Com a devida permissão do autor, transcrevo esta excelente reflexão sobre a relação dos portugueses com a sua língua:
«Querida, encolhi a língua».
Reflexões sobre empobrecimento da língua
1.
Tornou-se lugar-comum repetir que a língua nos é uma
pátria. Não se terá ela tornado, porém, uma pátria longínqua, minguada, apenas
uma língua de terra?
Aprendemos todos que a língua portuguesa é muito rica.
Acontece que todas o são a seu modo. O que faz então a riqueza da nossa?
Em primeiro lugar, a solidez da sua formação, ancorada na
velha ordem latina, depois na energia vernacular resultante da sua territorialidade
própria, na sua história de unidade e dispersão, na sua capacidade de dar e
receber, na diversidade e ductilidade das suas capacidades expressivas.
Só uma língua forte seria capaz de dar novas vozes ao mundo,
conservando uma unidade essencial. É nesse sentido que se pode falar, e se
fala, de lusofonia: uma galáxia de particularismos lexicais, morfológicos,
sintácticos, semânticos e prosódicos, mantidos em relação por acção da força
gravitacional constante assegurada por uma gramática e um léxico comuns.
No âmbito do universo lusófono, esses particularismos, ou
variantes, não têm hoje um centro geográfico. Essa centralidade é ocupada por
um corpo histórico imarcescível: o tecido de peripécias e transformações que a
própria língua foi produzindo ao longo do seu trânsito através da
História.
Esse trânsito tem contudo um ponto de partida, um lugar
matricial, um rol de circunstâncias e condicionalismos internos que veio a
resultar no que se chama a variante europeia do português, ou o «português de
Portugal».
É este «português de Portugal» que nos preocupa e aqui nos ocupa.
Preocupam-nos os fenómenos de redução, estreitamento, afunilamento, todos eles
eufemismos de um empobrecimento, que muito transcendem a questão ortográfica,
aquela que mais emoções desperta e que a seu tempo também terá reflexos, embora
ainda não totalmente discerníveis, neste processo de empobrecimento, termo que
muitos não aceitam, invocando alguma espécie de saldo de uma contabilidade de
ganhos e perdas que em todas as épocas se repete.
2.
Também aprendemos todos que a língua se transforma e que
o uso é o grande agente dessa transformação, à qual nos habituámos — de uma
forma um pouco simplista — a chamar evolução, presos ainda à euforia e às
metáforas organicistas da ciência oitocentista. Tornámo-nos assim
condescendentes, ansiosos por corroborar, por participar nessa espécie de
progresso que a evolução passou a representar. Até nos dispusemos — e dispomos
— a antecipar e «facilitar» essa evolução, cujo desenrolar julgamos vislumbrar,
a abrir caminho à sua inevitabilidade histórica, que vemos inscrita na sua
própria natureza.
Rimo-nos gostosa e desdenhosamente dos esforços inglórios —
sobretudo por terem sido inglórios — dos gramáticos antigos para preservarem a
língua contra o uso espúrio, opondo a língua culta à língua popular, opondo a
língua escrita à língua falada. Desarmados pela evidência histórica e munidos
do preceito pragmático que é «se não os consegues vencer,
junta-te a eles», eis que nos pusemos a agir em nome e a favor de um certo
futuro, ou melhor, de uma certa ideia de futuro.
[Quer isto dizer que, para dar um exemplo por enquanto
caricatural, dadas as suas actuais misérias, as vogais átonas pré-tónicas — que
no português do Brasil vivem na abundância — poderiam um dia vir a ser
suprimidas por via administrativa em nome da antecipação do seu destino
histórico.] Em desfavor deste futuro, inevitável e irreversível, só poderiam
estar os velhos do Restelo, agrupando puristas, saudosistas, conservadores, e
todo um exército de contumazes oponentes da mudança e a ela resistentes, que
muitas vezes o são, dizem-nos os adeptos do progresso, por mero desconhecimento
ou incompreensão (como se conhecer e compreender fosse igual a aceitar). Creio
que muitos reconhecerão esta panóplia discursiva de outros contextos, embora se
trate certamente de uma coincidência…
Quisemos, então, examinar os usos em termos quantitativos e
determinar que língua falava o cidadão comum, de que mínimo necessitávamos para
nos entendermos. Encolhemos a língua na medida das necessidades e fizemos
dicionários e gramáticas à medida dessas necessidades.
