quinta-feira, 25 de junho de 2015

A elegância

 
“A prospecção e aceitação do sobrenatural, não será uma fuga perante o real ou um corte com o quotidiano.
Mas, antes , o contrário: será ela a forma mais forte e perfeita de fidelidade ao Real, porque da sua total e plena inclusão e aceitação na nossa existência. (...)
O problema do real será resolvido por um movimento que surgirá como sua paradoxal resolução – porque ele só se desvendará pela visão e aceitação do seu avesso”.
 
Dalila Pereira da Costa, “A Nova Atlântida”, pág. 326, Lello e Irmão – Editores, Porto, 1977
 
Olhava atentamente para essa formas de mexilhão que tendia a fazer nos vestidos, nas rendas que pintava e lembrara-se do que tinha dito antes, momentos antes:
O ovo é a forma arredondada do losango , ambos necessitam de dois pontos centrais para serem desenhados... e sorria, na volta dos próprios pensamentos, sabendo que o selo, o losango era tantas vezes firmado e afirmado pela linguagem alquímica como sendo o segredo e sorria, lembrando-se das aulas que havia tido com Freud em pano de fundo, da análise corporal e sexual dada a esses losangos, como desenhos repetidos pelos povos “primitivos” dum mundo ainda de um jeito  Neolítico e de como tal tipo de interpretação freudiana havia sido presenteada com a fórmula: o losango  é a vulva, com pinta no centro foi fertilizada... e esses símbolos e interpretações giravam na sua cabeça e, do nada e de tudo, se lembrou de como o povo diz: “quem se lixa é o mexilhão” e, na sua cabeça, aparecia agora a imagem desse mexilhão a negro desgastado primeiro, como um marisco associado ao povo que o recolhia na baixa das marés, como dádiva do mar, sem preço ou mercado, oferecido ao povo e a ele assimilado. E esse negro mexilhão, aparecia agora sob a forma híbrida que fica entre a oval e o losango, e essa palavra colada a ele, ganhava agora as vestes, não de um negro desgastado, mas elegante, como um vestido de noite  brilhante com a água num qualquer serão de príncipes e princesas, e esses pequenos laivos de branco em relevo que o cobriam, eram os cetins, dos mais modernos padrões, de uma fineza real, unindo o clássico ao moderno e, com esse mexilhão, lixado mas transmutado, pode ver a realeza do próprio povo, escondida num mexilhão pobre, apanhado numa baixa maré e, com ele, todos os outros pobres portugueses, de uma antiguidade expressa nas rugas e nas mãos com calos, e nos ofícios, e nas horas de labor, e nos silêncios dele, e nas frases que rematavam dúvidas ao fim de anos de trabalho. E viu um povo rei, como quem vê o paradoxo de que fala acima Dalila Pereira da Costa, e não mais passou a suportar o escárnio de quem, perto do povo com suas vestes pobres de quem se esquece de si, só o sabe desprezar como classe inferior, sem Mercedes ou vivendas e novos-riquismos plasmados de um estrangeiro que não é nosso. E olhando tal desprezo, tal pouca fineza d’alma, saber, como quem sabe um filho ou irmão, que a realeza se esconde, nesse mexilhão do mar, criação dele dada aos pobres, criação da mãe simples que apenas está... como vestido legitimo, de um requinte assombroso, afastando o nevoeiro, brilhando numa manhã, acendido por lágrimas e fogo, ao nosso lado, real e biface, como nós portugueses sabemos ser.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

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