quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Política e Analogia


A política deve submeter-se à capacidade analógica, e a capacidade analógica, submeter-se à evidência da analogia que, por sua vez procede do pensamento simbólico com raiz no próprio símbolo que é sagrado. Há cada vez mais pessoas com incapacidades graves no desenvolvimento do pensamento analógico e simbólico,  entre elas encontram-se numerosos políticos. O Trump e o Bolsonaro fazem parte dessa lista, mas também o nosso mui socialista António Costa disse há dois dias não possuir capacidades esotéricas, rindo-se muito, bastante alegre com o facto, até. Em suma, da casta dos Brâmanes nada tem... Ora o esoterismo vive, em grande medida, por essa capacidade de desenvolvimento de um pensamento analógico e simbólico. Essa é também uma marca de génio como tão bem escreveu Pessoa, a capacidade de relacionar coisas aparentemente sem relação. O carisma de Costa é alegremente anunciado por ele próprio como não existente com um largo sorriso... Porque o carisma anda pelos palácios do simbólico, pelos templos do sagrado, pela unção divina...
Ser Primeiro Ministro, Presidente da República ou Presidente de um país não é possuir um cargo comum, mas torna-se vulgar, corriqueiro, quando é exercido por pessoas comuns. Torna-se em nada de especial, e esse "nada de especial", pode afectar o planeta todo, também ele tornado "nada de especial", igual a Marte, ou a Júpiter. Temos então o mais profundo desprezo enraizado nos nossos líderes pelo próprio planeta que, à sua imagem e semelhança, passam a não ser nada de especial. É assim que, a par com os plásticos no oceano, a praga dos incêndios, e outras coisas "lindas" que se vão fazendo, temos os homens vulgares a lerem a realidade. E lêem-na como nada de especial. Até lhes faltar o ar, a água, o alimento.
A citação da foto foi retirada de um fólio de apontamentos de Leonardo Da Vinci, esse ser fora do comum. Podem encontrá-lo no livro "Leonardo Da Vinci" de Walter Isaacson, publicado pela Porto Editora, na pág. 461. E já agora ler o livro todo. Numa época de pessoas vulgares por todo o lado, ler sobre a vida de alguém que não o foi é uma espécie de balão de oxigénio.

Alvalade chama por mim


domingo, 25 de agosto de 2019

Oh!



Em todos os séculos
No fim do mundo
Na estrada acima da cidade
Nas escarpas urgentes de mar
Nas vigas dos mastros
Nas coroas reais
Nas hostes perdidas
Nas alturas do ser
Por entre as frestas do pensamento
E nas margens do esquecimento
Na memória que amanhece devagar
Nas dores de um parto a chegar
Oh,  Luz!



(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O anjo



(Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)


Não há grandes sonhos por aqui, todos os sonhos são práticos se queremos sonhos maiores. Como se fosse essa a condição do abraço de um anjo. Hoje, em vez de perguntar a alguém se estava com fome, perguntei se tinha saudades de se alimentar. Foi o trampolim da frase que o fez rir. Há diferenças entre ter fome ou saudades de alimento. Evidentemente que tinha sido o abraço de um anjo que me fez subir o degrau dos sentidos e da semântica. Às vezes penso que ele me acompanha só para poder ouvir as suas palavras na voz de uma pessoa. Precisa de intérpretes como qualquer bom compositor. Ele sabe que tudo é reciclável. É um criador, aproveita todos os silêncios como se fossem possibilidades de preenchimentos. E são. E aproveita todas as coisas, que vê, ou me diz para eu ver, como se fossem sonhos práticos que ele sublima com o seu espírito para se tornarem sonhos maiores. Nunca usa a palavra "lembrança", usa sempre a palavra "saudade", e nunca usa a palavra "paixão", usa sempre a palavra "imensidão". Deixa-me descansar, outras vezes, não; deixa que eu exista, outras vezes, não. Sabe que o mundo me sugou os sonhos mas também sabe que os sonhos do mundo não são do mundo. O mundo nunca sonha consigo próprio, só sonha para além de si, nos braços de um anjo.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Estelas

