sexta-feira, 29 de maio de 2020

Quando Fernando Pessoa é mal ensinado



Os exames nacionais são perigosos para a interpretação de poemas de Fernando Pessoa e suspeito que o mesmo se passa relativamente a outros autores. São perigosos na medida em que, não só espartilham o pensamento com análises simplistas da poesia como, por serem assim, induzem em erro os alunos. Dei-me conta disso com mais rigor quando agora dei uma explicação da disciplina de Português do décimo segundo ano. O poema em questão é este:

"Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.

Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ali, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar;
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri."

20-8-1933

Quem escreveu as perguntas de interpretação do manual de preparação para o exame, se é que não são mesmo perguntas de exame, insiste despropositadamente no "contraste entre sonho e realidade". Que contraste é este se nem o poeta sabe se a terra de suavidade é sonho ou realidade, se uma mistura de sonho e vida? Se o poeta afirma sobre essa  terra "Mas já sonhada se desvirtua"? Como é que quem escreveu as perguntas passa por cima desta, nada subtil, forma de apresentar uma terra com "... Palmares de sonho ou não". Que terra é esta tão semelhante aquela ilha "... próxima e remota..." do terceiro poema "Calma" da Terceira parte da Mensagem do mesmo autor? Se o poeta afirma "Talvez palmares inexistentes"? Se repete três vezes a palavra "talvez"?  Como é que é possível dizer que este poema tem dois níveis que se opõem quando tem três níveis e um quarto onde tudo se resolve: o primeiro, o da terra de suavidade que o poeta não sabe se é sonho se realidade, o segundo o do sonho que desvirtua essa mesma terra (por a reter apenas nas malhas do sonho retirando-a da sua possível realidade), o terceiro, quando o sonho se materializa, "sente-se o frio de haver luar" tornando-se esse sonho semelhante a esta terra "...também, também..." duas vezes escrita esta palavra para sublinhar a semelhança (e acompanhar o ritmo de "...talvez, talvez..." e "...ali, ali...") onde "o mal não cessa, não dura o bem." E, por fim, um quarto lugar, o "nós", "é em nós que é tudo",  (que, em simultâneo, é um lugar localizado "ali, ali") onde se encontra o efeito da terra de suavidade: "Que a vida é jovem e o amor sorri". Esta deslocalização do "nós" para um "ali, ali" é o que permite a aproximação a essa terra de suavidade. Saindo de nós em nós, "a vida é jovem e o amor sorri".
Como se vê, este poema é muito mais complexo do que a dicotomia simplista sonho/realidade.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Kali Yuga


