domingo, 23 de dezembro de 2018

Portugal Culto e Oculto


 "Série de 10 episódios sobre espiritualidade retratada através da história e das estórias de algumas das ordens espirituais e religiosas existentes em Portugal.
Uma viagem conduzida pelo historiador João Rodil e pela jornalista Rita Saldanha".

Depois de ver todos os episódios na RTP 2 (excepto o último que vai ser emitido para a semana) da série televisiva assim apresentada, fiquei com a ideia de que a História é volátil. Seguindo o guião, não há corrente portuguesa que não seja boa, casta, quisá santa e de boas famílias...  Um inocente que nada perceba fica perdido como numa loja de bolos deliciosos sem saber o que escolher. É a chamada História "fast-food", sem complicações nem imaginação. À conta da palavra "tolerância", palavra detestável, aliás, porque nega o Amor, reduz-se tudo à expressão mais simples e é assim que se prova que a "harmonia" (entre aspas, sublinho), entre as partes, se torna possível, nos dias d'hoje, se se for superficial. Quem aprofunda entra logo em desarmonia. O culto e o oculto apresentados são uma espécie de visão "light", passageira (como é praticamente tudo na televisão), a História é volátil e sem rigor, as omissões são construtoras de imagens e os cartões de visita para cada "sociedade", esses sim, são rigorosamente impecáveis e todos iguais uns aos outros. Um tédio, uma maçada e um convite a que os inocentes percam tempo na tentativa de encontrar qualquer coisa. Sem graus de exigência à partida, a chegada fica sempre mais longe. A televisão é, por certo, o meio mais eficaz na informação e na desinformação.  De História, este programa não tem nada, é antes um meritório exercício de alguma informação e de muitíssima desinformação. Mas nada mais podemos esperar nos dias d'hoje e muito menos que alguém inocente vá estudar depois de ver o programa, quanto muito, vai a correr bater à porta desta ou daquela sociedade (indiferentemente pois todas aparecem com uma imagem decente, correcta e... politica, por isso mesmo). Estudar, dá muito trabalho e não há tempo a perder, mesmo que se tenha de perder tempo. Com o estudo da História ganhamos tempo, com este programa, perdemo-lo. 

(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

O Rei


Se o Rei é escolhido por Deus e elevado pelo povo a pergunta que se faz nem sequer é: "Mas onde está o Rei?", é "Onde está o Povo?"
Antigamente o povo era aquele que trabalhava com as mãos, fosse nos campos, fosse pescando no mar, fosse no artesanato. Bandarra, por exemplo, seria um mestre sapateiro. Era um mestre no seu ofício como havia mestres de embarcações e gente que tirava o mestrado na vida dura do campo. Os Mestres andavam pelo povo...e eram o povo, e por isso, porque haviam recebido o mestrado nos seus ofícios saberiam reconhecer os frutos bons. Os frutos do labor, os frutos da terra, os frutos do mar. Era gente que, por aprendizagem, na sua maioria das vezes colectiva (o que quer dizer que também aprendiam sobre a natureza humana e daí o saber ou sabedoria, em suma, o mestrado) acabava por saber reconhecer a qualidade e eram eles que, perante o candidato que lhes era apresentado pelas esferas maiores o elegiam, o erguiam em ombros ou numa salva (salvé!), acima do chão e o escolhiam como Rei, como pessoa com qualidades para essa função. O povo hoje praticamente não existe porque se desligou da natureza e dos trabalhos com as mãos. A sabedoria é teórica e quando não é, é com frequência individual, perdendo-se, em conjunto com a sabedoria do labor, a sabedoria da natureza humana. O Rei pode passar por entre as gentes mas as gentes não são mais gentes e o Rei fica no segredo dos deuses porque o povo perdeu a linguagem divina. As gentes que são quem mais ordena, mudas, cegas e surdas, autoelegem-se numa sucessão de equívocos e só com muita sorte, da do género da Lotaria, acerta num Rei. Mas é sorte, não é sabedoria... A sorte é transitória, a sabedoria, muito menos.