O descritivismo triunfou sobre a normatividade. Significou
isso, na linha do que acabámos de dizer, que a descrição linguística operou sobre
um corpus em parte determinado, ou pelo menos sancionado, pelo uso. A norma
gramatical tornou-se permeável, por exemplo, à suposição de uma «intenção» do
falante ou mesmo às suas «preferências». [Vejam-se por exemplo as hesitações na
concordância com expressões partitivas, ou de quantificação, e respectivas justificações.] Além disso, o antigo sistema de
regras e excepções gramaticais, considerado insuficiente para abarcar todas as
possibilidades da língua usada, foi tomando a forma de um vasto e complexo
estendal terminológico.
Esbateram-se as antigas distinções entre culto e popular,
entre escrito e falado. Quem alguma vez deu aulas de português a estrangeiros
conhece as dificuldades de explicar a «utilidade» da aprendizagem do
mais-que-perfeito do indicativo, do futuro do indicativo, ou do condicional,
que a língua oral substitui sistematicamente, substituição que ninguém parece
particularmente interessado em corrigir: ninguém quer ficar do «lado errado da
história». Porque é assim que os falantes dizem, é claro. «É a evolução da
língua, estúpido!», dirão alguns mais acerbamente. Algum dia alguém exigirá que
se amputem essas excrescências inúteis.
Entrámos assim no reino da superstição democrática (a
expressão é de Jorge Luís Borges). A lógica é, grosseiramente enunciada, esta:
«se se diz (ou se se diz assim) é porque existe; se existe tem de ser
descrito». Certíssimo! O pior é que esta proposição gera outra, igualmente
verdadeira: «se não se diz, é porque não existe; se não existe não tem de ser descrito».
A «pátria antiga», arcaica e empoeirada, e a «pátria
pequena», no sentido em que por exemplo João Araújo Correia ou Tomaz de
Figueiredo a evocaram, foram assim convidadas a retirarem-se da mesa e irem
para a cama de castigo, uma por ser velha e desconforme, a outra por ser aldeã
e rural.
Temos reduzido, então, a língua, por desbaste, a uma língua
essencial e urbana, ufana da sua contemporaneidade, desconfiada de
vernaculismos obscuros e de construções inabituais, aberta sobretudo ao
momento, atenta a rumores e tendências, sempre um pouco avessa à nacionalização
de terminologias em voga com que nos damos ares de cosmopolitismo e
sofisticação. Sobretudo, a «pátria» estreitou-se, resignada a uma certa ideia
de simplificação, que é, no nosso modesto entendimento, um argumento
inaceitável em linguística.
Creio que temos de ser capazes de olhar este processo com
lucidez, quer reconhecendo os erros e excessos, quer sublinhando as qualidade e
virtudes. O que não podemos é olhar o fenómeno, prazenteiramente, como um
infeliz embora divertido acidente, que, por meio de jigajoga, se haverá
finalmente de recompor. Talvez não possamos mesmo limitarmo-nos a descrever o
acidente e anunciar: «Querida, encolhi a língua». Afinal, o empobrecimento
nunca é um filme cómico.
3.
Mas não é tudo.
A língua literária foi sempre considerada
o repositório dos tesouros da língua, guardiã da sua história, a sua linhagem
nobre, espaço de fixação lexical e sintáctica, e, na mesma medida, o lugar da
sua reinvenção.
Tal era possível porque o escritor — «semelhante a uma luz
que, invisível em si, aquece e torna visível o mundo», como escreveu Jünger —
era uma reconhecida autoridade no domínio da língua, fonte de abonação e de
legitimidade. Exemplar, mesmo que disruptor, pois só sabe desfazer bem quem também sabe fazer bem. A principal razão disso residia
no facto de terem os escritores, em geral, um forte domínio da língua e uma
consciência aguda das suas variações e possibilidades, bons conhecedores dos
seus usos literários através dos tempos e, muitas vezes, defensores, com
especial filáucia, das suas particularidades. Desses, já só se reconhecem uns
poucos. Mário de Carvalho ou Fernando Echevarria representam bem os que aqui
não menciono.
A abonação e a legitimidade é hoje vulgarmente procurada em
jornais e blogues, onde todos podemos ser autores. O texto publicitário, a
reportagem, a entrevista, a notícia, o requerimento ou a carta dividem entre
si, em partes irmãs, com a literatura, o espaço curricular da língua, nas escolas.
A literatura veiculada escolarmente barricou-se num universo «infanto-juvenil»,
e daí não sai.
Mais do que para a literatura, os poderes públicos estão
orientados para os problemas da literacia, que é, hoje, entre outras coisas,
também um problema de saúde pública, o que só por si diz muito sobre o
empobrecimento da língua. Não que esses problemas não sejam reais por esse
mundo fora, mas porque a aprendizagem afastada da língua literária é
objectivamente empobrecedora. É um trabalho de modista que desconhece a
alta-costura.