Soube hoje que um "mui" católico defende o fim da televisão e do cinema. Não menciona a Internet até porque essa "defesa" apareceu na Internet. Nunca daria uma "mui católica". Nem "mui" nem pouco, longe de mim confundir Cristo com a Igreja. Esta última pode fazer muito mal às pessoas. O primeiro não faz mal a ninguém. A invenção dos monges, uma autêntica invenção com vista a institucionalizar as vocações místicas, levou à existência de uma sub-espécie denominada por mim de "não tenho coragem para ser monge mas quero que todos à minha volta o sejam" e vai disto, a televisão e o cinema são para acabar. Lá se ia boa parte da minha infância com muitas noites ao lado da minha mãe a ver os filmes a preto e branco que passavam a horas tardias com o caderno dos TPC aberto e com as contas de dividir por fazer. "Ai que bom ter um filme para ver e poder fazê-lo! As contas de dividir que esperem que tenho coisas muito interessantes para fazer!" grita a criança agora num qualquer canto da memória. O deserto é sempre uma boa solução para os fundamentalistas. Por mim, tirava de lá todos os bodes expiatórios e colocava estas mentes frias a aquecer um bocadinho ao sol. É nestas alturas que ainda entendo melhor Álvaro de Campos, e adoro o ruído da poeira cósmica que vem do televisor. Eu, logo eu, traidora das flores e que digo adorar o verde e a natureza pura. Puríssima! Tão pura que dispensa os filmes. Mesmo que os filmes contem histórias, tenham flores, música, poesia, palavras. Quando a religiosidade se propõem acabar com a Arte está mais-do-que-perdida, porque sem ela é uma fábrica de robot caridosos que dão coisa nenhuma. A contra-natura que existe no misticismo institucionalizado é tão ou mais perigosa que um filme de guerra, e estes quase-monges, na película, apareceriam como os mercenários ceifando vidas a troco de uma bolsa com moedas. Ainda não perceberam a vantagem que há no "rústico chique", capaz de esgravatar a terra com as mãos e de, em seguida, ir ver um bom filme ou uma boa série de televisão. Querem estes semi-monges um futuro "em linha recta", despojado, sem glamour ("O que é isso de glamour?" perguntarão os quase monges do futuro). Julgam por ventura que a Idade do Espírito Santo não tem bom gosto? Que não reconhece a poesia onde quer que ela esteja. Poesia e Espírito Santo são farinha do mesmo saco. As casas serão com rosas e outras flores pelos cantos, com livros e pinturas nas paredes, com filmes para ver e recordar. O que se passa convosco? Não sonham? Quando fecham os olhos para dormir não vêem um fluxo de imagens por vezes muito mais desconexas do que qualquer filme? Querem apagar isso? Pratiquem Yoga. E até mesmo aí vão ter muito trabalho. Nem monges, quanto mais Yoguis. São Bernardo quis templos despojados e, ainda assim, a natureza está por toda a parte nesses templos. As imagens estão lá e os templos são Bonitos. Querem abandonar as imagens do mundo para se entregarem às imagens dos "arquétipos" como se fossem as únicas valiosas... E a palavra? E a música? E os rostos do cinema? Não são belos? E calam a Internet? Não dizem nada sobre ela porque ela "espalha a vossa palavra" anti-televisão e anti-cinema? É um mal necessário? É assim que entendem a net? Os mecanismos puritanos são iguais em toda a parte. Dantes eram os bordéis o mal necessário para aguentar o casamento, hoje é a internet o mal necessário para espalharem a vossa palavra. Ainda não perceberam que não é assim? Que são geradores sempre da mesma coisa? Da hipocrisia dos ratos de sacristia. Burgueses! Sempre burgueses! Até estes neo-monges são burgueses! E lêem! Fará se não o fizerem! E muitos nem isso fazem! Limitam-se a reproduzir-se a si próprios ou a reproduzir a sua própria palavra. A inversão espelhada do Ser. Não são senão uns meninos Kali Yuga em volta da fogueira a tentar aprender o que é a liberdade.