Cynthia Guimarães Taveira

sábado, 8 de dezembro de 2018

Há canetas e canetas


Marine Le Pen respondendo a uma jornalista portuguesa que a questionou sobre o facto de uma elite francesa andar a mudar--se para Portugal porque aqui pagam menos impostos, resolveu "ensinar" a jornalista portuguesa dizendo-lhe que havia dois tipos de mentalidades: os nómadas e os "enraizados". Ela, Le Pen, representaria os "enraizados" que permanecem no território pensando nos filhos e nos netos, os nómadas, esses interesseiros, iam-se embora quando "a água do poço" acabava e estavam-se "nas tintas".  Brilhante! A mesma distinção é feita na Bíblia logo no princípio (escrita por esses nómadas). Caim (o sedentário) mata Abel (o nómada). É aliás, o primeiro assassinato da história...
A diferença entre uma "pen" e uma "drive pen" é a diferença que há entre a mão humana e um robot. A senhora, inculta, devia ter estado calada perante a portuguesa porque a portuguesa representa um povo que tem raízes com 900 anos e tem, em simultâneo, uma tendência para ir "por esse mundo fora". De maneira que, estas extremas direitas incultas, más, fanáticas e paranóicas devem ser aproveitadas ao máximo quando toca a medidas proteccionistas de um país e devem ser logo deitadas fora mal ultrapassem os limites, tal e qual os soldadinhos que são rapidamente esquecidos quando já não fazem falta. Quando os políticos querem ser soldados há que "sangrá-los" bem, como se faz aos porcos e depois atirá-los às feras... Dos soldados tenho alguma pena porque é sempre triste o seu destino, destes políticos-robots, não tenho pena nenhuma. Não têm cultura e, por isso, não têm passado nem futuro. Está-lhes reservado o destino triste da "sangria" por vontade própria. Agora vir dar lições aos portugueses... Essa não. De sedentários e nómadas percebemos nós muito e de ambos temos um pouco. Não admira que Portugal seja a Coroa da Europa. Coroa, aliás que a França foi a primeira a rejeitar. Agora não se queixem e resolvam, como pais central que sempre foram, e fazendo "pandan" com a Alemanha, o embróglio europeu que criaram. Mas não nos venham dar lições.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Para além disso...


E diz-nos René Guénon, no seu conjunto de textos que compõem a obra  " Os Símbolos da Ciência Sagrada", no capítulo "Pedra Angular": 
"O destino dessa pedra só pode ser compreendido pelos construtores que transpuseram o esquadro e o compasso".

Nao foi sem ponderar que escolhi esta imagem para traduzir tal transposição. 

O traço solto e exacto é o dos repentistas onde não há espaço que não seja preenchido pela totalidade do seu ser de modo que, alcançados os limites do seu próprio ser, encontram a transcendência, ou seja, aquilo que está para alem dele. 





terça-feira, 27 de novembro de 2018

Touradas



Senhora Ministra da Cultura e possuidora também da Pasta da Comunicação Social:

Venho por este meio citar Lucas Benoist no seu livro "La Cuisine des Anges, une esthétique de la pensée" que, por sua vez, é citado por René Guénon nos "Símbolos fundamentais da Ciência Religiosa" pág. 23 ed. Pensamento:

"... O interesse profundo de todas as tradições ditas populares reside em especial no facto de que não são populares na origem.

Assim, amiga Ministra, proponho-lhe um desafio: tentar encontrar aquilo que "não é popular na origem". Se encontrar, só isso, e apenas isso lhe dará legitimidade para dizer o que se entende por "civilização". A civilização não é uma criação de Vossa Excelência. Não é um episódio de telenovela que pode ser re-escrito conforme o desejo da audiência. Até porque a audiência, na maioria das vezes, não "ouve" porque está distraída a ouvir Ministras da Cultura que lhes dizem o que é Civilização e o que não é Civilização. Assim, deixo-lhe o desafio de encontrar "aquilo que não é popular de origem" até porque a Ministra, já se tornou bastante popular com as suas afirmações.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Microcosmos


Abre, em sossego, os olhos
à paisagem porque ela própria
só abre os olhos em sossego
para ela própria

Nestes tempos de sombras
Ritos sem ritos
Vestes sem vestes
Palavras sem palavra
Ocasos aplaudidos nos Cabos...

