outra da vida. Uma sensação. O tempo e a sua qualidade, nada mais é do que uma sensação. Talvez construída com cacos de literatura dispersos na nossa memória, talvez mais do que isso, por vezes, como se acedessemos, de facto, a outro tempo. O perfume do pinhal junto ao mar tem qualquer coisa dos anos setenta, das matas onde se viam calças à boca de sino e, uma rede preguiçosa e quente, presa entre dois troncos, seja o suficiente, em conjunto com o calor e com esse perfume de pinhas a estalar, para que se esteja numa qualquer infância longínqua. As viagens pelo tempo têm também elas gradações. Umas fruto de memórias, quem sabe, se doutras vidas, outras, fruto de sugestões, outras construções que já foram construídas dentro de outras construções de tempo, outras, pedaços de infâncias que nunca se ausentaram completamente. Mas todas elas possuem um núcleo qualitativo, de tal forma, que cada uma pode ser mesmo um adjectivo que pontua o nosso espaço interior e incomunicável. A razão pela qual é fácil esquecemo-nos de tudo o que se vai passando nesta época tem a ver com essa incapacidade que os acontecimentos têm de parar em si próprios para formarem um adjectivo único e novo. Uma característica que os invada de tal forma que se tornem indepedentes do próprio tempo. E visitáveis mais tarde. O sofrimento gera sempre imagens difusas que só nos voltam a aparecer reais nos sonhos. Já a beleza, o bom, não carece de sonhos quando nos assaltam a meio do caminho de uma colina onde o ângulo do sol toca o céu de tal forma que todo um outro tempo ecoa por dentro e por fora de nós. A contemporaneidade suja tudo com os seus dedos trémulos, como aquelas pessoas que dão várias voltas ao bico da caneta antes de se lançarem num desenho ou num escrito trémulo e inseguro como a sua alma difusa e incapaz de captar o tempo.
Só sabendo que somos felizes, somos felizes. Aquela frase absurda "éramos felizes e não sabíamos" é uma viagem torta que arrasta para o passado a comparação com o presente. Nesses momentos, fixos, envolventes e adjectiváveis, o presente desaparece por completo. Neles somos felizes e sabemos. E, essas visitas, tornam possível a percepção do tempo como coisa mental, mas não só. Como algo que é inteiro. Um postal impossível de se rasgar porque rasgou ele próprio o tempo e nos invadiu para além da nossa incapacidade de ver e sentir o tempo presente romantizado por lhe faltar o charme da inocência e o perfume da entrega sem pensamento.

domingo, 6 de setembro de 2020

Do Símbolo ao Sinal







Do símbolo ao sinal

Cynthia Guimarães Taveira

Nesta queda da civilização assiste-se à passagem progressiva do espaço quase infinito da visão simbólica do real à finitude imediata do sinal. Da viagem pelos vários reflexos, sentidos, adquiridos e emitidos pelo símbolo, passamos progressivamente para o entendimento imediato de um sinal, reduzido a um único reflexo, a um único sentido, sem que este tenha sido produto da aquisição duma pluralidade de teias semânticas, mas sim da simplificação e da redução de vários sentidos, num único vector, frequentemente traduzido no caminho que vai da acção à reacção imediata.

Da mesma forma que o mito passou de “história verídica” a uma “falsa história”, assim as dimensões simbólicas, em que o ser se movia num espaço e tempos plásticos, passaram à instantaneidade de um momento fixado nos limites de um espaço; há uma espécie de substituição do cinema pela fotografia; do movimento e fluxo temporal nasceu o instantâneo fotográfico; a inversão é marca da nossa época; a vida engana o tempo, cristaliza-o numa série de secções, numa esquizofrenia que ultrapassa a doença mental naquilo que tem de excepção e marginal para se tornar a normalidade.