Pintura de Cynthia Guimarães Taveira

Tive a sorte de encontrar quem fizesse da mesma forma e com a mesma linguagem. Na verdade, é uma coisa antiga isto das estelas que funcionam como estrelas. E esta coisa do repentismo, de não se pensar muito nem racionalizar demais. Evidentemente que quem encontrei sofre também da total, quase total, incompreensão dos outros que estão muito mais bem adaptados a estes tempos modernos. É certo que, antes de o encontrar a ele, encontrei uma cápsula do tempo primeiro que me levou a esse mundo onde as nossas essências da mesma linhagem flutuam e se mantêm constantes enquanto este mundo precisar. Precisa cada vez menos por não compreender e precisa cada vez mais pela mesmíssima razão, na verdade. Para ser precisa isto das estelas e das estrelas e das flores é fundamental para o rito que é, ou deveria ser a própria vida. Um rito que se vai anulando, desaparecendo a pouco e pouco porque, às tantas, já nem é necessário. Não como esta sociedade moderna desritualizada. Não. Essa nem chega a passar pelo rito e, por isso, não percebe nada de estelas, de estrelas e de flores. Pensam que inúmerar as espécies é o suficiente para serem entendidos na matéria. Um pouco como a história que seduz, factual mas sem interpretação. Na verdade isto das estelas tem que se lhe diga. São concentrações energéticas e de outro plano. Não tem nada a ver com os sonhos e as divagações que são úteis como uma valsa rodopiante, onde se executam os movimentos e nos habituamos a coordená-los. A estelas são de outra ordem. São estrelas fixas, pontos de encontro, pontos de fuga e pontos de orientação. O seu espírito é quase inacessível na sua plenitude. Não há nelas ausência total de movimento, antes pelo contrário, o movimento é tão rápido que se torna um salto entre mundos. Há uma respiração própria nelas, uma fixação que é, em simultâneo, um movimento. Tais coisas passam despercebidas a quem não é da mesma linhagem ou a quem se afunda na técnica, nas metáforas geométricas ou na perfeição da pincelada. Na Estela, nas Estrelas e nas Flores não há nada disso. Andamos todos demasiado descontraídos para tais precisões. A nossa precisão é outra e vem doutro lugar. Efervescente de liberdade. Depois esse espírito que é livre resolve parar nas estelas por um pouco e, como é omnipresente, pode aí ficar sem que deixe de estar noutra parte. Estive mesmo para lhe pegar no braço e dizer-lhe que eles nunca vão compreender, mas teria sido estúpido da minha parte. Ele é mais velho do que eu e sabe disso há anos. Ele cruza os braços perante o contexto deste atabalhoado mundo. Eu também. Não é uma questão de fuga ou de isolamento é uma questão de providência. A providência conta muito para estes seres. Ela sustém as coisas e protege-as da precariedade. Um pouco como as estelas, as estrelas e as flores. Estão na presença, no brilho e no botão. Que interessa se compreendem ou não? Uma estela, uma estrela ou uma flor não têm de se fazer compreender. Se não compreendem não venham dizer a quem não nasceu para ensinar para ensinar, tim tim por tim tim como se faz. Qualquer um de nós tem mais do que fazer. Quem vê, vê, quem não vê espera-se que um dia venha a ver pela mão da providência. Nada mais. Estelas, isso é coisa muito antiga. Outras cabeças, outra forma de estar e de pensar. E sobretudo de sentir. Tenho essa maneira de sentir a encher-me o coração. É um bocado como aquilo do homem sagrado e do homem profano. Mas não tem nada a ver com estudo ou catequese, nem pensar. É qualquer coisa que nos leva a fazer estelas, mais do que a contar histórias. É qualquer coisa que já nasce connosco. Foi bom encontrar alguém assim. Afinal não sou só eu. Sim porque vai rareando e começamos a pensar que alguma coisa anda de errado connosco. Mas não, é mesmo assim. Estelas, estrelas e flores. Muito antigas. Muito mesmo.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Casas horripilantes



