domingo, 23 de janeiro de 2022

O público




Com esta gente não vamos a lado nenhum. Aquilo que há são trabalhos menores. Pouco aristocráticos. O panorama é definitivamente pobre. Pé descalço ou mesmo chunga, pimba ou, numa palavra mais velha, rasca que é uma palavra tão forte que torna imediatamente rasca qualquer texto em que se encontre. É tudo extraordinariamente cansativo. O público é cansativo na sua endogamia consigo próprio, no seu ego exarcebado. O público só está preocupado consigo próprio. Mexe-se na cadeira e agita-se a cada palavra. Pensa sempre que o actor olha para ele. Exclusivamente para ele. O público só olha para si próprio. Nem vê o actor esforçado. Revê-se nele como se alguém lhe tivesse pedido isso e não sabe que ao público só é pedido que desapareça, que morra nos braços da arte. Que sinta que voa lançado pelo céu fora como uma ave. E o público não faz nada disso. Olha, observa, crítica, pauta em graus a qualidade do trabalho, sugere, remata e vence. Meu deus, sou tão monárquica... o público é quem mata a obra devido ao seu apetite voraz por si próprio que procura nela a justificação para todos os seus gestos. Procura elevar a mediocridade, que é, a uma condição artística que não lhe pertence. Só lhe pertence quando morre, quando se cala, quando deixa de existir e se eleva, sem querer, sem vontade...sem dar a sua aparvalhada permissão, encharcada em banhos de auto-estima e enlutada no choro permanente de não gostar de si... Quando ninguém lhe disse para transformar a insegurança em segurança, quando ninguém lhe pediu nada a não ser que esteja quieto e que não se mexa na cadeira. Que desapareça o público e que pare de invadir o palco com o histerismo de uma mulher frágil. É pelo público ser tão mau, tão menor, que a aristocracia nem tem lugar nem pose que não seja considerada ridícula. Um forrobodó incompreensível. Mas ele está certo, o forrobodó. Vejam bem a pose. Una. Inequívoca. Absoluta. Absolutista (e lá vem o público afirmar qualquer coisa sobre maioria absoluta por ser a única coisa que conhece ... Lá vem ele com a sua opinião aterradora... Que desapareça o público e a sua opiniãozinha de estimação, como um latido de um caniche irritante e histriônico) e virtuosa. 


 

sábado, 22 de janeiro de 2022

A secreta esperança



Houve quem morresse com a esperança secreta no mundo, em Portugal, nas pessoas, na natureza. Uma esperança legitimada pela ideia de ciclo. E alguns deles, escreveram essa esperança na esperança de que as suas palavras fossem as tábuas da arca elevada acima do tumulto das águas. Não foi em vão terem escrito, como não é em vão andar por aí com essa esperança secreta, tão secreta por vezes que nem quem com ela anda, se dá conta de que a transporta como um canto celeste quase inaudível confundido com o barulho do mundo.  É essa secreta esperança que tem um pé nestes tempos de clausuras, ignorância e desnorte e o outro noutro tempo, mais límpido e pacífico. Essa esperança só existe, aliás, porque é coroada com a certeza de que "os tempos vivem em simultâneo", como ciclos sobrepostos, como rodas dentadas do mecanismo de um relógio. E ainda o cuco que, quando sai pela portinhola, é sempre uma surpresa, mesmo que o faça à hora certa ou a uma certa Hora... Não nos enganam estes disfarces do tempo que nos aparece envolto em trapos, escondendo as rendas, as pérolas, os bordados, os adamascados... A serenidade só se encontra quando despimos o tempo da sua camada vagabunda e nos deixamos oscilar em baloiços de flores numa hora perdida no tempo de uma pintura antiga. Chegámos a um ponto em que as obras só são importantes, não pelo que falam ao colectivo, às gentes no geral, mas sim pelo diálogo de que são capazes de estabelecer coração a coração. Nunca o número foi tão irrelevante neste processo de desocultação de um outro mundo, mais belo, mais sereno, renascido das cinzas. E, no entanto, os telejornais debitam números como se fossem o novo exército que marcha sobre as avenidas do mundo: número de doentes, de mortos, de internados, de votantes, de impostos, de contas-poupança, de estimativas,  observações de curvas e de gráficos... O sustento breve do mundo em decadência. O número não tem lugar no diálogo silencioso, sem palavras, entre a obra e o observador. É fugaz calcular o ângulo pelo qual a luz incide, quando a luz incide. Substituir a luz por um número de graus é deixar-nos às escuras. E o mundo está cada vez mais às escuras por causa dessa substituição. O número tornou-se na luz. Na sabedoria. Na verdade. A verdade jornalística. O facto sem prova a prova sem facto. Facto e prova são apenas a face obscura do número, o verdadeiro iluminador de luz negra, que apaga em vez de iluminar.

