quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A Questão

 


Já alguns me disseram não entenderem o que escrevo. É natural, acabamos com um pensamento paralelo porque temos também uma vida paralela. Mas tudo parte sempre do mesmo: a tentativa de explicação das coisas, não apenas teoricamente, mas efectivamente, na vida como acção. Embora não entendam, sei que podem entender se perceberem que se tratam de tentativas de explicação. Não são verdades absolutas, embora possam dar essa impressão. Cada vez me preocupo menos com o público na exacta proporção em que ele cada vez menos procura explicações para as coisas. Aliás, o público não me diz nada porque a sua função é estar calado e, na maioria das vezes não está, o que dificulta, e muito, a minha aproximação ou proximidade para com o público. Não está calado por uma de duas razões: no momento da leitura está ocupado a dizer que não entende ou então está ocupado a dizer que discorda sem perceber porque é que discorda. Os primeiros instalam-se confortáveis na humildade de não saberem, o que os impede de serem ousados, os segundos, instalam-se na ousadia de saber mais do que o texto, o que os impede de serem humildes. É assim que os textos não são feitos nem para gregos nem para troianos. São feitos para Egípcios. Evidentemente que poucos entendem o que quero dizer com isto, mas posso explicar: a Grécia mergulhou na Era da Filosofia e da Política, os Egípcios deixaram-se submergir, primeiro com o dilúvio, depois com a decadência natural que esse mesmo dilúvio trouxe: a inauguração desta Era do Fim. Com eles, a Sabedoria que ainda existia foi-se tornado ténue até que se dissolveu em águas turvas, característica do afastamento da Tradição. Tal como os seus antecessores pré-diluvianos, deixaram-se encantar pela magia e acabaram por alimentar monstros invisíveis que não se coibiram de crescerem e de aumentarem em número à medida que provocavam o desgaste do povo egípcio, cada vez mais decaído e confuso e mergulhado nas vicissitudes da política. Escrevo única e exclusivamente para os resquícios da memória e para os já avisados de que há monstros invisíveis que não devem ser alimentados, sob pena do desaparecimento daqueles que os alimentam. Nada, ou quase nada me agarra ao mundo ou à escrita (que para mim é quase a mesma coisa, infelizmente), excepto está sensação de dever. O prazer é quase nulo. Prazer sinto em enfeitar o mundo. As palavras só me provocam desconforto e tornam os outros desconfortáveis, exactamente o oposto do que acontece quando enfeito o mundo. As palavras são duras porque o mundo se tornou num lugar duro. Há quem pense que se escrever sobre borboletas ou flores e teimar em descrever a paisagem intacta dentro de uma moldura fotográfica que faça a separação entre o belo e o horror da construção humana actual, o mundo se torna subitamente belo. Más notícias: não são as palavras que tornam o mundo belo, é o facto de o enfeitarmos que o torna belo. As palavras só servem para despertar e ninguém acorda neste mundo como se acordasse no paraíso com um sorriso nos lábios. Acorda-se mal. Para um mundo que está mal e que é urgente enfeitar, tornar belo. E a beleza está no antigamente e está lá porque era total. O equilíbrio, a harmonia, a sabedoria conjugavam-se como hoje não se conjugam: se está presente um destes elementos, falta um outro e vice-versa. É essa totalidade que nos faz sentir a Saudade. Uma completude que hoje não temos. Se me armar em santinha e dizer que a paisagem é linda vista apenas de um pequeno ângulo, e apenas desse ângulo, não faço outra coisa senão enganar as pessoas. E pior, enganar-me a mim. Os outros já vimos que não querem explicações para as coisas ou porque segundo eles "não têm capacidade para tentar tê-las" ou porque "são super-capacitados" e já as têm". Escrever nunca me fez bem, nem o que escrevo é um acto de cura para quem quer que seja. Os que estão doentes devem dirigir-se ao médico, os que estão cegos e surdos (e nunca mudos) devem destapar os olhos e os ouvidos, acto que não é a cura de coisa nenhuma excepto da inacção de não os destaparem. A inacção nunca foi uma doença, é apenas uma opção. Esta é a questão. A da caveira é outra coisa, Shakespeariana, até porque a caveira já nem vê, nem fala, nem come, não faz nada a não ser esperar ressurgir vivificada em carne ou em luz, conforme os casos. Aqui a questão é muito mais simples, muito menos complexa (normalmente preferem Shakespeare porque é mais difícil ainda...), aqui a questão é a de ver e ouvir com ossos envolvidos em carne, em sangue e vida, algo que constitui o público. E, no momento em que começam a ver e a ouvir começam também a lembra-se e, aí, entendemo-nos porque escrevo apenas para os antigos egípcios, ou antes, para os resquícios de memórias, estejam elas onde estiverem. Até podem estar aqui, em Portugal, mas se não forem memórias, não são nada. Só quando nos lembramos é que podemos avançar e começar a ler então a questão Shakespeariana. Que nem sequer é dele. É de todos. 



terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Larvas de insectos



No fundo, o que lhes interessa é a tecnologia. Não é a ciência em si porque essa, do modo como anda, conduz inevitavelmente ao erro: a especialização esbarra sempre com outras especializações e ficam a orbitar umas em volta de outras, num ciclo sem fim, à procura da saída de si próprias, tarefa impossível num mundo quantitativo. É a tecnologia que fascina por ser precisa (dentro de determinados parâmetros) e por gerar lucro e ainda pelo facto de se confundir tecnologia com evolução sendo esta última considerada algo muito positivo embora não se perceba qual é o seu fim último, nem,  na verdade,  isso interessar a quem tem como objectivo último o lucro. Em suma, vivemos num mundo estúpido e arrogante. A mim, deixou de me interessar. Sempre que ouço alguém encantado por este canto da sereia, faço orelhas moucas. Os tiques e truques são sempre iguais, é a história da salvação contada aos pequenos robôts. Atrevo-me a sonhar com Deus durante a noite e acordo desconfiada relativamente à reprodução por réplica. Foram as fábricas que conduziram a isto. A replicação insensível e desalmada dos objectos conduziu à replicação dos seres humanos. Tudo o que fazemos e o modo como o fazemos conta. Se nos pensamos e vimos como máquinas, ou como parte de uma máquina, assim seremos e assim será a nossa vida porque nos comportamos com a imagem que construímos de nós mesmos. Descartes deve estar a rir-se. Bastante. Embora tenha sido o seu Deus mecânico que o impediu de ver muitas coisas, ele agora ri-se. O seu impulso para estar bem com Deus e com o diabo tornou-se letra viva. Bem, viva, mas dentro das possibilidades mais pequenas da vida, ao nível dos insectos. É aliás a visão das próprias sociedades actuais vistas de cima: carreiros de insectos, incansáveis e velozes. Um ser contemplativo estraga o panorama. Como é que se avisa um bando de loucos? Não se avisa. Os loucos estão loucos, é essa a sua condição. Ninguém de "deslouca", embora todos se desloquem na loucura geral. Há trabalhos que não valem mesmo a pena. Há outros que valem a pena. O trabalho interno vale a pena. Feito em nós. Uma escuta inscutável pelas escutas tão em voga. 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Lua Nova