Estava aqui agora a ver o programa "Visita Guiada" na RTP 2 e que, desta vez, se debruça sobre o tema "Três Casa Modernas no Minho". Paula Moura Pinheiro, às tantas, falando de uma casa dos anos cinquenta, diz com uma expressão crítica que naquela altura as Câmaras Municipais tinham uma ""Comissão de Estética", como se fosse uma coisa terrível, a imposição do gosto.
Mas não percebo bem essa expressão crítica. Aqui no Concelho de Mafra também deve haver uma Comissão qualquer porque desde que vim para aqui, e já lá vão alguns anos, tenho assistido ao fenómeno do nascimento de casas todas iguais e detestáveis: são cubos com três cores, o cinzento, o preto e o vermelho seja mais forte ou mais escuro. Diz um amigo, em tom de brincadeira que o arquitecto desenhou uma casa apenas e que agora se distrai a replicar a mesma, com mais janela ou menos janela, com mais garagem ou menos garagem, por este concelho fora, impondo uma autêntica monotonia do instético (se ainda fosse do estético...).
O gosto, lamentavelmente para alguns "democratas", educa-se. Para os que já nascem com a estética embutida dentro da alma, normalmente, é necessária menos educação nesse sentido. E, de facto, deve haver uma Comissão de Instética neste Concelho, e não da Estética,  porque estes projectos são aprovados sistematicamente, desfigurando a paisagem gostosa tradicional saloia e transformando a área circundante num pesadelo horripilante onde cubos todos iguais com cores que em conjunto se tornam mórbidas nos assaltam a vista e nos agridem simplesmente porque sim. De maneira que pergunto-me se não fará mesmo falta uma Comissão de Estética que regule os gostos e que seja acompanhada, já agora, por esses seres indesejáveis e descartáveis que são os antropólogos à moda antiga (os modernos só querem saber das identidades, dos feminismos e das questões "fracturantes" não sei bem porquê) com vista a que alguma coisa de boa que haja no passado da arquitetura seja preservada em vez destes autênticos abortos desenhados de uma vez para sempre e para sempre impostos numa paisagem natural que definitivamente não os merece nem necessita deles sequer. Prefiro ser retrógrada com bom gosto do que ser moderna sem bom gosto. Casas assim são autênticos actos de maldade e ninguém vê, nem repara. Depois queixem-se que as coisas não vão bem e não sabem porquê. Olhem, eu sei. Somos o que comemos e o que fazemos e, neste caso, ainda nos podemos tornar cubos mórbidos, pretos, cinzentos e vermelhos, todos iguais uns aos outros como soldados que perderam a guerra, estão a ver?

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

No segredo dos deuses


A minha mãe sempre me disse que os burgueses gostavam de ter um artista de estimação.
Dantes, aos burgueses, por via do seu desejo de ascensão social à aristocracia, isso dava-lhes para o mecenato.
Com a queda da aristocracia, a esses mesmos burgueses de hoje, dá-lhes para nem sequer saberem reconhecer o que é um artista. A sua aristocracia são as "quotas de mercado".
O Estado, por seu lado, também quer ser burguês e, por isso, também tem os artistas que pensam ser artistas de estimação e que o são conforme as quotas e os mercados. Ao dar relevância a um artista, não se interessa por aquilo que é a arte, a cultura, a história e muito menos pela essência do que caracteriza um artista. Ao dar relevância a um artista dá relevância, ainda que o negue, à projecção do próprio Estado no mercado, nas quotas de mercado, nos "valores" de mercado. Perante isto o que existe é uma desintegração da própria sociedade. Com a queda da noção de aristocracia também os artistas, que o são de facto, caem em desgraça e sobrevivem apenas através de um balão de oxigénio que é a origem divina da sua arte que vão fazendo em segredo dos homens, que já nada sabem e no segredo dos deuses, os únicos que sabem o segredo.

