A tabuleta assim, pendurada, esquecida, abandonada à indiferença, remete, mesmo que não queira, não a uma qualquer nostalgia, porque essas são sempre agradáveis, mas sim ao arremesso que o vento dá ao que quer, quando quer. Passámos do Portugal amordaçado do Ary, para o Portugal arremessado para um qualquer canto. Em abono da verdade, estamos sujeitos ao vento arremessados para onde calha. Nem com um reles orçamento se encontra um acordo, quanto mais em relação ao resto. Estamos num mundo sem ponta de poesia e Portugal não tem muito jeito para este tipo de mundo. Neste mundo das falsas notícias, tudo é, em contramão, realidade férrea, metálica, pesada e insistente naquilo que a realidade tem de abrutalhado. O mundo é um camionista ao volante, braço tatuado para fora da janela com o cotovelo ao céu, barba de vários dias, daquela que pica como espinhos, desmazelo orgulhoso de si, palito nos dentes, trincado depois de remover restos do almoço com sabor a banha servido à beira da estrada, óculos escuros espelhados onde se adivinha a tempestade próxima e reflectida, ténis velhos, do trabalho, saltando entre o acelerador e o travão. Calças de ganga, americanas, claro, porque a América é azul e é lá que está o Deus, qualquer que este seja; na rádio, a música pimba porque povo que é povo é brejeiro, goza e ri com um humor abaixo do infantil. A estrada é longa e leva ao objectivo do mundo que é um armazém onde se retêm produtos por pouco tempo, seja aí, nas lojas ou nas casas. Os camionistas não são mercadores, nem têm essa dignidade, são iguais ao seu camião, brutos, feios, largando fumo, com letras gastas e placas a balançar ao vento porque ninguém está para pregar um prego e acabar com o balanço. Já teve mais charme este mundo. E lá por dentro, no motor do camião, a combustão das guerras cujas explosões o fazem andar, andar, em direção ao armazém dos produtos, transeuntes vindos de uma qualquer fábrica que não é nem melhor, nem mais feliz que o camionista. Nunca o silêncio foi tão de ouro. Mas ouro velho, daquele que é o de um pôr do sol de Outono. Ouro que se distancia, para além de ser silêncio. O silêncio distanciado. O ouro? Sabem lá do ouro, da luz ou da poesia que é a mesma coisa. Para se ser decente, hoje, tem de se andar com o coração magoado. Se não se anda assim, somos camionistas agarrados ao tempo e ao vento da estrada. Só o coração magoado se eleva no seu choro fino, só ele acena à poesia quando ela passa montada numa fénix, só ele a vê, ainda assim, para além do ferro e do chumbo, vestida como sempre está, de glória.
Não concordo que o mundo seja um camionista, um certo mundo talvez, já Portugal, que esse nome já nem tem nos tempos que correm, é agora camionista e camião cheio de todas as tropelias que retrataste. Menos um grão de areia que teima em suportar o peso da carga em viagem, mas uma vez chegado liberta-se nas praias do sol poente onde se transformará na rocha firme e hirta que nos orienta. Ah, e esqueceste de referir a camisola de alças do motorista... ;0)
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