 Diminuí a lua de propósito. Não vale a pena espelhar o sol para cegos. Diminuí o mundo porque não vale a pena um mundo sem graça. Observo da minha janela os transeuntes e são tão iguais ao que eram há dez, cem, mil anos. Normalmente o que escondem não é bom. Quase ninguém tem bons segredos, segredos grandiosos, vindos das planícies do céu. Encerram o tenebroso, o embaraçoso, o vergonhoso ou, simplesmente, o nada que carregam às costas e que se vê nos olhos. Hoje disseram na TV que o Rendeiro quando foi apanhado estava com um olhar vazio. Ele sempre teve um olhar vazio, como a maioria dos homens actuais. Somente algumas crianças ainda conservam um olhar acesso e vivo. A vida vê-se pelos olhos. Há também muitas crianças que já trazem o mesmo olhar vazio como uma marca do vazio futuro. Sinceramente já não me preocupo com o olhar vazio. Ainda pensei poder despertar este ou aquele com algumas palavras, mas a decadência do mundo é demasiado forte e visível para lutarmos contra ela. É até um acto de justiça fazer a negação da luta. Seria injusto não o deixar decair e não deixar que o fim de ciclo se cumpra. As sementes, que se podem deixar, são, por definição muito pequenas e invisíveis, escondidas na terra. São as únicas que germinam, as que estão escondidas a qualquer olhar. Prolongo o gesto de olhar o olhar dos animais e de ver neles a alma que falta aos homens. Seria bom poder dizer que um novo mundo está prestes a surgir, uma nova Era, e andar vestida com túnicas a sorrir, descalça num tapete de flores. Seria mais agradável ler isso do que estas letras de nevoeiro entristecido. Mas, a mentira é a grande inimiga da verdade. E a verdade é coisa inexistente num caminho mais além. Mais além, o que há, é uma ligação ao céu. Se quiserem chamar-lhe verdade, pode ser esse o nome. Mas nunca a mentira. A verdade é um nome, a mentira é um facto. Olhar para uma casa e ver de imediato todas as divisões é tão entediante como a desventura de uma verdade todos os dias dita. Daquelas verdades estúpidas como quando dizemos as horas a alguém. Permitam-me que vos diga que acho pouco ou nenhum interesse naquilo que escrevem. Escrevem como se dissessem as horas a alguém. Ou então mentem e dizem que é ficção. Tanto faz. A matéria é sempre desinteressante. O assunto, um dejá vu, os factos inoperantes. Restam os assuntos tomados sob a perspectiva pessoal e intransmissível, os únicos que valem a pena. Aqueles que são as tais sementes escondidas na terra, o gesto simples e humilde de querer saber mais um pouco. O resto é puro espectáculo, sem a grandeza do espectáculo. Um imenso espelho onde se banham os egóicos que nunca se cansam de si mesmos e julgam salvar o mundo ou que o mundo não se salva sem eles, o que para eles é a mesmíssima coisa. A lua, quando está mesmo diminuta, é lua nova. Invisível como as sementes e, o mundo, quando perde a graça, abandona-se a si mesmo num invisível que não compreende. É por isso que vale a pena não espelhar o sol e deixar que a inconsciência seja dona e senhora do momento, porque mesmo sem o saber, ela vagueia no invisível céu que desconhece e não alcança, enquanto ele, o céu, é dono e senhor de si e trata o mundo como um súbdito a quem dá algumas migalhas do banquete quando se lembra ou quando quer. 