O medo do tempo e da morte resulta numa série de fragmentos fotográficos sem continuidade entre si, podendo ser analisados separadamente; o relativismo superou-se na impossibilidade de não mais ser necessária a relação entre elementos iguais dentro de vários contextos. O contexto substituiu o elemento, este é apenas um produto daquele, já nada é per si. O contexto é absorvido pelo elemento, e o elemento é um produto deste. O elemento é a contemporaneidade absoluta. O relativismo, em ultima instância, é o absolutismo do eu e dá uma relevância extraordinária a um dos símbolos arcaicos do hermetismo, o Uroboro, no qual os extremos, efectivamente, se tocam. Esta é a marca das ideologias: o individuo nada é fora de uma ideologia, porque de uma forma macabra a ideologia se vai alimentar do individuo e só assim se mantém viva, e o indivíduo, por sua vez, só tem existência, valor, utilidade, se nascido dentro de uma ideologia. E tudo isto se passa instantaneamente. Poder-se-ia dizer que a lua está morta, pois já não há um reflexo, por pálido que seja, do próprio indivíduo. A ideologia é o indivíduo, como a cauda pertence à boca do Uroboro. O reflexo, a reflexão não mais é necessária. O reflexo dos espelho, que pode retorcer, distorcer, inverter fica na esfera do ausente. Narciso não necessita mais de um espelho pois afinal só conhece uma realidade: a sua. Ao iniciar viagem para dentro do espelho, de alguma forma, retirou-lhe a utilidade. Não é necessária reflexão, pois esta passou ao estatuto do imediatismo.

Deu-se a passagem da espada ao tiro. A espada com os seus artífices, os seus rituais, as suas memórias, os seus mitos, as suas sugestões, os gestos dançados precisos a que obrigava, é substituída pelo dígito no gatilho de uma pistola desenraizada, sem artífices sábios que a tivessem elaborado, sem ritos nem mitos, memórias, sugestões ou gestos de sabedoria adquirida por gerações. Instantaneamente dá-se um tiro. A vida tem o valor semelhante ao da morte. Um valor nulo. Só representável nessa instantaneidade. O tempo é vencido, aniquilado e o espaço superado. A memória torna-se desnecessária perante um instantâneo espacio-temporal. Há hoje uma forma de Zen sem a perfeição do gesto. A história e o tempo afundam-se no oceano do momento. Os gestos imperfeitos repetem-se num esgotamento dos minutos, a auto-flagelação desta civilização é tão sincera como um mestre budista ao erguer uma flor no instante de um gesto perfeito. Daí o engano, o perigo e a miséria humana.

Provavelmente a Terceira Vaga, descrita por Alvin Tofller como sendo a da tecnologia e que acabou enraizando o homem em fios e fusíveis, em electricidades dogmáticas, é apenas a causa natural de uma Vaga, ou de uma Era em que a “des-simbolização” crescente tenha sido elaborada pela administração e imposição de Ideologias nascidas, ainda de que uma forma inconsciente, na Revolução Francesa. O aparecimento da Ideologia quebra a visão do tempo cíclico, pois com as Ideologias quebra-se o ciclo das gerações ininterruptas: velho, homem, jovem, criança. Resta apenas uma Ideia, traduzida num único líder, ou num único apelo. O conhecimento da história trouxe a mais valia do conhecimento de que as ideologias (sempre traduzidas em regimes políticos), são substituíveis, e que estas utilizam parte do símbolo, fragmentam-no num número reduzido de significados, pois só assim consegue sobreviver. O nascimento das ideologias coincide com o progressivo desaparecimento de uma Era simbólica, que só pode existir com a noção de um tempo cíclico ou espiralado (como é o caso das Religiões dos Livros e a sua noção de Telos, o fim do Tempo). Porque a ideologia se fixa num único ponto. Deus morre para dar lugar a uma ideologia. Todas as ideologias contêm em si o germe da morte, uma vez que a perfeição é, afinal, alcançável, o paraíso está perto, e a estagnação num limbo de felicidade é o seu verdadeiro propósito.