domingo, 11 de agosto de 2019

Jóia de luz (título retirado de uma canção de Paulo Gonzo)



Conheci uma pessoa espantosa. Para ela o mundo era concreto e definido. Depois, quando lhe apetecia, brincava e dizia que não era. E tudo passava a ser como um sonho, cheio de símbolos e sentidos. Depois, ria-se, dizia que era a brincar e voltava logo para o mundo concreto e definido. E depois, depois, a seguir, nem o mundo concreto e definido, nem o sonho, nem os sentidos vários das coisas. Dava de repente um salto no ar. Erguia as asas e voava tão alto e tão concretamente que era impossível dizer que o mundo era concreto e definido e que os sonhos, os símbolos e os sentidos vários, fossem a única verdade. Ia lá acima e trazia a jóia. Descia, mostrava-ma e dizia: "Fui lá acima buscá-la para ti". E revelava-me assim toda a minha vida concreta e definida e todos os sonhos desse momento, numa jóia única e precisa, todas as suas faces estavam em harmonia e não havia dúvidas sombrias que toldassem a luminosidade dessa jóia. Era absolutamente incrível esse vôo e ainda mais incrível eram essas jóias com que fui erguendo um palácio, um castelo, uma casa, uma cabana... Ao longo dos anos. Pedra a pedra. Jóia a jóia. E, em volta delas cresceu de livre vontade o mais espantoso jardim, com trepadeiras cheias de personalidade e flores que saltavam para os pés das pessoas só para chamarem a atenção. Conheci uma pessoa espantosa capaz de me levar pelo caminho construído por mim, passo a passo, quase por instinto. Quem disse que os sonhos não têm também eles véus? Não é só o mundo concreto e definido que os tem. Essa pessoa rompia os véus todos, os de baixo e os de cima. Quando voltava, com o presente, eu, por dias, ficava suspensa a reparar na jóia. A observá-la, a confirmar a sua pureza, o seu calibre, o seu peso, o seu corte. Mas era sempre mais do que qualquer jóia que tivesse visto no mundo concreto e definido ou nos sonhos. Ficava entalhada em mim para sempre depois de muito a contemplar. E não havia nada, nem a força do mar, nem o vento, nem os maus instintos que a pudesse deslocar nem sequer um milímetro. À minha volta o jardim cresceu para todas as direcções como se quisesse explorar o espaço numa dança. Danço nele como uma criança, penso nele como uma adulta e vou para além dele como uma fada. Depois, vôo até lá acima e retiro as gotas-jóias que já estão polidas e brilhantes e dou-as a quem as vê.

sábado, 10 de agosto de 2019

Aviso à navegação


(Fotografia minha de uma parte lateral interna de uma estante da sala e que apelidei de "O Grito" por me fazer lembrar a célebre pintura de Munch)


Aviso à navegação: qualquer partilha dos textos deste blogue nas "redes sociais" é-me completamente alheia. Hoje, uma pessoa do meu círculo de amigos partilhou um texto meu de manhã, "A Presença", pelas 10 horas, enquanto dormia profundamente. Tive a sorte de dormir até às 11.30 h. Um sono dos justos. Só soube algum tempo mais tarde dessa partilha bem como de um comentário à mesma que me pareceu desnorteado obrigando-me a escrever outro texto, "Verticalidade" de seu nome, para me explicar melhor. Foram esses desnortes, entre outras coisas, que me levaram a sair das redes sociais. No meu círculo de amigos não há mandões nem mandados, daí que a partilha de hoje me fosse completamente alheia. Estou absolutamente ciente de que este blogue praticamente não é lido o que, se por um lado é frustrante por outro, faz bem a alma porque assim se evitam desnortes e des-leituras. O paradoxo é algo com que se pode viver confortavelmente. E até dormir bem, pelos vistos.