terça-feira, 26 de maio de 2020

As razões das insónias






Tive um professor que não dormia. O máximo que dormia eram quatro horas por noite. Era historiador e não pregava olho. Perguntei-lhe porquê e ele, com a maior naturalidade, disse que era assim. E era assim.
Quando tenho uma insónia, e se o digo em voz alta, já sei que vem lá o comboio psico-espiritual apinhado de gente que, na mesma noite dormiu bem e, vá-se lá saber porquê, se sentem superiores por isso e capazes de darem as mais variadas razões e "lições" para a minha insónia.  Fico a vê-los passar como carneirinhos amestrados (daqueles que se contam para adormecer) e vão debitando as suas razões com uma profundidade estonteante. Uns dizem que não dormi por ter má consciência (deve ser a deles), outros que alguém está a pensar em mim (estes normalmente, fazem-me lembrar os enamorados obsessivos), outros dizem que, nessa noite, sofri de uma instabilidade profunda (se fôssemos relógios suíços o mundo era muito melhor? O relógio suíço é muitas vezes sinal de neutralidade... ). Na verdade, há imensas  razões para as minhas insónias. Em primeiro lugar, tenho ciclos de sono, ou seja,  meses se passam de sono profundo e que são subitamente alternados com uma ou mais semanas de insónia. Depois pode ser o calor e os lençóis inapropriados. Uma dor. Também já me aconteceu ter uma vontade de ler compulsiva, de pintar, ou de simplesmente ficar acordada a ouvir o lindíssimo som da noite. Ou de ir ver as estrelas. Ou de não fazer nada.
A minha mãe dizia que a noite era sagrada e, por isso, ninguém na casa onde cresci, acordava uma pessoa se não fosse mesmo necessário, fosse a que hora fosse. Mas sabia, que algumas insónias também eram sagradas, mágicas e criativas. Um dos problemas que encontro nos carneiros (para não dizer, cães de Pavlov que salivam de superioridade quando ouvem a palavra "insónia") está no facto de não perceberem nada da condição humana (mesmo que tenham lido a obra de Somerset Maugham de uma ponta à outra) e ficam com os dentes de fora, prontos a atacar, como cães treinados em escolas psico-esotéricas que mais parecem uma taberna mal afamada e de má frequência. O sono dos justos começa com uma grande insónia à qual de dá o nome pomposo de "vigília". Se disser que estive em vigília, isso, na cabeça dessa gente significa "esforço", "dedicação", "sacrifício". Ninguém quer estar vigilante porque é demasiado difícil e, por isso, quem está é superior. O pobre desgraçado que teve uma insónia é um infeliz que nunca alcançou os patamares do sono tranquilo, um ser inferior, perturbado e sem sono, o que não indica nada de "justo", nem nada de "nobre" como indica a vigília. A sua vigilância feita sem esforço não tem valor nenhum no mercado da bolsa espiritual. Não pregar olho está perto de ir pregar o prego para o caixão em vez de o fazer na cama. Porque o faz sem sacrifício e com a maior naturalidade e espontaneidade. A cultura do "vivemos para sofrer" é consorte da Cruz onde foi pregado Cristo. Todos querem ser como Ele. Cobiçam o Seu lugar numa espécie de papel central no palco do espectáculo da morte. As escolas psico-esotéricas são travestis frustradas da vida plena, clara e cristalina muitas vezes com a capa do sacrifício provocado com um alto valor de transação, tal qual como no paganismo. Ter uma insónia pode ser sinal de uma grande chatice, por dor, por calor, por consciência, por alegria ou pode ser sinal do que quer que seja, até do simples facto de se estar desperto. O dia não é muito diferente da noite, como as flores naturais não são muito diferentes das artificiais e, da mesma maneira que só quem conhece a linguagem das flores naturais a encontra também nas flores artificiais, só aquele que conhece o sol o pode encontrar na lua, sem confusões. Afinal, se a lua estivesse às escuras, só os cegos dariam por ela. Não troco as minhas insónias por escolas psico-esotéricas apinhadas de cegos.

Dia e noite


Tenho insónias do tamanho da noite. Navego pela noite como se fosse dia e, de dia, adormeço na mais profunda rigidez mortífera que são as coisas práticas. De dia digo que a água chega às casas e retiro-a delas com baldes sem fundo. De noite, nas minhas insónias, navego em todas as divisões das casas circundantes. Encontro todas as pessoas que dormem encostadas aos baldes. Navego em todos os olhares que não me vêem, e escuto todas as palavras que não dizem. Depois, o sol nasce e mascaro-me de lua. E vou pela rua com todos os outros, dissolvo-me na água que invade as casas até que a noite chega e, regresso do fundo das águas, como uma ilha nascente capaz de voar por todos os mares que são todas as casas onde dormem os aflitos.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Flores



Quem não conhece a linguagem das flores vivas nunca poderá perceber a idêntica linguagem das flores artificiais.