E quantos de nós não sabemos que a esperança reside em vermo-nos livres desses números todos? Tantos que não são contáveis. Até o bandido que assalta o banco quer um dia nunca mais contar as notas. O vigarista, quer aproveitar a luz do sol numa ilha comprada só para si. No nosso íntimo, quer sejamos o polícia ou o ladrão, no nosso mais profundo ser, queremos lá saber do número. O que desejamos sempre é a Luz. É dito que a lua é mentirosa por causa das letras não coincidirem com as suas fases (e talvez por uma qualquer misoginia implícita), mas essa mentira da lua resolve-se se fizermos o pino e tivermos os pés bem assentes no céu... Agora a mentira numérica deste mundo fá-lo engasgar-se sempre que tenta falar, todos aqueles ângulos presentes nos números... (Um ângulo para o 1, dois para o 2, três para o 3 e assim por diante), encravam-se na garganta e, na verdade, para quem tem os pés no céu, só se houve balbuciar no ecrã. A esperança reside como um ponto de luz imperceptível no meio de tanta medição. Viemos parar a um manicómio que alberga matemáticos que nunca encontraram a Unidade ou que, quando a encontraram, enlouqueceram... Preenchem as paredes das suas celas com números, tanto uns como os outros. Muito mais difícil do que aguentar o embate com as sombras, meu caro Jung, é o encontro com a Luz. E vê-la sem enlouquecer é a derradeira prova. De maneira que, alguns morreram com a secreta esperança no mundo, em Portugal, nas pessoas e na natureza. De loucos nada tinham a não ser a loucura de não embarcar num só tempo, mas em vários e num em especial que é donde parte o foco de Luz. Alguns deles deram-se ao trabalho de escrever com a secreta esperança de que as suas palavras fossem as tábuas da arca que flutua acima do turbilhão das águas... Quais cisnes. Outros, ainda mais acima, quais cisnes voadores, nem se deram ao trabalho de escrever. Simplesmente voaram, para além dos números e das letras. 

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Cães e porcos


 As ciências exactas:

Li um artigo que relatava um brilhante estudo sobre cães. Chegaram à conclusão de que os cães só são próximos dos seres humanos porque dessa forma poupam energia a caçar. 
Digo eu que isso não tem problema algum. Toda a energia poupada é gasta nas brincadeiras e correrias com os seres humanos. 
Outros dois artigos avançaram com novidades: num, o relato de um transplante de coração de porco para um ser humano, noutro, também um transplante, desta vez de rim.
Esta forma de se ver a matéria reduzida a ela própria (o que é uma impossibilidade física porque a matéria reduzida a ela própria abate-se sobre si mesma), ainda nos há-de levar a inspeccionar com o nariz o que restar da floresta em busca de trufas e de bolotas, isto se algum ser caridoso, e ainda livre de transplantes, não nos der lixo a comer. Chamá-lo-íamos um pitéu!

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Adeus, meu Senhor.

 




Hoje partiu um Justo. O que me deu é indescritível. Na verdade, não partiu, está sempre comigo. E não partiu porque alcançou a eternidade há muito. Um grande senhor. Uma alma única, grande e plena que já não pertencia a este mundo cada vez mais desalmado. 
Foi um privilégio conhecê-lo. A minha admiração por si é maior que o Universo. Faz parte de mim. Um grande beijo e que a viagem para a Luz seja tão bela como as coisas que saíam das suas mãos. Que a Beleza e a Sabedoria o continue a acompanhar. Saudades imensas. Mas sei que me acompanha, como sempre me acompanhou. Com Amor.

Cynthia