segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

AI


 A AI parece que agora se quer meter no meu trabalho. Esta modernidade anómala invade todos os espaços. Tenho de me fingir desalmada e inexistente para sobreviver, como as vitimas de violação. Apetece-me dizer que não quero AI para nada, mas os meus pares pensam o contrário e como vivemos numa democracia, a maioria ganha, mesmo que esteja senil. Ainda me hão-de explicar qual é o interesse disto tudo se os Mistérios permanecem os mesmos. E os carácteres também. Filhos, meus ricos filhos, nada supera a nossa mão, ligada ao cérebro, ao coração e ao restante corpo. Fecho-me como os caracóis, dentro da minha própria casca e guardo e aguardo por essas conversas tão interessantes com os anjos. Infinitamente maior é esse espaço de reserva, longe do puro absurdo cheio de estigmas e cicatrizes. A inadaptação ao mundo dá-me para ter alergias. Passo a vida a espirrar como que a querer expulsar o ar que ingiro e que não me pertence. Passo bem sem a AI, porque a minha já me dá trabalho suficiente. Sempre que me apresentam uma novidade, espirro. Mas não são espirros normais, parecem vir do fundo da alma, são fortes demais para um resfriado, são metafísicos, como diria o meu querido Pessoa, mas não são poéticos, são literais, altamente terrestres, de tal forma que tocam o metafísico, excedem-se a si próprios. Todo o corpo estremece com esses espirros alérgicos que me salvam a vida. Não fossem eles e morreria soterrada em novidades vãs e em atitudes idiotas. Sorrio com a maior doçura para os loucos, dando-lhes toda a razão para existirem com esse sorriso, mas por dentro canto: "A mim não me enganas tu, a mim não me enganas tu, a panela ao lume e o arroz está cru" porque o fogo do espírito não existe neles, e o paradoxo da cantiga é esse. 

domingo, 21 de janeiro de 2024

Ascensão



 Olhei indiscriminadamente para os sonhos e revi-me neles, como notas fugazes, notas de rodapé que desbravam caminhos. É possível ser-se fugaz sem se ser fútil, como os sonhos e relembro a possibilidade, cada vez mais visível, dos sonhos dentro dos sonhos, onde um deles é esta nossa vida ... os sonhos balançam, mas não caem, ao contrário das ideias e das ideologias, permanecem como marcas na areia sem que os seus passos se dissolvam na água ou no ar. A vida é tremenda pela quantidade de possibilidades e pela qualidade delas. É esta sapiência do onírico que atravessamos que nos permite ir à substância das coisas. Mas uma substância feita de choques contínuos onde a sapiência de atravessarmos os sonhos em nada nos ajuda, se assim fosse, não seriam os sonhos esses choques contínuos... e a tentativa de resolução deles em nós. E há qualquer coisa que subsiste e não se afoga no rio do esquecimento. Como esse homem gigante que vi mergulhar e desaparecer nas águas para em seguida dar por mim numa ascensão tão rápida que me levou no sonho a balançar, sabendo que não cairia por conhecer de cor essa ascenção vertiginosa, como um passo de dança, tantas vezes repetido. É essa partícula de nós que não se afoga no rio do esquecimento e que antes ascende como resultado dos sucessivos choques a que foi sujeita. Já diziam os alquimistas. Quando os havia...

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

A Caridade Cristã

 