Verticalidade


Já me perguntaram porque é que não pinto apenas paisagens, ou flores. Respondi que as pessoas são essenciais. No extremo oriente onde as paisagens dominam as pinturas antigas, as pessoas aparecem em ponto pequeno como que a lembrar a nossa insignificância face à maravilha que nos rodeia. No Islamismo, a pessoa é anulada. Não interessa. É sacrilégio com as bases naquela história de que não se deve adorar imagens. Se formos lá atrás, foram os ídolos de barro, a três dimensões que foram destruídos. Um ídolo de barro é uma escultura. A pintura pode sugerir a tridimensionalidade mas ainda assim, não é tridimensional.
Pinto pessoas porque não sou nem extremo oriental, nem guardo em mim qualquer tipo de aversão à representação da forma humana. Pinto-as como as personagens principais a par com as formas da natureza. Fundo o ser humano e a natureza. Torno-os unos. Sou mais do que oriental ou ocidental. Sou primordial no sentido em que no paraíso, homem e natureza eram um. Só assim o céu se abre. É muito difícil para quem anda constantemente no plano horizontal entender a verticalidade e a verticalização. Numa época em que "ser autor", "ter nome", "pedir para ser visto", ambicionar a ser "notado" é o mais que tudo, mais até do que aquilo que se faz, ir contra esse movimento é fazer um braço de ferro invisível. Na base da criação está um impulso inexplicável. Dizem que os dons são dádivas e que devemos desenvolvê-los como as moedas. Numa época de cegos que gostam tanto de grafittis gigantes e amedrontadores como de uma pintura subtil de vinte centímetros por dez centímetros com a imagem de Veneza do século XVIII ao pôr do sol, acho piada ter de responder a perguntas destas que têm um fundo mitico-religioso (e naturalmente ideológico por detrás...), como se tivesse de provar a toda a hora a minha filiação partidária e religiosa. Sinto quase pena dessas pessoas por não verem nada nem perceberem nada do que faço. Qualquer dom só é desenvolvido em profunda e perfeita liberdade. Pinto na vertical, não dando muita importância nem à assinatura, nem ao meu nome. A posição em que pinto é deitada, escarrapachada na máxima horizontalmente para que a verticalidade surja. E surge em muitos aspectos. Um deles é a coluna vertebral muito necessária hoje no meio de cabeças confusas e corações atormentados. Pinto a amplitude humana fundida com a natureza. Não temo o ser humano assim. Ele é, o centro da natureza que reúne em si todas as capacidades que ela contém. Não é alvo de adoração mas contém em si as possibilidades de libertação. Está salvo e apto para viagem em direcção à libertação quando se funde, conhece, se conhece como natureza. É por isso que o paraíso terrestre é um jardim que espelha o celeste. Alcançar só isso já é muito difícil. A verdadeira ancestralidade é esta, não está nem no apagamento total do ser humano, não está no apagamento parcial do ser humano, está no ser humano como próprio rito da natureza e, como sabemos, o rito é superior à própria natureza e abarca-a, visualmente, confunde-se com ela... Mas não deixa de ser rito.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