Tudo se passa no mesmo lugar e num único tempo: uma tentativa de usurpação da ideia de imortalidade, que não se restringe a uma qualquer cidade proibida fechada nos muros, mas que se abre a todas as cidades. A visão da imortalidade pode ser assim a visão da morte “em vida”, uma vez que toda a criatividade desemboca, no seu mais profundo íntimo, num beco sem saída, acaba mal vista e mal vinda num lugar que se entende como sendo “já perfeito”. Esse lugar são todos os lugares (assim o determina a globalização -- nova ideologia em ascensão). A visão poética do mundo, a mesma onde se move o símbolo, só pode existir com a noção de distância temporal espacial. O tempo estando mais curto pelo estreitamento das distâncias (qualquer pessoa em 24 horas pode dar a volta ao mundo, ou em menos de um minuto pode telefonar para qualquer parte) resultou numa “fuga para a frente”, na tentativa da sua disseminação. O tempo é fonte de terror (como tão bem nos chamou a atenção Mircea Eliade) e, no entanto, precioso. Se o símbolo do centro teve a importância que teve na Idade Média, como Jerusalém a alcançar após uma série de peregrinações e provações, ou se esse centro estava em Deus, também difícil de alcançar, ou se esse Centro estava no equilíbrio procurado nas filosofias orientais, hoje existe uma poli-morfologia de centros. Não há mais a percepção de um só centro, mas de vários e, em simultâneo, as distâncias e o tempo encurtam cada vez mais. O resultado, por mais paradoxal que possa parecer, é a ausência de centro. Tudo se move num único ponto (um ponto não é o Centro, o ponto marca apenas um lugar, o Centro representa todas as potências latentes e concentradas), tudo existe dentro de uma única realidade, e essa realidade é o sinal. Instantâneo, próximo e facilmente acessível, compreensível, imediato e vazio. O próprio relativismo só faz sentido dentro de um único ponto. Para lá dele não há relativismo possível, nem visão poética ou simbólica, porque para além do sinal não há nada. E o relativismo existente dentro desse universo fechado e paralisado é o próprio vazio. Como vazia acaba por ser uma sala multicultural, fundindo as culturas a pouco e pouco, acabando com as diferenças, as distâncias, caminhando rapidamente para esse zénite de autocombustão e desaparecimento. Vazio que invade todas as esferas do ser e que se traduz pela falta de encantamento, de deslumbramento, uma visão da velhice mais perto do cadáver do que da criança. Mas será esta a realidade?

Enquanto não formos compostos por uma aglutinação de electrónica e bactérias vivas, como já vem sendo o sonho dos novos líderes das tecnologias (desconhecendo, por certo, o símbolo do Golem), ainda poderemos pensar e sentir como seres humanos e não como seres híbridos que já vêm vindo, misturas explosivas de impulsos electrónicos e corações naturais que pulsam. Aliás, o privilégio desta época é que poderemos, ainda, ser humanos, porque o que aí virá serão robots, uma outra existência longe de nós. Que nos resta senão essa expectação que é a de sermos humanos, independentemente dos alinhamentos deveras suspeitos dos telejornais? Para sermos humanos necessitamos do símbolo, tanto como da água que compõe o corpo. A resposta não está nas teorias complicadas dos córtex cerebrais, ou das psicologias aplicadas a todas as frustrações das vidas. Está simplesmente em recuperar toda a dimensão simbólica latente dentro das culturas e dos seres. Sem essa dimensão simbólica somos o instrumento preferido de uma ideologia qualquer, que escolhe apenas uma fatia da enorme circunferência do simbólico para melhor manipular as massas. Porque é assim.

O símbolo, na sua essência, escapa à Ideologia, que normalmente só aproveita parte dele; o seu raio de acção é semelhante ao cálamo da mística sufi: a pena suprema criada por Deus para escrever o destino, o seu comprimento é o mesmo que vai do céu à terra e a sua largura estende-se de Oriente a Ocidente. Na sua variedade há inúmeros símbolos que podem, de algum modo, tentar a definição de símbolo: a moeda partida em duas metades que podem voltar a ser unidas; a saudade, símbolo de símbolo também, porque consciente da distância que vai do dizível ao indizível, do visível ao invisível, do compreensível ao incompreensível na sua totalidade, da periferia ao centro.

