quinta-feira, 13 de junho de 2024

Parabéns, meu querido Fernando


 Muitos parabéns, Fernando. Pois escrevo-te de novo embora, por aqui, nada de novo exista. Se Camões, depois de vir lá dos orientes, escreveu que todo o mundo é composto de mudança, o que é certo é que se esqueceu do minimalismo temporal no qual as mudanças que ocorrem são mínimas. É o que se passa, neste teu e nosso país. Estamos rodeados de écrans, de tal maneira que, só em casa, tenho cinco. Todas as telas revelam imagens e o mundo não é mais do que uma imagem projetada. Eternos espectadores quase impassíveis, adormecidos e distantes das avarias e desvarios mundanos. O meu coração parece uma ave e ouço nitidamente o seu bater das asas. Imagino-o projetado lá em cima  e com ele, os olhos de águia, sobrevoando esta suposta realidade. Não há muito que relatar a não ser sonhos sucessivos que são o desenrolar do mundo cada vez mais afoito, dando pequenos passos em direção a nada. Resumindo, a loucura está instalada e veio para ficar durante muito tempo e, aqueles que não são loucos, ou que o são numa outra dimensão estão fechados em guetos interiores. Cada qual criou um gueto só para si e finge que vive. Não tenho muitas opiniões porque cada vez há mais coisas e não tenho nem tempo nem disponibilidade para ter e dar uma opinião sobre tudo. É mais confortável assistir silenciosamente e com algum desinteresse. Parece que o Quinto Império, ou a Idade do Espírito Santo, ou outro nome qualquer que adquira uma nova Era já não me vão tocar em vida, excepto, claro está, nos mundos com os seus tempos e espaços paralelos. O inferno não são propriamente os outros até porque nem têm classe para isso. O que há é um mastigar do tempo e das muitas coisas que há cada vez mais. Se os homens da pré-história devem ter morrido de tédio ao longo de milhares de anos, não menos se morre agora do mesmo, ainda que em constantes festivais, competições e disneylândias, não havendo diferença nenhuma entre as três. É assim que se dá a involução tão apreciada nos dias de hoje e tão ternamente chamada de evolução. Resta, para os vivos, alguma curiosidade. E há cada vez menos vivos. As novas gerações, alimentadas a ecrãs multicor, depressa são redesenhadas e transformadas em zombies festivaleiros. E, não fora a curiosidade, a paisagem e os pôr-do-sol  (gosto e escrever com hífen porque contém assim a linha do horizonte e os três “ós”, que são três sois, o do amanhecer, o do anoitecer e o do dia e a lua, essa, tem um “u”, crescente ou decrescente, tanto faz...) e nada teria importância, aquela importância que pesa e conta nos seres humanos quando não estão entretidos a matar, a ofender ou a respeitar a bestialidade que há neles... Lidar com isto, Fernando, obriga a um alheamento, até da própria memória: os retratos dispostos pelas casas, fazem sofrer. Qualquer presença de um outro tempo mais doce, faz sofrer quando caímos na realidade deste que é feito de azares provocados e onde a sorte não entra. Não é em vão que te explico o que se passa porque sei que vais contar aos anjos que te rodeiam. Vais ler-lhes esta missiva em voz alta e vais desenrolar o pergaminho devagar, com ar solene. Escrevo-te duas vezes por ano, uma no dia em que nasceste e outra no dia em que nasceste de novo junto aos anjos. São datas sérias que requerem alguma atenção, alguma cerimónia e quiçá, alguma magnificência e daí, escrever-te.

O mundo está farto de arte porque não sabe o que é a arte.

E assim me despeço, com muitas saudades, meu amor.

 

Da sempre tua, Cynthia.

 

 

domingo, 9 de junho de 2024

Dias mágicos


 Acredito que todos tenham dias ou momentos mágicos, que saem da órbita monótona dos dias, que se elevem como sonhos e que residam numa impressão, numa sensação tão forte que nada os abala. Foi assim, naquele dia em que cheguei a Veneza, entrando nela pelo Grande Canal, e desembarcando na Praça de S. Marcos. Só que daquela vez, foi tudo diferente, uma orquestra tocava numa das esplanadas, apenas essa orquestra tocava nessa noite, naquela praça, o Bolero de Ravel. E dei por mim a dançar, numa praça semi-vazia, há muitos anos, ao som da música crescente, crescendo também a meus olhos a Basílica de S. Marcos, dourada, brilhando na noite. Lembro-me que a música durou exactamente o tempo da travessia da Praça, com o seu culminar, e o culminar da minha dança em frente à Basílica. Para sempre na minha memória como coisa mágica, uma oferta do acaso a quem, como eu, ama aquela cidade. E outros dias há, assim, mágicos, em que tudo daparece em volta dessa memória, desses momentos sem tempo, como aquele, na Costa onde tínhamos casa com alicerces enterrados na areia aveludada, com um grande avarandado onde jantávamos ao pôr do sol, mas naquele dia, diferente. Pousámos os talheres quando nos demos conta de que o mar estava negro, a temperatura morna e o sol dourado já próximo da linha do horizonte e, numa espécie de hipnotismo comum, cerca de dez pessoas, largaram a refeição e entraram, sem palavras e sem qualquer razão lógica, pelo mar adentro, e o mar estava quente e as algas verdes escuras eram aquelas que lhe davam aquela tonalidade negra. E lembro-me de homens e mulheres colocarem as algas no pescoço como se fossem colares vivos, e de nadarem e rirem até escurecer. Dias perfeitos e mágicos, sem perguntas nem respostas, apenas a adesão a eles, como se lhes pretencessemos desde sempre. Outros há, para descrever, embora a escrita não chegue a eles, nem dê sequer a intensidade da sua memória.