Torna-te paisagem
Pelo próprio gesto dela
Claríssimo e solene
Não osciles na tua alma pura
Sê como essa árvore de braços longos
Ligando todas as direcções

Sê um universo sem noite
Toda paisagem é ela e o seu reverso.

(Cynthia Guimarães Taveira)






domingo, 25 de novembro de 2018

A Novi-civilização


A novi-civilização é  composta por novi-santos porque neles, graças à novi-educação todas as pulsões negativas foram eliminadas. Vivem na paz de um Senhor que pode existir ou não consoante a escolha da religião de escaparate de supermercado. Não fazem mal aos animais nem os comem.  Sao todos vega (a caminho da ausência de dentes pelos tenros vegetais - que não são seres vivos...), o sexo é fluído porque varia no género e do engate feito de imagens projectadas pelos interessados no "plano subtil", ou antes, neo-subtil. A arquitectura é neo-sagrada, baseada na harmonia dos números pitagóricos e não só, depende da tal neo-religião de escaparate de supermercado. As neo-crianças serão educadas no sentido da paz e da harmonia com regras de cidadania embutidas na mecânica dos gestos. A neo-civilização será produto da neo-consciência que nunca será individual mas colectiva-integrante-de-toda-as-diferenças tendencialmente difusas e atenuantes de qualquer atrito, obstáculo ou dificuldade no que toca ao pleno entendimento do "outro" que nada mais é do que um "eu" sob outra forma, sujeito imprescindível para a bem aventurança das nossas boas acções de consciência colectiva.
Ando deliciada com esta novi-civilização e com esta tão esperada erradicação do mal do consciente, do inconsciente e do subconsciente. Afinal, já não somos todos humanos. Também não somos deuses, nem Deus, nem extraterrestres. Cá para mim, se calhar nem somos coisa nenhuma, porque o ser, verdadeiramente, não existe, foi substituído por uma neo-estrutura-funcional autofágica possuidora do dom da eternidade graças ao avançado estado da tecnologia na área da saúde e ao facto de sermos todos vega porque as plantas não são seres vivos. Se fossem nem existiamos. Isso é que era bom.

Cynthia Guimarães Taveira

sábado, 24 de novembro de 2018

A Pomba


Três filhos, um da teosofia, outro do Socialismo e outro do Nacional Socialismo foram à loja do racionalismo e compraram a Razão, a Dialéctica e a Razão Transcendente e, em seguida, foram para o café e conversaram sobre a Razão com todas as razões. O Espírito Santo pairava noutro lugar mas, ainda assim, eles viram uma pomba sobre as suas cabeças e ficaram muito contentes. A pomba teve um descuido gastrointestinal e deixou cair um repuxo "divino" no centro da mesa. Eis as maravilhas da actualidade noticiosa.  

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

A falta



Desenho de Cynthia Guimarães Taveira


Depois de ler "0 romance de Leonardo de Vinci" de Dimitri Merejkoski e de ver "O Pesadelo na Cozinha" de Ljubomir, cujas técnicas de aprendizagem orientais são aplicadas aos cozinheiros lusitanos que dormem em pé, tive o estranho pesadelo no qual a mensagem era simples: a qualidade não tem espaço onde há falta dela. Não há diferença entre esses donos de restaurante, sobretudo os homens, e esse contexto embebido em lutas pelo poder do qual Leonardo foi vitima pela incompreensão a que foi votado. Esses donos de restaurante, dormentes excepto no orgulho, inóspitos na criatividade, incompetentes como seres humanos, são os mesmos que destruíram o Cavalo de Bronze de Leonardo. O princípio é o mesmo.