Qualquer dicionário de símbolos possui várias definições de símbolos; os interessados poderão consultar e tentar decifrar esse mistério que é o símbolo, porque ainda há mistérios, por mais que haja uma tentativa científica de nos obrigar a crer que tudo é cognoscível e, mais tarde ou mais cedo, compreendido, mais uma vez, na tentativa de aniquilação das distâncias.

A dimensão do mistério é uma dimensão simbólica e humana. No plano do simples sinal, um dicionário de símbolos é uma fuga ao real, pois não existe somente numa realidade mas em várias. A inversão dos símbolos é, por certo, uma marca da actualidade, e chegou a tal ponto que o símbolo, praticamente, é considerado uma fuga ao real sinalético, o único possível, em vez de ser uma viagem ou percurso para a realidade na sua multiplicidade, como o é para alguém com o pensamento simbólico intacto (se é que isso ainda é possível), e não com a actual assimbolia psíquica, que embora possa ser a incapacidade de representação e compreensão de sinais, tem como consequência a impossibilidade de simbolizar e de usar a imaginação. Para a sinalética já é necessária imaginação, para a simbologia é necessária muita imaginação, e a assimbolia é cultivada como um vírus nas estufas das ideologias.

Quando aqueles que, fascinados, mergulham a cabeça num dicionário de símbolos em busca de uma resposta ao apelo que vem do fundo da natureza humana, rapidamente constatam que há símbolos que parecem terem sido deturpados ou mesmo invertidos, virados de pernas para o ar, num mundo de ponta-cabeça, onde no seu triunfo deixa de ser a sátira para se tornar no mais sério dos problemas: onde fica a sátira hoje? Onde é que ainda é permitido um trocadilho absurdo como o das festas saturninas de riso mal contido, porque subitamente quem é escravo torna-se senhor, quem é criança bate nos pais, quem é homem passa a mulher, o animal mais fraco conduz o carro com o animal mais forte? Onde fica o mecanismo de compensação de um Carnaval? Já não há possibilidade de compensação, porque já não há espaço para margens, nem marginais. A excepção é a regra, e a regra é excepção, fora disso nada existe.

O mundo dos símbolos é um mundo de perdição, não abonando uma época na qual a obsessão do encontro consigo próprio parece reinar. Por um lado fica-se perdido, por outro, alguma coisa começa a fazer sentido, uma dupla espiral, no ADN do imaginário, ascendente e descendente. Quem descobre a dimensão simbólica descobre que está perdido e que aí ficará por muito e muito tempo. O que se procura hoje é o contrário, a ideologia reinante é a do esclarecimento, os homens querem-se esclarecidos como no século das luzes, encharcados em enciclopédias multimédia; ao invés, o símbolo imita Deus na sua aparente distância e incompreensão. Um sinal não estimula dúvidas, um símbolo suspende a verdade na sua respiração, sustém-na sem a revelar por completo. O símbolo é o maior susto moderno que podemos ter, porque joga com as ilusões que procuramos, engana-nos e esclarece-nos, e o paradoxo é a cascata natural onde mergulha.