Auto de fé no Terreiro do Paço, século XVIII

Há dois dias atrás sonhei que um padre com uma expressão horrível pegava na minha mão à força e me obrigava a benzer. Eu só lhe dizia que não era preciso aquilo tudo porque sabia como fazê-lo, mas o homem insistia e apertava-me a mão obrigando-me ao gesto. Acordei furiosa com aquela personagem “feita da matéria de que os sonhos são feitos” e procurei a justificação  para a minha psique ter feito tal coisa. Não é necessário ir muito longe para entender a repulsa que as conversões à força me fazem sentir. Lembrei-me imediatamente da Inquisição e da “caridade cristã” lusitana que não teve nenhum problema em queimar vivos na fogueira cerca de 1500 hereges (segundo números de Borges Coelho), após um julgamento indecoroso e quem sabe todo o tipo de torturas, isto tirando os milhares que apodreceram nas chamadas “prisões” que foram apenas aceleradores de morte. Não contando com o Index, as perseguições e as denúncias que acenderam no nosso povo a coscuvilhice interesseira e atiçaram a inveja apontada por Camões. Sempre duvidei da caridade chamada de cristã, pois conheci bastantes pessoas que parecem procurar a negociação da salvação à conta da mesma. Não entendendo eu a salvação como uma negociação, nem sequer entendendo a salvação das almas como uma espécie de estacionamento das mesmas sentadas ao lado do Senhor, tudo o que provém da chamada caridade cristã me cheira a esturro (devem ser restos da fogueira onde ardi noutra reencarnação...). Qualquer religião que conduza ou à loucura ou à morte está consideravelmente enferma. Naturalmente me dirão que a morte é compreensível, mas que a loucura é subjetiva. Não é, se também ela conduzir à destruição e à morte. Dirão, mas hoje em dia já não há fanáticos cristãos como havia antigamente. Sim, não se veem muitos por aí à vista desarmada, mas convenhamos que o embrião da superioridade moral está sempre lá, pronto para a nascer. Temos um Trump que se diz enviado por Deus (e é cristão!) e por cá temos o oportunista Ventura que se diz “pessoa de bem” alargando o espectro desses escolhidos se votarem nele. Evidentemente que também é muito cristão e anda de braço dado com os padres desde a adolescência. Essas "pessoas de bem" e esses “escolhidos por Deus”, são exemplos acabados de como o cristianismo (não Cristo pois esse está longe de tudo isso tomara ele que não o colocassem no mesmo saco dessa gentalha) está sempre pronto a utilizar-se a si próprio e a ser utilizado como rampa de lançamento de motivações políticas altamente duvidosas e que de caridade não têm nada. Os mesmo vícios, as mesmas atitudes, as mesmas afirmações de superioridade moral, atravessam a História como flechas. E Cristo ali tão longe... Por cá, aos patriotas incultos (algo que é verdadeiramente paradoxal) e, por vezes, aos patriotas cultos (o que ainda é pior pois denota malformação de carácter), dá-lhes um acesso de superioridade e num piscar de olhos, puxa-se-lhes o pé para a extrema direita... também há muitos exemplos e é assim que Cristo é pau para toda a obra  e pau para todos os votos, até para os interesses mais obscuros. Decididamente, não vivemos em tempos bons, antes caóticos, onde os ecos de figuras demoníacas que existiram na História parecem regressar como fantasmas, assombrações que andam ao lado dos oportunistas, e ao lado dos democratas, agora na moda, candidatos esses, também, a fantasmas do futuro. A visão é sublime, num primeiro plano temos os oportunistas contemporâneos, ora com vestes extremistas (de esquerda ou de direita), ora com vestes socialistas várias, democratas ou simplesmente socialistas ( o socialismo é uma religião sem Deus) e ao fundo e à volta deles, fantasmas voadores, disformes provindos do lado negro da História para rematar o pesadelo. O enjoo e a falta de esperança entendem-se na perfeição e o gosto pela destruição junta-se ao festival de mau gosto, a começar pela destruição da própria História, reduzindo-a  lutas políticas modernas de forma a legitimar tudo: partidos políticos, associações, modos de vida, revoluções, manipulações e até instituições. A História já não é o que era... tornou-se numa arma política e nem motivo de meditação parece ser. Cristo está na História e na Meta-História e, como tal, também não é motivo de meditação. É apenas o pretexto, uma encenação tornada explicita para outras realidades alternativas. Em vez de interior, tornou-se num ser social, num arremesso mesmo a propósito, numa justificação, numa escada para o poder, no objecto preferido do príncipe deste mundo, seja por ser escolhido, seja por ser remetido para a obscuridade e inutilidade. Já nada é intimo, interno, demandado  sequer, porque, exteriormente, todos o promovem, todos o trazem no porta-estandarte, seja exibindo-o como luz, seja não o exibindo como Trevas e exibindo-o, por isso mesmo. Ele é mais uma vez maltratado, chicoteado e enxovalhado. Sempre que isso acontece, sempre que o exterior se sobrepõe ao interior, algo corre mal. O esvaziamento interno alimenta o exterior, o superficial, o ignóbil. Não são necessários cristãos, nem anti-cristãos. São necessário pré-proto-cristãos. Aqueles que ainda são livres.  Aqueles a quem o padre tem a tentação de agarrar na mão e de obrigá-los a benzer. Aqueles que, simplesmente por existirem, enviam esse tipo de padres imediatamente para o inferno.  Aqueles que estão numa fronteira existencial suficientemente grande para não serem forçados a nada.  Os livres disto tudo.  Os livres.