(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 3 de novembro de 2018

Olá Brasil



Quando a Família Real Portuguesa, em fuga, é certo, chegou ao Brasil aquilo que fez foi criar Instituições. Ora os portugueses, vá-se lá saber porquê, são muito intuitivos, (ou antes até sabemos: é porque possuem um jeito nato para lidar com situações fora do seu país de origem), e perceberam logo que elas faziam falta nessa terra. E continuam a fazer. O principal problema do Brasil é a ausência de Instituições que funcionem. Nao é a Ordem (como um todo verificável) nem o Progresso (como uma epifania permanente), são Instituições, umas ligadas ao Estado, outras nem por isso, mas que, de alguma forma, façam a sugestão permanente na cabeça dos brasileiros de que alguma coisa pode funcionar sem serem necessários "esquemas", como tem sido esse o "timbre" cultural dos brasileiros. Ora o "esquema" é uma decadência do "desenrascanço" (timbre português). Assim, nao é de tiros, nem de ditaduras militares de direita, nem de esquerdas pós-modernas encharcadas em esquemas de séculos e também não é de Ordem ou de Progresso aquilo de que o Brasil necessita.  Necessita de portugueses quando já não se lembram de deles ou só se lembram como um bode expiatório que de tão velho já perdeu o charme. Quando se lembram dos portugueses, e a memória é viva e positiva, então já não necessitam de portugueses para coisa nenhuma porque o melhor deles já foi incorporado. E a isto, meus "irmãos", é que se chama Independência.  A Ordem e o Progresso fica bem abaixo da Liberdade que devia ser o vosso verdadeiro lema. Foi para isso que fizemos um Império. Para libertar.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Três pinturas

(fotografia de Maria do Céu da Costa)
Très Pinturas de Cynthia Guimarães Taveira
 
A propósito do encontro promovido pela Ordem de Ourique (subordinado a temáticas debruçadas sobre o Futuro, a Tecnologia e a Ciência) que aconteceu no dia 12 de Maio de 2018, no Mosteiro de Santa Maria na Ajuda em Lisboa, foi-me sugerido que levasse três obras pictóricas, à minha escolha e de minha autoria e que, de alguma forma, as apresentasse ou discorresse sobre elas. Em simultâneo, nesse mês, de entre as disponíveis, outras treze obras tiveram de ser escolhidas para uma exposição patente num restaurante em Arruda dos Vinhos. Dei por mim a selecionar com cuidado aquelas que iriam para um local e as que iriam para outro. Posto isto, direcionei “As Tulipas”, “O Anjo” e “O Cisne” para a Ordem de Ourique pois entendi serem elas amostras de um percurso pessoal indissociável do pensamento e da filosofia, a par com uma “mística”, o que em rigor anda, igualmente, a par e passo com a mesma Ordem e com os propósitos pelos quais foi criada de origem: pensar e agir «portugalidade».
 
Embora não constem nas obras símbolos tipicamente portugueses, como a Cruz de Cristo ou a Esfera Armilar, ou bandeiras, ou Cordas Manuelinas, ou Caravelas, ou Barcas ou Corvos, ou ondas do mar, o que é certo é que o percurso artístico, místico e espiritual da autora não teria sido o mesmo se, desde muito cedo, por volta dos 13 anos, não tivesse havido um encontro com a Temática da Portugalidade através do poeta Fernando Pessoa, e poucos anos depois, dois ou três,  o encontro com a obra de Dalila Pereira da Costa. O que é certo é que mesmo não estando visível pelos seus símbolos comuns, essa Portugalidade está por detrás de cada obra elaborada. E quando dizemos de cada obra pictórica, dizemos todas, sem excepção. A razão disto prende-se com a paralela e, ao mesmo tempo, una, relação que existe entre a descoberta do País e a auto-descoberta pessoal. Nestes tempos “modernos” e de globalização”, Portugal torna-se caso raro nessa possibilidade dupla e harmoniosa, mantendo sempre em aberto (e contra todas as probabilidades e expectativas) a possibilidade de ser este um país verdadeiramente iniciático, com mortes e renascimentos, para quem se predisponha, com a mesma abertura que o país releva e revela a todos aqueles que escolhe (sendo o país iniciático, ele é que escolhe quem o procura…).
 