A Presença


Há muitos anos, andava eu talvez no décimo segundo ano, lembro-me de passar num jardim perto de casa que não tinha grande graça mas que, por aquela altura, um arbusto muito grande, com cerca de três metros, arredondado na sua forma geral, tinha florido. Tinha tantas flores brancas que o tornavam muito mais branco do que verde. Estava a aproximar-me dele e a achá-lo muito bonito quando, sem mais nem menos, a minha visão se alterou, e aquilo que vi foi a visão interna dele. Era feito de energia, de uma energia incrível, que pulsava e cintilava. Nunca mais me esqueci dessa re-velação acompanhada por uma extrema alegria que parecia fazer parte de toda aquela vida que era pura energia. Mas tarde, percebi que certas pinturas, obras de arte, pintadas no "antigamente" pareciam exalar calor, um calor inexplicável. Esse ritmo vegetal, que é  um autêntico ritmo que produz ou é produzido pelo movimento, encontra-se no pulso quando desenhamos e deixamos a mão voar, não de maneira totalmente aleatória, mas com uma atenção a um equilíbrio que se manifesta imediatamente, com algo de repentista nele.  Há como que a compreensão de que o ritmo vegetal tem origem nessa energia que é a própria vida a palpitar. Mais tarde, trabalhei com flores e fizeram-me entender que nunca deveríamos largar esse movimento que as próprias flores nos transmitiam. Admirei e admiro obras de arte autênticas feitas com flores e que respeitam esse movimento que vem de dentro delas. Mas, ainda a aprender, fiz a pergunta: mas o que se passa com as minhas pinturas que parecem sempre fotografias que apanharam um ritual a meio? Porque é que não faço pessoas a correr, ou levanto os vestidos com uma rabanada de vento?
A resposta tinha a ver com essa energia interna, muito oriental. A energia da maior parte das pinturas parecia vir de dentro e não propriamente do movimento físico das personagens ou das vestes. Apenas a vegetação cumpria essas curvas e pseudo-assimetrias tão características do reino vegetal. O verdadeiro movimento era interno. Não era um vendaval nem uma correria. Quando expunha, coisa que agora não faço porque não me apetecer andar a pedinchar, "inscrever-me" e, muito menos, a "esperar" por uma resposta que nunca vem, quando expunha, dizia, os sítios onde vendia mais era em consultadorias e escritórios de advogados e aí, vendia praticamente tudo. Se expunha num restaurante as vendas eram nulas rondando uma obra por cada exposição, quando rondava... Perguntei-me sobre isso e percebi o que se passava. Era o tempo e a energia. Parecia algo quase "Einsteiniano". O tempo tinha a ver com a habituação. As pessoas que trabalhavam nesses locais habituavam-se aos quadros e já não queriam ficar sem eles. A energia tinha a ver com a companhia. Os quadros estavam internamente vivos. A vida captada a meio de um ritual estático qualquer. Habituadas à companhia, as pessoas já não se queriam afastar deles. Os restaurantes eram locais de passagem rápidos. As energias eram repostas pela comida. As pessoas sentiam-se acompanhadas por outras pessoas.
A contemplação é um alimento e uma companhia. E, quando acontece, essa energia, que é o próprio movimento da vida, faz-nos sentir a Presença. É assim que os ícones são Presenças, autênticas, separadas de nós, das nossas opiniões, da nossa intelectualidade ou da nossa falta de atenção. São Presenças para além de nós e connosco.
E muitas pinturas fazem-nos sentir isso.
Nunca me esqueci do que vi nesse arbusto grande e branco: a interioridade da matéria. O contra-peso da visão parada desse arbusto que, embora bonito, guardava em si algo ainda mais belo. O mistério da própria vida.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

O mundo:


O mundo:

Esquerda e direita
Progressistas e conservadores
Conservadores e crentes
Descrentes e robóticos
Pró-Israelitas e conservadores
Conservadores e anti-semitas
Racistas e multiculturalistas
Moderados e progressistas
Anti-islâmicos e cristãos radicais
Pro-ideologia das identidades e conservadores
Conservadores moderados e liberais
Maçons e católicos
Comunistas e socialistas
Fascistas e democratas
Republicanos e democratas
Feministas e femininas
Católicas conservadoras e rameiras
Pró-colonizaçao de Marte e defensores do ambiente
Negacionistas das alterações climáticas e cientistas
Vegetarianos e carnívoros
Ricos e pobres
Remediados e amnésicos
Fundamentalistas islâmicos e polícias
Serviços secretos e servidores
Hackers e juízes
Demiurgos e comentadores
Centro esquerda e centro direita
Ideólogos e contra-ideólogos
Pagãos e cristãos
Pagãos-cristãos e conservadores católicos
Catolicismo e seitas
Evangelistas e bruxos
Orientalistas e Ocidentalistas
Celticistas e africanos
Perenalistas sem Julius Évola e Perenalistas com Julius Évola
Deus e o Diabo
Anjos e fadas
Grandes empresas e grandes causas
Saudosistas e actores de saudosistas
Sebastianistas e enjoados de Sebastião
Pessoa e Teixeira de Pascoaes
Silenciosos e extrovertidos...

