(Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)
Hoje acordei cedo com o barulho dos pássaros, uma discussão entre galinhas na capoeira aqui perto, o luar, o despontar do sol. Tanta luz logo pela manhã. Tinha acabado de sonhar que retornava a uma casa que não era minha nem me dizia nada. Esse retorno, impensável naquilo a que se chama vida real, deu-me uma sensação dupla de liberdade e do perfeito desligamento com o passado. A memória é apenas útil nalguns casos, como este, que nos diz que o passado não prestou o serviço que lhe era devido e a sua utilidade não vai além disso. É o desligamento do passado que nos solta os gestos futuros. A luz do sol e da lua, o canto dos pássaros e a discussão das galinhas pareciam os contrastes possíveis dentro daquilo a que chamamos luz ou manhã. A tentação de acordar e de largar um sonho que não me interessava mais foi demasiado grande, como se houvesse uma fronteira abrupta entre o passado e o presente, sem continuidade ou possibilidade de resolução. Penso muitas vezes que o passado não é resolúvel em vida e que só depois da morte as coisas se compõem, uma justiça que tem de ser adiada se quer efetivamente existir e não aparecer meia morta aparentando todas as Disneylândias do mundo. Há um silêncio qualquer que me acompanha e que é essa fronteira abrupta, não só entre o passado e o presente, mas também entre a não espectativa e a espectativa de tudo. Um silêncio que é todo ele terreno de possibilidades inexploradas onde o paradoxo de aguardar sem aguardar é possível. Caminho sempre envolta nessa capa. A capa-simbolo, não só de proteção, mas igualmente de espaço, de liberdade, de vontade e, sobretudo, de invisibilidade. Logo a seguir sonhei com umas torneiras quadradas, possivelmente vindas dos anos sessenta. No sonho dizia que as torneiras eram velhas o que provava que a casa era velha. Não era antiga, era velha. Ora sabendo que a água é fluida e tende para a curva ao mínimo apelo, aquelas torneiras quadradas, muito prateadas ainda (o tempo parecia não ter passado por elas), tudo me pareceu paradoxal: a visita a uma casa velha, com velhas pessoas que estavam ainda novas como as torneiras quadradas. As torneiras, donde jorra a água viva, não eram apropriadas às curvas, à fluidez. Desse passado não levava nada a não ser uma personagem, demasiado envolvida na casa, que se apresseva em julgar o facto de ter regressado. Um julgamento idiota por não saber do meu total desapego a esse passado. Olhava para a personagem, que abanava a cabeça, desapontada por ter regressado e dizia para mim que não percebia nada desse regresso, que esse regresso era inócuo em mim porque das torneiras quadradas nunca poderia jorrar água verdadeiramente viva. Era um passado que não percebia nada do meu tempo presente, interpretando tudo mal. Acordei porque a luz despontava, a do sol e a lua, também ela ia brilhante no céu e entravam as duas pelas festas das portadas. Esse era o meu tempo presente. Luz.
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