sexta-feira, 15 de maio de 2020

Arte



‌O problema dos grandes criadores é que criam o seu próprio mundo e ficam nele e pensam que quem não entende o seu mundo é louco ou estúpido ou as duas coisas. Os copistas não têm esse problema. Copiam infinitamente para chegarem ao maior número de pessoas e serão muito conceituados se arrastarem atrás de si um qualquer Manifesto ( os Manifestos são monumentos oficiais de mármore escrito) que lhes diga aquilo que devem ser e fazer. Um Manifesto será sempre ensinar a missa ao Papa e só serve, se lhe der para aí, como matéria prima entre muitos outros Manifestos.  Um grande criador é um absurdo para fora e absolutamente estável para dentro e, em graus de aproximação ao seu interior, é também absolutamente absurdo para dentro e instável para fora. Escrevi é e não "deve" ser. Os que escrevem "devem" são copistas do futuro totalizante que almejam para si e para os outros, e chegam até a escrever Manifestos para isso. Para os grandes criadores só há a efervescência da obra que no seu íntimo é só uma e intraduzível.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

O sonho


Qual vai ser montante da dívida?
Quanto tempo vai durar a pandemia?
Quando teremos vacina ou medicamentos eficazes?
Qual a taxa de desemprego devido ao vírus?
Como vai correr a corrida ao investimento?
Como vamos pagar a dívida?
Como se recupera mundialmente de uma pandemia destas?

A nossa sociedade orgulhosa dos seus feitos e achados não tem resposta para coisa nenhuma. O sonho de Nabucodonosor é recorrente.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Azul cueca



Na Disneylândia anda tudo bem disposto. As cabeças de animais superam qualquer tristeza. Dantes os livros aos quadradinhos eram para serem lidos, agora são para ser. Numa conversa divertida, António Telmo observou que se nos concentrarmos nas orelhas dos interlocutor eles começam a parecer-se com animais. Rirmo-nos todos com esta observação. Constatamos agora que se o sorriso for de orelha a orelha, as pessoas ficam iguais aos bonecos gigantes que povoam a Disneylândia. Por outro lado, com a máscara, as orelhas tendem a sair para fora, mas nem por isso a audição parece estar mais apurada e muito menos a capacidade de ouvir os outros. Já as escutas vão de vento em popa com o Googles e companhias a escutarem tudinho, bem como os serviços secretos e os hackers (os novos mercenários). A burka venceu. Sinto isso quando entro num supermercado com a máscara azul cueca e me esqueço de tirar os óculos escuros. A nossa dignidade é para manter, não há dúvida... sociedade ridícula. O pinto não quer sair do ovo e só lhe dou razão. A minha parte animal está com ele! Juntos venceremos! Não sabemos muito bem o que venceremos mas está-se bem aqui no sono embrionário, o resto, lá fora, é muito estranho. Logo o azul cueca - provavelmente a cor mais detestável tanto para vestir como para pintar as casas por fora. Vou à rua e penso que as pessoas, coitadas, não têm culpa. Mas apetece-me disparar em todas as direções. Tenho violência contida como as mulheres de burka. Estou farta de gente e de opiniões. E de peritos. Os peritos são os piores!!! Abrem a bocarra por detrás da máscara e sabem tudo. O pior é quando um que sabe se confronta com um que sabe ao contrário. Parecem veados com uma rede de cornos enfiados uns nos outros a lutar pela verdade. Autênticos animais. Se vir passar um anjo vou pedir-lhe boleia. Ao menos é diferente. Andar em cima das nuvens fofas e a ouvir as opiniões das pessoas só se quisermos. Aposto que o telejornal hoje vai falar de viroses e de números. Um mundo tão previsível torna-se o lugar ideal para os bonecos da Disneylândia. Por isso andam sempre a rir e bem dispostos. Quando morrerem vão querer ir de burro e de burka azul cueca sem o som das latas que isso é para gente triste. Para os palhaços tristes. Andámos nós a navegar em alto mar para resumir a vida a uma burka, a um vírus, a um sorriso e a um arco-íris "todo bem", todo in.  No outro dia passei na estrada e vi um grupo de miúdos a andar de bicicleta como andavam antigamente, livres e felizes. Parei o carro e disse-lhes para não crescerem porque nós, os adultos, éramos bonecos de Disneylândia, com pernas fininhas, mas com uma cabeçorra tão grande que não conseguíamos ver o caminho se andássemos de bicicleta. Estamos cá para sermos felizes, é sabido. Os peritos até já inventaram um "índice de felicidade" e medem os sorrisos dos bonecos. Depois põe nos telejornais para vermos quem vai à frente no campeonato. Também fiquei a saber que existe o "índice do batom (não estou a brincar) que indica o nível da crise: parece que elas em crise compram mais batons. Agora com a burka azul cueca se calhar tem de se passar para o rímel isto se não formos ao supermercado de óculos escuros. Uma zarzuela é o que isto é, como dizia a minha avô quando a confusão era mais do que muita. Podíamos pôr o planeta à venda como sala de espectáculos, com cenário e actores incluídos. Talvez um ET qualquer o queira comprar só para se rir um bocadinho nos intervalos da sua vida séria. Esses tristes et's nem sabem como isto aqui é divertido senão já tinham aterrado aqui para viverem sempre em festa. O que eu quero é beleza, o resto que se lixe. Que se lixe mesmo. Enquanto não tiverem o sentido da beleza hão-de andar todos tortos, mancos e rotos. Bonecos de burka.