O mundo: agora é só ir colocando a cruz em cada par e achar a contradição imediata, mais tarde ou mais cedo, na grande escada, mas façam o favor de se definir, embora seja tarefa impossível, ou tapam os pés com o lençol ou tapam os ombros.

Poema amarelo


Sonhos
São rendas
De nada vale dizê-los
Se por tê-los
Pelo dia,
de novo, são vividos

Estávamos todos vestidos de amarelo
E foi contada a História dos primórdios do Egipto
E da Península Ibérica

Mas antes de tudo isso, estávamos nós
Vestidos de amarelo
Unidos por sermos imunes
À picada do escorpião

Tão próximos e tão longínquos
Tão certos

Pelo dia de novo tudo repetido
E ouvi alguém dizer:

Preferem a ausência da natureza
A ausência da Arte
E sobretudo, preferem a ausência
Do que não entendem:
O improviso.

Esta semente aqui guardada
É única no mundo
Ao ficar perdida num vão de escada
Os degraus que se seguem
São de madeira cansada e gasta
Quebrada em breve
Ou mais acima ou mais abaixo

A semente cai, e germina
Mesmo que aparentemente perdida

Da mesma maneira que há um fosso
Entre ricos aldrabões e pobres verdadeiros
Há um fosso entre a ignorância
E a sabedoria nessa semente

Vistos de longe,
São como cães
Procurando a cauda

Repetições sem fim...

Mas no sonho
Sem tempo
E verdadeiro
A serenidade
Era a frustração da ignorância

E a Virgem a única
Que sabia...

Porque mantenho o silêncio
Se me pedem que fale?
E porque falo se me pedem o silêncio?

Por causa desse amarelo vivo
Amarelo-ouro
Dessa Heliópolis
Semente sempre eterna

Aviso
Que da injustiça tudo sabe.

Aviso
Que devolve a justiça
Com a forma de uma serenidade
Impossível de capturar...

Aviso
Que Portugal parece subir
Mas desce sempre
Que perde uma semente
Num vão de escada

E que os degraus
Gastos e cansados
Que se seguem
Cedem à ausência de peso
Por ser tudo demasiaso leve

Sem natureza
Sem arte
Sem verdade
Sem improviso

Posso avisar
A partir desse sonho
Amarelo ouro
Imune ao escorpião

Quando saio de um lugar
Por ter sido perdida num vão de escada
Esse lugar cede
Apodrece
E cai
Como uma sombra que não indica a luz...

Já vi arrependimento
Mais do que em Madalena
Por o dela serem lágrimas de vida...

Mas o vosso
É daquele que suplica baixinho
Para que a semente germine
Só por dizerem que há uma ausência...

Se o disserem por sentirem
Se essa ausência for notada
Se não existir natureza, nem arte,
Nem improviso, nem verdade

Se só não percebem nada
A sombra, treva sem luz
Engolir-vos-á

Se sentirem uma ausência
Uma espécie de germe da Saudade
Que é coisa demasiado grande para vós
Então regressam como andorinhas

Se for ouvida
Essa súplica murmurada...
Se for rendilhada...
Se for verdade
Lá onde os solitários se encontram
Nessa Atlântida tardia
Amarelo-ouro
Fundo do mar azul

O orvalho celeste
Desce sobre vós
Entre vós e essa semente
Perdida num vão de escada

E vos unirá
Reunirá
De novo
Num rendilhado
Firme
Pesado
E transparente
Por onde o sol brilha.

Mas só de quem
Esse murmúrio
For ouvido.