domingo, 12 de dezembro de 2021

Portugal


 No meu caso, foram os genes e a memória ancestral, que não se sabe bem donde vem, que me trouxeram à consciência Portugal. Isso e o avião que, aos oito meses me fez regressar a este país. Livrei-me de educações tendenciosas exactamente na idade em que era suposto tê-las tido e, por isso, não sou católica, nem andei vestida de anjinho nas procissões. Portugal chegou até mim a partir de dentro, que é aliás donde deve vir sempre para não fazermos figuras ridículas. Assim, não caímos na piroseira do menino Jesus vestido com rendinhas, nem na armadilha do bicho-papão do "pecado", nem na pata do Portugal cinzento e salazarista, amorfo e atrasado, triste, imensamente triste, se posto lado a lado com a sua grandeza histórica. E, pior do que isso, criador de gerações que não se livraram não só do cristianismo sentimentalista como de pedir penitências a toda a hora e de lavar sistematicamente os "pecados" com água benta só porque a água lava tudo... o meu primeiro Portugal foi marinho, como aliás deve ser qualquer Portugal decente. Nascido no mar, imbuído de maresia e com memórias mais antigas do que qualquer lembrança palpável. O meu segundo Portugal, foi da terra. E lembro-me de instantaneamente, com cinco anos, ter decorado a letra de um cante alentejano, "Ao romper da bela aurora", a primeira vez que o ouvi, tal a impressão que me causaram aqueles sons graves e lentos. Depois foi o Norte que reconheci imediatamente como berço. Tudo era um reconhecimento e, daí, vir de dentro este Amor. E certo e verdadeiro e muito longe de estereótipos. A quem são dadas as injecções culturais e conceptuais em vigor no momento é-lhe vedada a porta ancestral. Confunde-se Portugal com a Miséria propagada pelos lares, com a ausência de Espírito Crítico, propagada, muito mais do que se pensa, pelo Tribunal do Santo Ofício, com capelinhas-refúgio e templos de má-língua, com procissões incensadas a cânticos de igreja profundamente enjoativos e mal cantados e herda-se esse desespero cego infligido durante séculos a tal ponto que a vida se torna uma tentativa frustrada de santidade disfarçada com laivos de Descobertas e medievalismos importados da Europa sem se colocar os olhos nas escarpas, nos abismos, nas enseadas, e no pulsar da terra e dos tambores. Até Cristo se enjoa do tanto de errado que se fez em nome Dele. Quando apareceu em Ourique, preocupou-se com as gerações vindouras e com o território português em si: um país a meio caminho de se tornar completo e com um perfil único e não com o facto de sermos ou não santos. A missão de Portugal é a de ter gente igual a si própria e única e é nisso que, no meio de tantas tormentas, ainda conseguimos ter, embora cada vez mais, aqui e ali, sendo que o "aqui e ali" tenha vindo a sofrer um espaçamento cada vez maior. O reconhecimento de Portugal obriga a um certo silêncio, a uma certa pré-disposição interna porque consiste num chamamento. Sem esse silêncio aquilo que existe são pre-conceitos, primeiro infligidos e, com o passar dos anos, auto-infligidos e repetitivos. São as manhãs que são sempre frescas, quando a terra desperta e o mar aquece. E nelas há uma limpidez primeva que não se alcança se pensarmos que somos cavaleiros disto ou daquilo e que temos como missão "puxar" outros para serem como nós. Deus só nos pede que sejamos iguais a nós próprios e essa é das missões mais difíceis do mundo, porque o sonho do que somos como pessoas e como país é Absolutamente Abstracto. Mal começa a ser definido cai no dogma, na facção, no Partido. Essa unidade de alma entre nós e o país é o segredo mais bem guardado, na caverna mais secreta, entre o mar e a terra. É um diálogo íntimo no qual nenhum, nem o país, nem a pessoa se perde, e os dois se perdem um no outro, em fusão. Como se vê, isto nada tem de estereótipos enquadrados em qualquer tempo ou evento meramente cultural porque se trata de um diálogo entre almas genuínas ao longo do tempo e em movimento. É a seiva do país. E nos sabemos qual o papel da seiva, mar terrestre, na árvore da Vida... 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

O Barroco do Barroco

 