O dia e a noite


Os sonhos podem confirmar o que pensamos e o que sentimos durante o dia. Hoje sonhei que vivia numa casa muito antiga e bela, com mosaicos nas paredes, alguns brilhantes com figuras de animais, pessoas e plantas. A casa situava-se no meio de prédios altos todos de vidro, gelados e iguais uns aos outros sem grande variação de forma ou de altura. Tenho-me recusado a levantar. Não me apetece. E posso. Deixo-me ficar até ao meio dia/uma hora na cama. As minhas noites vão até às três, quatro, cinco, seis da manhã. A essas horas o mundo está com o silêncio com que sempre esteve. Francamente também nunca gostei por aí além dos dias muito pseudo-diurnos. A noite foi sempre muito mais solar para mim. Lá passa-se mesmo tudo. O dia é para os loucos que pensam ser muito activos, pró-activos, dinâmicos e aerodinâmicos e que pensam que no dia se passa tudo por causa deles.  Desvairados, na sua grande maioria. As manhãs, no seu início, trazem a candura da noite e, a pouco e pouco, à medida que as horas passam, a cor do dia torna-se mais baça e sofucante. Este vírus e todo o seu contexto levou a discursos patéticos como "o mundo não será mais o mesmo". As pessoas estão desejosas de que seja mais o mesmo e que haja mais do mesmo com a diferença de que agora podem usar máscara sempre que alguém lhes diga para as usar. As pessoas querem exactamente o mesmo que tinham e querem ser exactamente o que eram: cada um com a sua vidinha, o seu meio de sustento, a sua poluição de estimação, os seus pseudo-direitos assegurados, os seus deveres de obidiência à pseudo-ciência devidamente estimulados. Resumindo, as pessoas querem estar vivas (a morte numa sociedade laica é o grande pesadelo) e querem números. Não querem mais nada. Querem mais canais de televisão, carros mais rápidos e modernos, aviões super lotados, mais pessoas a fazer turismo (a qualidade não interessa para nada), mais dinheiro, mais modas, mais qualquer coisinha se faz favor. Se possível à custa dos que têm menos. As pessoas não querem comunidades de pessoas, querem, ora um comunismo, ora um feudalismo com o seu senhor, alternados ou em simultâneo, que é exactamente a mesma coisa. Não vai mudar nada, a não ser para pior. Vamos ter a já costumeira "recuperação da crise" para que se passe rapidamente à normalidade, à vida normal e às pessoas normais que vão votar quando lhes mandam, agora talvez com maior intensidade porque o governo as salvou de uma morte "iminente". Este vírus mata tanto como a gripe, mas a gripe  mé ligeiramente mais arrastada no tempo, a única diferença está nessa rapidez e a ausência de camas nos hospitais dá mais nas vistas como deu em Espanha e em Itália, hospitais pagos pelos contribuintes. Este vírus é apenas mais vistoso com um ou outro caso de reacções surpreendentes: diz-me que um chinês ficou preto! Devia ter acontecido ao Trump! E há pessoas que conseguem falar quase sem oxigénio! Espantoso! Deve ser uma preparação para Marte!  A democracia quer-se vistosa e espampanante. É o sistema do folclore, agrada a eleitos e eleitores e cerca-os a todos num caos delicioso que todos deglutam até ao osso, até não haver democracia nenhuma apenas a ditadura de grupos económicos, políticos, científicos, académicos, de comunicação social.  É uma democracia composta por pequenas ditaduras que asseguram o funcionamento da "liberdade de expressão" geral e das pequenas ditaduras que, somadas, formam a grande ditadura difusa como uma nuvem. Irrespirável. O centro deixou de existir o que existem são vários centros à imagem e semelhança do caos. De maneira que as pessoas querem mais do mesmo. E se possível pior ainda. Prefiro a noite.

