“A prospecção e aceitação do sobrenatural, não será uma fuga
perante o real ou um corte com o quotidiano.
Mas, antes , o contrário: será ela a forma mais forte e
perfeita de fidelidade ao Real, porque da sua total e plena inclusão e
aceitação na nossa existência. (...)
O problema do real será resolvido por um movimento que
surgirá como sua paradoxal resolução – porque ele só se desvendará pela visão e
aceitação do seu avesso”.
Dalila Pereira da Costa, “A Nova Atlântida”, pág. 326, Lello
e Irmão – Editores, Porto, 1977
Olhava atentamente para essa formas de mexilhão que tendia a
fazer nos vestidos, nas rendas que pintava e lembrara-se do que tinha dito
antes, momentos antes:
O ovo é a forma arredondada do losango , ambos necessitam
de dois pontos centrais para serem desenhados... e sorria, na volta dos
próprios pensamentos, sabendo que o selo, o losango era tantas vezes firmado e
afirmado pela linguagem alquímica como sendo o segredo e sorria, lembrando-se
das aulas que havia tido com Freud em pano de fundo, da análise corporal e
sexual dada a esses losangos, como desenhos repetidos pelos povos “primitivos”
dum mundo ainda de um jeito Neolítico e de como tal tipo de interpretação
freudiana havia sido presenteada com a fórmula: o losango é a vulva, com
pinta no centro foi fertilizada... e esses símbolos e interpretações giravam na
sua cabeça e, do nada e de tudo, se lembrou de como o povo diz: “quem se lixa é
o mexilhão” e, na sua cabeça, aparecia agora a imagem desse mexilhão a negro
desgastado primeiro, como um marisco associado ao povo que o recolhia na baixa
das marés, como dádiva do mar, sem preço ou mercado, oferecido ao povo e a ele
assimilado. E esse negro mexilhão, aparecia agora sob a forma híbrida que fica
entre a oval e o losango, e essa palavra colada a ele, ganhava agora as vestes,
não de um negro desgastado, mas elegante, como um vestido de noite brilhante com a água num qualquer
serão de príncipes e princesas, e esses pequenos laivos de branco em relevo que
o cobriam, eram os cetins, dos mais modernos padrões, de uma fineza real,
unindo o clássico ao moderno e, com esse mexilhão, lixado mas transmutado, pode
ver a realeza do próprio povo, escondida num mexilhão pobre, apanhado numa
baixa maré e, com ele, todos os outros pobres portugueses, de uma antiguidade
expressa nas rugas e nas mãos com calos, e nos ofícios, e nas horas de labor, e
nos silêncios dele, e nas frases que rematavam dúvidas ao fim de anos de
trabalho. E viu um povo rei, como quem vê o paradoxo de que fala acima Dalila
Pereira da Costa, e não mais passou a suportar o escárnio de quem, perto do
povo com suas vestes pobres de quem se esquece de si, só o sabe desprezar como
classe inferior, sem Mercedes ou vivendas e novos-riquismos plasmados de um
estrangeiro que não é nosso. E olhando tal desprezo, tal pouca fineza d’alma,
saber, como quem sabe um filho ou irmão, que a realeza se esconde, nesse
mexilhão do mar, criação dele dada aos pobres, criação da mãe simples que
apenas está... como vestido legitimo, de um requinte assombroso, afastando o
nevoeiro, brilhando numa manhã, acendido por lágrimas e fogo, ao nosso lado,
real e biface, como nós portugueses sabemos ser.
(Cynthia Guimarães Taveira)