Assim, e começando pela obra “O Anjo”, duas figuras esguias, procurando por essa forma fazer a ponte entre o céu e a terra (base da identidade da espécie humana, muito mais do que um simples acrescento genético ao chimpanzé), uma humana, outra angelical (com asas visíveis), tocam-se em baixo, gerando, deste modo, o fogo. A razão pela qual esse toque aparece em baixo, e não em cima, prende-se com a Descoberta da Presença Celeste na Terra. Só assim, e não de uma forma meramente utópica ou idealista, se pode dizer que essa Descoberta existiu ou, dito de outro modo, é no coração carnal, aquele mesmo que bombeando o sangue consegue em simultâneo pensar e sentir que essa Descoberta do Transcendente se faz. Sem ele, em profunda abertura para o mundo e para o supra-mundo, nenhuma Revelação é acessível ou possível, sequer. É, aliás, a presença do corpo que nos distingue dos anjos… quando se dá essa Descoberta que, segundo as “linhagens espirituais”, pode ser tanto um encontro com o “totalmente outro”, usando os termos de Otto Rahn, como um “desdobramento do próprio ser” que assim entra em contacto com o seu lado angelical (ou centelha divina, que todos trazem consigo) ou ainda, ambos os casos ocorrendo no mesmo ser.
 
Essa descoberta ou Revelação ou ambas, geram energia ou fogo que visa sempre a transmutação. Os adjectivos desse fogo são inúmeros e dependem também de linhagem para linhagem. Falamos em linhagem pois não consideramos que a espiritualidade se prenda única e exclusivamente com “escolas”, indo muito além do pensamento teórico e filosófico devido a inúmeros factores (genético, memórias genéticas, memórias de vidas passadas – o caso de Dalila Pereira de Costa, por exemplo, história pessoal, escolhas divinas, nascimentos com missões bem estipuladas, etc…) poderem estar presentes no seu desenvolvimento e também não falamos de evolução por ser este um termo Darwinista, não permitindo a deslocação qualitativa no espaço-tempo, sendo o termo desenvolvimento mais integrador, tanto de movimentos cíclicos como escatológicos.
 
O fogo que surge é, em altura e em figura (esguia) semelhante aos dois seres que estendem a mão para o tocar e para se tocarem, quase como se fosse um terceiro ser ou coluna/sustentáculo desse mesmo desenvolvimento. Todo o diálogo se inicia deste modo, toda a transformação é possível a partir desta evidência. Cada um dos seres tem uma espécie de pregador em forma de flor, embora com cores diferentes. Cada um possui uma forma de Sabedoria específica, pétalas falantes, revelações próprias em abertura e diálogo. Vemos então que todo este misticismo se baseia em movimento e em dinâmica, qualidade da palavra Vida, sendo a Morte, como paragem ou inércia, apenas uma face da Vida.
 
De seguida temos a obra “Tulipas”. Nela uma espécie de deusa consegue o prodígio do equilibro na mais profunda assimetrias das tulipas que dela surgem. A tulipa, mesmo depois de colhida, cresce, em água, cerca de um centímetro por dia, o que, para quem faz arranjos de flores que duram vários dias, se torna candidato à pré-visão  (imaginar qual o tamanho que a tulipa terá daí a dois dias, por exemplo, e fazer um arranjo que conte com essa característica da tulipa, não estragando a harmonia do total do arranjo), torna-se, muito facilmente, para quem com flores trabalha, num símbolo ligado à capacidade visionária. É também uma flor extremamente sensível à temperatura. Abre-se muito rapidamente se retirada do frigorífico e volta a fechar-se se voltar para ele. É, portanto, uma flor com grande sensibilidade para o calor/fogo, mudando rapidamente o que também, para quem trabalha com flores, remete para o futuro local onde a flor será instalada, se ao ar livre, se não, se num local com baixa temperatura, se não o que invariavelmente compromete o efeito que a flor virá a ter quando se faz um arranjo com ela. Assim, entre o extremamente volátil no tamanho e na forma, torna-se uma flor que requer precisão e sabedoria, uma segurança adquirida com os anos. Tal como o equilíbrio dentro da assimetria, sem comprometer a harmonia, para além de ser este um espírito Barroco, requer o conhecimento endógeno de uma certa geometria sagrada e uma segurança total. Essa segurança remete naturalmente para a existência, no ser humano, de um eixo fixo, permanente, exacto que está presente na pintura, a azul: um vidro sólido que atravessa todo o ser. Só assim, é possível o que, à primeira vista, parece ser impossível, a harmonia dentro da aparente desarmonia com que as tulipas surgem. E surgem em movimento (embora estáticas em pintura – a pintura não é cinema), ou seja, a ideia com que se fica é que estas sete túlipas se movem, se transformam em torno de um eixo, o motor Imóvel da Tradição, sendo em número de sete, “o ciclo completo, a perfeição dinâmica” (em movimento), tal como está na entrada para a palavra “Sete” no Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. O ouro que rodeia a figura, é, por si mesmo, um símbolo de realeza… a rosa central prende-se com a Sabedoria, naturalmente. Ou seja, no centro do centro, está a Sabedoria.
 