É necessário o regresso ao espanto: ao espanto perante a inversão das coisas. Ao espanto menos bom de quem vê a dimensão humana escorrer pelos dedos, de quem questiona o significado que vão dando àquilo que dantes eram símbolos ricos e motores de pesquisa de vida, para passar a simples sinais de trânsito, dizendo-nos como reagir, e para onde ir. E ao espanto melhor de quem descortinou no meio do labirinto ( símbolo perdido, aliás) a força da espada e o seu significado profundo da separação das águas. Porque é que certos símbolos se transformaram em sinais? Porque é que se desvirtua, escava e se esventra a forma do seu conteúdo? O preço da simplificação é um crescente complexo de culpa por nada sabermos sobre o sentido e o significado. Uma parcela que seja. O esclarecimento resiste ao desvendamento. O primeiro não requer tempo, nem paciência, nem amor; o segundo é feito seguindo o movimento serpentino do engano e do encontro, numa aproximação enamorada da verdade. Requer relações, complexificações, dúvidas, erros, atalhos que se tornam longos caminhos e longos caminhos que revelam ser apenas atalhos. Requer que andemos de braço dado com a nossa própria vida. E isso, lamento, mas é extremamente humano e pouco robótico. Antes de atingirmos o estado de humanos fundidos com circuitos eléctricos já andamos a treinar há muito tempo a desumanização. Quando chegar a hora dos clones multifunções estaremos já suficientemente preparados para ser encaixotados para outro planeta…

Para a abertura de uma Era, de um estado de espírito, de um novo ser, é necessário que algo se rasgue, que algo se abra ou se quebre, é essa a lei da natureza, e isso, no início, exige uma espada, por mais que os pacifistas sinaléticos se exaltem por verem nela apenas um sinal de guerra e morte. Estranhamente, a espada pode ser um símbolo de vida e é necessária. Sem ela não há separação, por exemplo, da luz e das luzes. Ligada ao sacrifício (outro símbolo a reter), é ela que pode devolver o seu a seu dono, o conteúdo à sua forma, o sentido ao seu significado, e que separa o mal-entendido do bem entendido. Ela é símbolo da destruição da ignorância onde se balouçam os sinais que nos cercam. Todo o simbolismo da espada está ligado à luminosidade, ao “golpe de um raio”, à lâmina que cintila, e, se for de dois gumes, melhor, pois contém a polarização, o masculino e o feminino dentro de si, e será mais perfeita que nunca, a separar a ilusão da alusão, a dança mágica efectuada pelos símbolos numa evocação do transcendente. Não é em vão que o arcanjo do Juizo Final empunha uma espada numa mão e uma balança na outra.

Para olhar o mundo, a vida, a existência e, provavelmente, a essência de outra forma, sem dúvida, hoje, talvez mais do que nunca, é necessário acercarmo-nos do mundo com uma espada na mão. E isto não se passa ao nível mental furtivo e obsoleto dos jogos de cartas de Tarot, das conchas, búzios e cristais, que nos dão uma sensação de conforto e paz interior e, sobretudo, lucro a meia dúzia de profetas de sopas aquarianas mal confeccionadas. Isto passa-se ao nível da iniciação (embora esta seja talvez a palavra mais complexa do mundo), quase sem paz interior, única, pessoal e intransmissível, sem ordens ou seitas.

O tempo dos mestres praticamente acabou. Resta o homem e seus símbolos pois, como escreveu Fernando Pessoa, “quem tenha em si o poder de sentir pronta e instintivamente a vida dos símbolos não precisa de iniciação ritual”. Porque é da vida que se trata. A vida de todos os dias, desde a noite assaltada por sonhos impiedosos que nos espantam, deslumbram ou mortificam, até ao erguer do sol, ao sair para o mundo e darmo-nos conta que os símbolos estão lá, sempre estiveram, que não são apenas sinais de trânsito, ou sinais transcendentes de mais para o nosso simples percurso, do nascimento à morte, mas que são a viagem necessária ao interior de nós, da nossa civilização, e talvez, do nosso futuro, e se assim for, só poderemos recear o passado, como o fazem os chineses, e não o tempo que virá, uma vez que para se conhecer o passado é necessário o exercício da imaginação. Porque a iniciação não pode ser mais, hoje, senão o conseguirmos mantermo-nos acordados o mais possível, o maior tempo possível, no meio do caos e do cais desta partida constante que é a de estarmos vivos, e sempre a meio da viagem. Enquanto formos humanos, claro.



