É certo que a criança tinha algum grau de Asperger, no entanto, não pude evitar rir quando, ao contar a lenda do galo de Barcelos, se sai com esta:
- E o juíz viu que era tecnicamente impossível o galo cantar.
E disse-lhe:
- Essa do tecnicamente impossível, tem graça.
Ligeiramente indignado ripostou;
- É tecnicamente impossível o galo cantar.
Ainda tive a tentação de lhe dizer que os milagres são falhas técnicas e acertos fora das técnicas, mas penso que não iria compreender.
Estamos num mundo tecnologicamente avançado, ideal para o aparecimento de cada vez mais casos de autismo e de Asperger, como se o mundo, tal como está, chamasse as almas que com ele se assemelham. Não me admirava nada que assim fosse. Almas especializadas e onde a capacidade de simbolizar fosse encaixada numa falha técnica. Aquilo que não tem sentido, só pode ser uma falha... até o próprio "no sense" é um erro, algo que não corre bem no discurso que é uma sucessão de causas e de efeitos.
Mas já nada me admira, desde que vi um ser que se dizia espiritual a ficar branco como a cal quando alguém acendeu uma fogueira sem que houvesse fogo de contacto. No fundo, não era espiritual. Porque também há os Asperger dos mundos espirituais, gente que, bem lá no fundo, se acha superior e que caminha sobre as brasas em que não acreditam.
Também conheço um que se propunha a confeccionar ídolos de papel para vender e, qual não é o meu espanto, quando solta esta:
- Há quem acredite nestas coisas.
Subrepticiamente estava lá o "tecnicamente impossível".
Foi com isto que tive de lidar por uns anos. Depois cansei-me de conviver com um leque tão baixo de possibilidades. Apesar de tudo, uma criança com Asperger é mais genuína.
Depois há os científicos que dizem que tudo no Universo é energia e que se as energias forem canalizadas em grande número, farão com que a imagem da Virgem chore lágrimas de sangue. É tecnicamente possível e, assim, e só assim, os milagres são aceites e até podem dar jeito.
Chamo a isto o mistério da alma humana. Até que ponto é que não estamos rodeados de Asperger de várias espécies, desde os mais simples, como crianças, até aos mais eruditos que, não sendo crianças, são muito espertos e dizem roçar a possibilidade de desvendar o Mistério, tão próximos se sentem da verdade. Mas da verdade que é sempre tecnicamente possível, nunca da mentira ou do erro que é tecnicamente impossível. Normalmente chamam a isto a vitória da Luz sobre as Trevas, mas não serão apenas Asperger meio iluminados no sentido em que alcançaram a parte de fora do símbolo (a única que conseguem alcançar) deixando no ar uma vertigem de autoconvencimento invencível como o Gato da Botas que, bem vistas as coisas, era apenas esperto, expedito e com talento para se mover neste mundo, (nunca no outro) como o príncipe dele e todos os belos príncipes que perseguem e queimam na fogueira todos aqueles que não brilham com a luz que bem entendem ser a verdadeira.
Também ouvi da boca de um que mal se começava a evoluir espiritualmente, naturalmente, a riqueza material aparecia. Esse era Cristão e devia imaginar um Cristo todo paramentado a fios de ouro. Olhei-o de boca aberta, e ainda tenho a boca aberta, a olhar para ele. Ele é o palácio e eu a burra. Ele era mais "apalaçado" do que o túmulo de Cristo e respectiva ressurreição.
Estes seres normalmente gostam de bruxas cegas porque dizem que prevêem o futuro, ou de bruxas simplesmente doidas que dizem umas coisas que depois podem ser aproveitadas. São os gatos das botas, versão "sanguessugas" e extraordinariamente evoluídos espiritualmente, assim se pensam. São os que "dominam" tudo à sua volta, os que sabem de que é que a casa gasta, de que é que este mundo gasta.
Houve aí uma fase em que chorei lágrimas sem fim, elas vinham de dentro, jorravam como uma fonte que nunca se acabava, sem que na altura entendesse o que se passava ou o porquê de tantas lágrimas, mas a resposta era bem simples: desilusão. Mas foi essa desilusão com esses seres que me fez ver o quão distante estava de tudo aquilo. Nunca foi uma desilusão com a minha própria ilusão, foi uma desilusão com a ilusão que criavam e foi por isso que se deu um corte ontológico, visceral.
Hoje percebo que têm Asperger de adultos, que estão bem nesta época, que a merecem, que vivem nela e a saboreiam até ao tutano. Daí que não tenham criatividade alguma. São tecnicamente possíveis, juntam elementos como a Inteligência Artificial. Nunca erram. Nem levam pancada (como afirmou Pessoa) porque nunca iriam bater neles próprios, o máximo que conseguem fazer é a penitência, que cheira a catequese, a teias de aranha, a padres com taras e ao perdão imediato depois do terço. Um perdão tecnicamente possível. Instantâneo, até.
Um dos elementos que gostam muito de juntar são as chamadas trevas que cada um carrega dentro de si. Adoram dizer que passaram pelas trevas, como heróis, e atiram à cara dos outros a urgência de o fazer como se, por um qualquer mistério insondável, soubessem quais são as trevas de cada um, pois pensado saber quais as deles, pensam saber as de todos. E movem-se bem nessas jogadas, quer sejam de bastidores ou directas. E mesmo que pisem o risco e espezinhem o Espírito Santo nessa corrida para a glória, lá vem a Santa Penitência que é como a água e lava tudo... e aparecem lavadinhos e penteadinhos como acólitos.
Mas há tanto Mistério na Vida, tanto que penso ser um grão de areia neste cosmos imenso, a primeira bolacha do pacote que sabe sempre melhor do que as outras. Tão vivo é o Mistério que é sempre vivificado e tão longe está destas acrobacias de circo. Tão longe me sinto, como uma ilha. Sou só a distância que me separa do Mistério.