Já muito se sabe da aproximação que existe entre o Barroco ocidental e o Zen, mais propriamente o Zazen Oriental e da forma como esta última corrente (no sentido tradicional de transmissão), provinda inicialmente da Índia e das práticas meditativas, absorve a influência do taoísmo, ou seja, do esoterismo chinês. Os opostos, as contradições, os aspectos complementares tendem a ficar unidos. No Zazen, por exemplo, o mestre, quando o discípulo em prática meditativa tende a adormecer, desperta-o com uma pancada dada com um pau. A calmaria contemplativa a par com alguma violência. No Zazen, certas partes do corpo devem estar contraídas e outras descontraídas. É uma prática baseada na aparente contradição. No Barroco ocidental, o "chiaroscuro", produz exactamente o mesmo efeito. A Alquimia, procura também a união dos opostos ou melhor, dos complementos. O espírito Barroco é complexo porque é algo que não se adquire, nasce-se assim, o que o torna incompreensível aos filhos exclusivos da racionalidade e aos seus netos, os racionalistas. Nesta época minimalista e facciosa, o Barroco é mal visto ou então é mal compreendido. No seu íntimo, ele abrange as contradições sem se contradizer. No minimalismo não há contradição, há uma repetição sem fim igual a si própria. Deste modo, uma das características de Kali Yuga, é a não variação e a instalação das ditaduras que nos dão a falsa percepção de que tudo está em movimento, quando, na verdade, há uma tendência para a estagnação, para a paragem, para a inércia. No minimalismo, a vertigem mantém-se igual a si própria por tempo indefinido. No Barroco, a "vertigem do Barroco" conduz efectivamente ao desmaio, à perda de sentidos e, por isso, à entrada numa outra dimensão. Os limiares são muito importantes, mas só são importantes se existirem de facto. Se forem uma mera abstracção ou ilusão, como é o caso do ciclo vicioso do espírito minimalista, conduzem apenas à angústia. Não direi que um filho do racionalista ou que um seu neto, imbuído de racionalismo sintam angústia perante um espírito Barroco, até porque não necessitam do Barroco para se sentirem angustiados uma vez que é essa a sua condição, mas que se parecem com boi a olhar para um palácio fazendo os comentários mais despropositados, disso não restam dúvidas. Não é correcto dizer que "parecem", são, sem sombra de dúvida, bois a olhar para um autêntico palácio porque outra coisa o Barroco não é, e, quem os vê de fora, a esses dois espíritos, frente a frente, mirando-se, não pode deixar de notar que um racionalista frente ao Barroco é um retrato vivo do "chiaroscuro", a maior prova de que o Espírito Barroco absorve qualquer racionalista, sempre que quer e se estiver para aí virado. Todas as verdades altamente congruentes de um Espírito congruente, são há muito um aspecto, e apenas um, de um Espírito Incongruente. A própria língua o admite, antes de existirem incongruentes tiveram de existir primeiro os congruentes, só mais tarde, e devido a um requinte da volta da cornocópia (que dá tantas voltas quantas as que quer) é que o prefixo "im" é acrescentado à palavra "congruente", tornando-a definitivamente completa em si mesma. É por isso que se desmaia. Se sai de si. Se entra em êxtase. Algo que qualquer racionalista ignora e, em casos extremos, chega a fugir a sete pés. Como os pés são sete, nem assim se escapa totalmente ao abraço do Barroco. O Sete, e o "T" andam lado a lado, tal como o "Y". E causa pânico nas encruzilhadas. Ou talvez não, depende do Espírito que viaja. Por vezes, há a calma do desmaio, os sentidos cessam e dá-se início ao início. 