sábado, 2 de maio de 2020

Civilização e barbárie


Os lobos e os cães são aparentados e muito parecidos. Bem conversado, um lobo torna-se um animal doméstico (que foi o que aconteceu aos cães), abandonados, os cães, formam uma matilha e tornam-se lobos (com um cabecilha). Quando colocamos lobos, cães e ovelhas em jogo, o que acontece é que a leitura humana coloca o lobo como inimigo. O lobo ataca as ovelhas que tanta falta fazem aos humanos e o cão torna-se amigo porque defende as ovelhas que tanta falta fazem aos humanos. Os humanos, por sua vez, precisam apenas dos animais domésticos, os cães e as ovelhas e dispensam o lobo, condenado a errar pelas montanhas por não ser um sujeito simpático e atacar antes de cumprimentar. Os humanos e os cães, cumprimentam sempre antes de atacarem, ou seja, apenas antes de se servirem uns dos outros. Têm essa coisa do cumprimento que os distingue. As ovelhas e os lobos não cumprimentam ninguém, andam para ali, uns a atacarem as ovelhas e as outras a atacarem o pasto. O cumprimento é o passaporte para uma hierarquia, bem lá no fundo, baseada apenas no próprio cumprimento. O cão come carne que até pode ser de ovelha e o homem faz o mesmo. O homem, que se gosta de confundir com as ovelhas, come ervas e carne. O homem é um grande lobo com a capacidade de não só cumprimentar como de fundar toda uma hierarquia a partir do cumprimento. Antes de se entrar num grande baile de animais devemos ter isto em conta. Isto se quisermos entrar num grande baile de animais. Mas na verdade, como diz Guénon, alguns não entram na dança macabra, já estão fora dela e tão fora dela que se tornam intocáveis. A hierarquia desaparece por excesso de qualidade. As pessoas verdadeiramente distintas são assim, as restantes passam a vida a utilizar metáforas para ver onde se encaixam melhor, se nos lobos selvagens, se nas ovelhas, se nos cães ou nas pessoas pouco ou nada diferentes umas das outras. Aquilo que as pessoas verdadeiramente diferentes fazem é constatarem, do lado de fora (porque não se encaixam em lado nenhum) o que se passa no palacete decadente (à imagem da nossa civilização actual) e observam o baile autofagico onde todos dançam conforme a música. Os que ficam de fora, não querem saber se são lobos, ovelhas, homens ou cães e cumprimentam se quiserem.