Se escritor é todo aquele que escreve, ao contrário do que
afirmaram Nemésio ou Mourão-Ferreira, confunde-se agora com o publicista, que
não pode ir muito além da língua essencial que lhe permite ser lido: a língua
literária também encolheu, talhada e tolhida pela necessidade. Passou a quase
não se distinguir da língua comum, a procurar mesmo uma normalização, uma habitualidade reconhecível. Até porque a língua comum
absorveu e banalizou certas fórmulas e recursos, como a inversão da ordem entre
nome e adjectivo. O fenómeno, que não é exclusivamente português, tem uma clara
dimensão económica e editorial.
Folheemos romances ao acaso para vermos como as personagens
reagem encolhendo significativamente os ombros a cada passo e a cada página;
para vermos como, em diálogo, respondem sempre, mas rarissimamente replicam,
retorquem, retrucam, redargúem, anuem, assentem, objectam, argumentam ou
contrapõem; para vermos como as estruturas sintácticas e lexicais não
ultrapassam um determinado grau de simplicidade ou de sensaboria. A
simplicidade e a sensaboria de uma língua normalizada e abençoada pelos
processadores de texto, que maldosamente insinuam a dúvida em quem não tem já
muitas certezas.
Significa isto também que o leitor médio, e sobretudo o
leitor jovem, tem vindo a perder a capacidade de ler os clássicos, antigos ou
modernos, crescentemente feridos de ilegibilidade, quantas vezes impedidos de
entrar, quando não expulsos do cânone escolar.
Sabemos que a língua sofre transformações. Sabemos que cada
época tem a sua língua essencial. Mas sabemos igualmente que a língua é cumulativa,
o que não é usado num certo momento não deixa de existir por isso, é um
remanescente, pronto a entrar em acção quando tal lhe for solicitado, ou, para
ceder aos usos de agora, um importante activo.
É preciso olhar este fenómeno de encolhimento, não de forma
relativista, observando apenas — encolhendo os ombros — que sempre foi assim em
todas as épocas, mas trabalhando para que os múltiplos afluentes da língua não
sejam estancados.
4.
A nossa língua – a comum e a literária, nos seus diversos
registos – é muito rica em tesouros escondidos. Como desenterrar e recuperar
essa riqueza?
Lendo. Descobrindo, aprendendo. Lendo. Redescobrindo,
reaprendendo. Observando as diferenças necessárias entre a língua falada e a
língua escrita. Escutando. Corrigindo. Lendo. Redescobrindo e reaprendendo a
língua na sua grandeza e na sua diversidade, diacrónica e sincronicamente
considerada.
Evidenciando, por exemplo, a importância de uma prática de
escrita e de leitura confiável:
«No que toca à precisão e propriedade da linguagem, fontes
indispensáveis da clareza, é preciso que desde logo aprendamos a distinguir o
sentido próprio e figurado das palavras, a explicar, por meio de frases,
diferentes acepções da mesma palavra, a indicar a ideia geral comum a várias ideias
e a ideia particular expressa por cada uma delas.
Aprenderemos a descortinar,
por exemplo, que em “abater, demolir, arruinar, destruir” existe uma ideia
comum qual é a de “fazer cair”, mas que cada um destes verbos tem um
significado e emprego particulares. Compreenderemos que indicar sinónimos não é
tanto apresentar palavras que exprimam as mesmas ideias (caso que geralmente só
acontece com palavras de origem diversa ou chegadas até nós por via diferente, e
ainda assim com diferente emprego), mas sobretudo ideias semelhantes.
Aprenderemos a encontrar por nós próprios locuções e frases correspondentes de
outras, por meio das quais possamos evitar as repetições de forma ou as
desarmonias do estilo. Aprenderemos também até que ponto os provincianismos e
os neologismos são admissíveis, e seremos levados a reconhecer que os
barbarismos de construção são muito mais reprováveis que os de simples
palavras, porque sujeitam o pensamento a moldes estrangeiros e brigam com o que
há de fundamental no espírito de uma língua.»
Palavras colhidas no livro Problemas de Análise Literária,
de F. Costa Marques, licenciado em Filologia Clássica, professor do Liceu de D.
João III, em Coimbra, na sua já longínqua primeira edição da Livraria
Gonçalves, de 1948.
Muitos serão os caminhos, como as moradas. Apenas me atrevo
a enunciar um deles: voltar a uma orientação que faça regressar a semântica, e
com ela a atitude e o procedimento filológicos, que faça regressar todo um
programa de minúcias e subtilezas com que sejamos capazes de enfrentar a
bruteza dos tempos.
Jorge Colaço
Lisboa, Maio de 2016
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