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Os três pescadores


 E, eis que três pescadores entraram pela galeria adentro tendo um deles exclamado para os outros: "Isto sim, é arte". Já me habituei a esta dicotomia entre intelectuais e gente aparentemente simples. Os intelectuais não apreciam, nem percebem o que pinto e os "simplórios", mais genuínos, e com as memórias ancestrais ainda activas, possuem o gosto específico, espontâneo e sem filtros de qualquer espécie e soltam uma exclamação positiva, absolutamente verdadeira. Daquela vez foram três pescadores, mas, já antes deles, e sem contar com as crianças, tinham sido canalizadores, empregadas domésticas, transeuntes que passavam na rua, numa das muitas mudanças que fiz. Paravam e gostavam, simplesmente. No fundo, só as almas antigas, camufladas em profissões ditas menores e muito longe da nossa intelectualidade cosmopolita reconhecem aqueles símbolos que os fazem despertar subitamente para a realidade verdadeira que consigo trazem. A minha desconfiança para com os intelectuais provém muito de ter observado neles a capacidade de dizerem gostar tantos dos "horrores" modernos, como das obras modernas sem qualquer Graça e, em simultâneo, afirmarem a genialidade dos antigos mestres de pintura. À minha pintura, quanto muito, chamam-na de "bizarra", quando não coisas piores e isto quando se resolvem destacar do total silêncio para o qual, a maioria dos intelectuais se remete, como se fosse proíbido pronunciarem-se sobre o que faço.  Esses mesmos intelectuais têm súbitos ataques de paixão pelos simplórios sempre que estes lêem um livro. E espantam-se, e maravilham-se, no seu jeito paternalista: "Ai, que bom! Tão simples e lê!" Quase como se os simplórios fossem candidatos a um lugar na intelectualidade, ainda que muito nos começos... A mim, o que me espanta são esses intelectuais dúbios na questão do gosto que, por serem tão flexíveis, acabam por gostar mais do prestígio do que de qualquer outra coisa. Na verdade, o que me espanta é que os intelectuais leiam e não aprendam nada, nem de integridade, bem de beleza, algo que os simplórios trazem com eles naturalmente. Mas, como o mundo anda às avessas, o melhor é encolher os ombros e deixar os intelectuais no seu posto, felizes consigo próprios, mesmo que não entendam nada do que é, verdadeiramente, a ancestralidade, e lendo-a às toneladas. Os três pescadores andavam à pesca da força, da beleza e da sabedoria. E quando a encontraram, como bons e experientes pescadores que eram, reconheceram-nas imediatamente. E isto, muito provavelmente, sem ler. Mais difícil do que o armazenamento de palavras e de livros por parte dos intelectuais, é esvaziarem-se eles de tudo o que pensam saber. Talvez só assim se deixem de um paternalismo quase ofensivo e produto da inversão a que se assiste. Evidentemente que o paternalismo é conveniente para se manter um terminado estatuto. Sabendo, (mesmo que a negando por causa dos dividendos políticos da Revolução Francesa) da existência de hierarquia, utilizam-na a seu belo prazer sem saber que qualquer pescador se encontra hierarquicamente acima de qualquer intelectual actual que se limita a ser um seguidor de estímulos externos e não internos. É uma boa jogada, esse aproveitamento da hierarquia que negam e recusam, só que não engana quem lhes está hierarquicamente acima, por mais livros que mostrem ao público e por mais escritos que revelem a sua suposta cultura. Temo bem que a minha pintura acabe por ser um teste que apenas os mais simplórios conseguem passar. E não há nada de simples no que pinto. O luxo simbólico que vive da memória do futuro é algo só desvendado aos ricos em Espírito. Mesmo que sejam pobres em letras, o seu Espírito está activo. E não há jogadas. É algo instantâneo. Tão natural que toca o sobrenatural ou tão sobrenatural que toca o natural. Depende do ângulo de visão. É uma questão de linguagem. Uma linguagem inacessível ao entulho intelectual português que se afastou da ancestralidade, embora a destaque como coisa muito nobre e importante. Não se decidem, na verdade: querem uma igualdade com toda a força e resistente a toda a prova e da qual eles próprios são a referência que contradiz essa mesma igualdade. "Ele, até lê... é quase como eu...". 
Pela minha parte posso dizer, logo eu que não acredito minimamente na igualdade: "Ele vê! Ele é como eu!". 

sábado, 4 de dezembro de 2021

A diva






De maneira a não nos desfazermos em lágrimas convém a não feitura da representação de uma diva. Caminhar, antes, por entre as anémonas deste aquário de maneira a que elas nos julguem peixes. O problema das divas é o esgotamento e o rosto triste e fragmentado quando, à noite, naqueles minutos antes de adormecer, se olham ao espelho. É uma guerra inglória que, embora não faça perder a alma, a conduz ao atraso na grande viagem que é a vida. Enquanto a diva serve de alimento pontual, porque é sempre pontual, aos homens, atravessar as águas como se fôssemos um peixe, permite-nos a escuta interna e também o passatempo, sempre voluntarioso (e nunca obrigatório) de uma certa lembrança aos homens do céu que ora esquecem, ora perseguem. A questão do facto de ser pontual ou não, neste caso, já não é da responsabilidade das divas, mas sim dos homens e, assim, a liberdade é muito maior e, essa escuta interna, é muito menos interrompida pelas necessidades de defesa que uma diva sempre acarreta. Essa aproximação à liberdade, sempre presente, foi-nos ensinada por quem já era livre há muito. E foi talvez o ensinamento mais precioso que nos foi dado em vida, porque, para além de ser um ensinamento, é sobretudo um segredo. Essa aproximação e o modo como é feito é indissociável dessa escuta interior. Às divas é dada a eternidade pela memória que deixam e que abandonam, aos seres livres é dada a memória da eternidade que alcançam e fruem.


quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A professora

 


Olá Fernando, mais uma vez.