Cynthia Guimarães Taveira (23/1/2012)
 

sábado, 5 de setembro de 2020

Lodo


Das coisas com as quais mais custa a viver é com a falta de confiança. Aprendemos a viver sem confiança numa série de coisas: sem confiança nos governantes, na ciência, nos laboratórios farmacêuticos, nas seguradoras, nas diversas entidades que nos fornecem alguns bens como a electricidade, por exemplo. Também não confiamos na ONU, nem nas ONG. Confiamos pouco ou nada naquilo que nos rodeia. Basta ouvir uma conversa de café. Vivemos na desconfiança. É o ar que respiramos diariamente e, agora, é concretamente o ar que respiramos, com o vírus. Uma sociedade assim, é uma sociedade profundamente triste. Não digo que seja depressiva porque a depressão é considerada uma doença com possibilidades de cura. A depressão pode ser apenas uma das formas para as quais a tristeza avança. A tristeza é um estado de espírito. Ou antes, a ausência do espírito. Frequentemente ouvimos dizer: "É uma tristeza." E é. Os corações inquietam-se e choram e a esperança é fugaz, não é duradoura como a tristeza. Vivemos numa sociedade triste e desconfiada. As mais simples respostas que obtemos depois de se fazerem algumas perguntas a alguém denotam isso. Sem confiança, mundo não é um sítio decente para se viver. É um pantanal, lodoso e falso.


quinta-feira, 3 de setembro de 2020

O que ele diz


Depois de muito analisar os escritos de Fernando Pessoa (Olá meu querido!), cheguei à conclusão que aquilo que ele diz não se escreve. Mas ele escreveu. (Penso que só tu, meu amor, percebes o que quero dizer). Um grande beijinho da tua Cynthia. Por aqui, a pandemia pandémica continua. O mundo, como dizia a minha avó, parece uma zarzuela.

Relações Públicas


‌O interesse pelo que escrevo ou pinto é nulo. Ainda assim aprendi com o tempo a ter diálogos disfarçados de monólogos com Deus. Dantes ainda tinha esperança de expor ou de escrever qualquer coisa publicável, depois, com a desagregação desta civilização, percebi que essa esperança de chegar a alguém caía no vazio. A ponte entre mim e este mundo parece feita de pó. Não me revejo em tantas coisas que para me rever em qualquer coisa embarco nesses diálogos com o Alto disfarçados de monólogos. Penso que todos os criadores passam por isto excepto os nascidos com veia para as "relações públicas". Para mim são mais "ralações públicas". Já com os animais não se passa o mesmo. A minha mãe estranhava isso quando me passeava no carrinho de bebé pela avenida. Com um ano e pouco, se via um cão, o meu interesse era total, de tal forma que tentava desesperadamente sair do carro só para ir ter com ele. Isto levou a que a minha mãe tivesse de improvisar  umas fitas resistentes que me seguravam ao carro para não cair. Por outro lado, contava-me que se alguém se aproximava de mim com o típico "gu-gu-dá-dá", a minha expressão de enfado era total. O meu distanciamento social é genuíno e nem preciso de vírus para me afastar. Já com os animais, a conversa é outra. Sempre nos demos bem. Sempre nos adorámos. Os seres humanos são esquisitos por dentro e, por fora, não. Por seu lado, os animais são esquisitos por fora e, por dentro, não. Mesmo sendo totalmente diferentes uns dos outros. No outro dia, na radiotelefonia, ouvi o Sérgio Godinho a citar uma frase de Caetano Veloso: "Visto ao perto, ninguém é normal". Talvez em criança já intuisse essa anormalidade geral e variada até à loucura. Talvez me dê angústia não poder fazer nada pelas pessoas. E sei, e tenho a certeza que faço um cão sorrir. E conforta-me isso. Eu digo uma piada e o cão e Deus sorriem. E somos três felizes que se riem de tolices. O Pai, o Filho e o Espírito Santo. E nunca se sabe bem quem é quem e vivemos bem com isso. Perfeito.