Por fim, temos a obra “O Cisne”, que nos aparece por entre flores, quase como uma parede, obrigando-nos a fazer com o olhar a separação entre dois planos: aquele que está mais perto de nós, e esse outro, o do cisne dominado, digamos assim, por uma figura humana. Mas se olharmos melhor, e podemos começar a análise por aí, o sol e a lua estão presentes. Aliás, dois sois e uma lua estão presentes como verdadeiro pano de fundo. Um dos sóis é claro, outro escuro e a lua é azulada… o mundo crepuscular, onde céu e terra se fundem, visão difusa por entre as ramagens com flores (rosas). O cisne como o que consegue não sentir nem frio nem calor, uma certa pureza inocente nas suas alvas penas, cuja curvatura do pescoço é suave e o seu deslizar pelas águas turbulentas do mundo mais suave e sereno ainda… o local, por excelência, onde se descobre que o sol é negro e que o verdadeiro sol é interior ou anterior à criação deste mundo turbulento a partir da volatilidade das águas, turbulentas e instáveis, às quais se sobrepõe o cisne deslizante, quase imperturbável na sua forma externa… um paraíso acessível. Talvez até demasiado acessível… Se assim o é, porque é que a figura o “domina” de alguma forma? Por vontade dupla de se fundir com ele e de o transcender, de estar para além dele (mundo crepuscular, lembro, onde os opostos convivem em fusão – o Regime Nocturno ou Místico lembrado por Gilbert Durand na sua obra “Estruturas Antropológicas do Imaginário”, dando este “Regime” o nome a um capítulo inteiro subdividido em vários. Um Regime, ou um estado apelativo, com intenções de permanência eterna, mas, ainda assim, demasiado acessível. Lembro a Confraria a que pertenceu Hieronymus Bosch, esse grande pintor e também visionário, cujo animal escolhido para a assinalar era um cisne que, estranhamente, acabava num prato, uma vez por ano, e comido pelos confrades numa celebração… estranho rito este, associado a este sereno animal, capaz de deslizar em ritmo permanente nas águas, símbolo de impermanência. A ambiguidade ritual é extrema, integrando o animal no corpo ao ser comido e, em simultâneo, uma espécie de “corte” com o símbolo, muito semelhante, aliás, ao “partir da cruz” de que foram acusados os Templários… talvez porque, até o próprio símbolo seja algo a transcender, tal como aquilo que o símbolo simboliza. Uma procura de liberdade total, indo para além da noite e do dia ou do crepúsculo, como símbolo apenas da verdadeira união entre sol e lua e não a união em si. Ou, dito doutro modo, a procura do Sinal (algo com apenas um sentido) mas actuante no mundo, por já ter percorrido a esfera da diversidade simbólica. Actividade só possível depois dessa viagem pelos e nos símbolos. É, então, uma obra que enuncia a complexidade iniciática e, ao mesmo tempo, anuncia uma saída do labirinto tão presente nas ramagens cobertas de múltiplas rosas ou sabedorias (e não só uma). Uma procura, portanto, da Unidade.
Certo é que a autora vê o que faz de um modo e que os observadores a verão de outros modos. Isso é certo e rico. No entanto, o acrescento de um texto é sempre bom numa época de “Imagens” praticamente mudas e sem grande significado: estamos rodeados de imagens, de manhã à noite, sem a sua dimensão da palavra (verdadeiro motor da imagem), porque provinda da Consciência. A Palavra tende para a Consciência e pode contrariar inconsciência ou subconsciência da Imagem.
Num encontro cuja proposta era a de se conversar sobre o Futuro e sobre a Tecnologia Moderna, o contraponto será sempre a Mão Humana, capaz de criar directamente a partir de uma matéria-prima e de falar sobre o Futuro, mas de uma outra maneira. De uma maneira mais artística, digamos assim.
 
Cynthia Guimarães Taveira