Escrevo-te para te dizer que hoje ouvi a professora dizer que até não desgostava da tua poesia, mas que eras um anormal, um desequilíbrado.
Nada como um poeta das nove às cinco, provavelmente estendendo o dígito ou passando o cartão para marcar o ponto. Um poeta certinho, sem tempestades. Um poeta da bonança dos bairros periféricos de uma cidade perfeita.
Cansa-me esta gente que tenta conciliar a suposta normalidade com a arte. Parecem carneiros a dar o grito do Ipiranga quando se encontram cercados.
Se não entendem a anormalidade da arte, não entendem a normalidade dela. E muito menos a sua enormidade.
Queriam um poeta menos bêbado, um não-fumador e papéis A3 imaculados e brancos, talvez completamente brancos e lisos sem o incomodo das letras, sem a mancha do texto.
Ainda não perceberam que a tua poesia e os teus escritos não são para gostar. Não são um gelado no Verão. São um banquete que conduz a uma brusca paragem de digestão.
A indegestão das palavras mostra que nem uma vida chega para as digerir.
Queriam o quê? Um formulário breve de "como se deve viver"? Uma observação clara do óbvio enfeitada com borboletas e passarinhos? Queriam o quê? Amar perdidamente sem perdição alguma? Que ensinem, então,  a matemática toda e pensem assim ter encontrado Deus nos números. Mas que Ele, seja analfabeto e não saiba o perfume das letras.
Estes monstrengos que rodopiam três vezes para ficarem no mesmo lugar são o maior susto da civilização. O bicho-papão autêntico, em pessoa, invadindo as salas de aula. O maior castigo em forma de "ensino obrigatório". O grande trauma da competição para ver "quem é mais normal". A brejeirice encarnada nos assépticos do "gosto e não gosto", substituindo o pensamento.

 Só no fim, bem lá no fim, se pode encontrar o verbo "gostar", naquele momento da retoma da paragem digestiva, naquele momento em que a má disposição se acalma um pouco e, ainda de rastos, voltamos a respirar e nos damos conta de que, por momentos, deixámos de existir, quando entendemos que não entendemos nada da nada, que não sabemos nada, que não somos nada, excepto ilhas rodeadas de dúvidas. O "gosto", é para esses anormais.


As viagens e a memória

 


A delícia das viagens reside na sapiência de que nada sabemos e que somos pequenos em comparação com o grande mundo. Essa pequena delícia permite-nos o ofuscamento voluntário e o deslumbramento involuntário. Trago, dentro de mim, viagens das quais já não me recordo porque foram directamente para os ossos e ficaram presentes na estrutura interna, alicerçadas a uma verdade qualquer. Aliás, esta estranha capacidade de nos esquecermos é suspeita. Dizem que com o passar dos anos, a infância vem voltando em revoadas inesperadas, mas essas são memórias do realismo nítido com que as crianças absorvem o mundo. Há outras memórias das quais não se fala, porque não se pode falar. São as aprendizagens Reais com que vivificamos os ossos no Juízo Final. O segredo delas é estarem presentes, incrustadas e são assintomáticas, excepto, talvez, em certos olhares que deitamos ao mundo, certas compreensões inesperadas, em certas certezas incondicionais. E as palavras nunca chegam para nada por serem demasiado ou de menos nesta passagem pela vida que é uma espécie de morte naquilo que tem de vaso receptivo ao orvalho do conhecimento banhado pela luz. Quanto mais silenciosos nos encontramos, mais as energias internas parecem brotar como represas que se abrem deixando deixando fluir as águas na sua grande viagem em direcção ao mar. Como explicar, e com que palavras, que de certas viagens trouxemos os deuses connosco, encontrados agarrados às pedras, e que eles perduram vivificados pelo nosso próprio sangue?