Há um provérbio judaico que diz que Deus criou o homem para
que este lhe contasse histórias. Como se toda a criação do mesmo não lhe
chegasse. Há na Criação, independentemente de esta ser queda ou não, uma ordem
que se confunde com a matemática. Conhecendo a exactidão da matemática
conhecer-se-ia a exactidão de Deus. O sustentáculo do mundo seria o número e o “jogo
de dados”, (que Einstein não diz quantos são, nem os jogos, nem os dados)
seria, para quem busca o conhecimento, o conforto da probabilidade e o leve
esvoaçar do número como símbolo. As histórias seriam a desordem aparente de um
mundo inteligente, mas fechado. Qualquer história de vida ou historieta
principal seria arquétipal, ora inserida no grande enredo ora inserida no
pequeno enredo que atravessa o drama teatral. De uma maneira ou de outra,
viveríamos confortavelmente incrustados no drama da nossa presença. A comédia
estraga tudo porque se ri do drama. A poesia invade como ondas a cidade fazendo-lhe
tremer os alicerces. A profecia encarna o demónio da sabedoria e a graça o eterno
problema do imprevisível e sobretudo da liberdade. O drama da nossa presença
permite que haja comédia, poesia e graça.
A conversa com os deuses permite-nos perceber o nosso
engano. O engano de não os sermos e o engano de os sermos. Os deuses são
demasiados humanos… porque o poder é o antónimo de ser-se humano, pois este
possuindo todos não possui nenhum.
A improbabilidade do sonho mais incongruente acontecer
coloca em causa o jogo das probabilidades. Porque qualquer pessoa entende que
não há sonhos improváveis e que a sua probabilidade de acontecer no real que se
nos apresente é uma probabilidade. O acto criativo é por isso aquela
probabilidade mais alta porque permite o improvável. Fora do acto criativo há o
aprisionamento incondicional na matemática das histórias arquétipais, ou
entendidas como tal. O “dispor” das formas que se nos apresentam e a sua
permanente reorganização é apenas o lado externo do processo criativo, porque
os deuses andam à solta para dentro e para fora de nós. A eternidade não é um
cristal, até porque frio, só e na
escuridão do cosmos não serve para mais nada a não ser para existir. E o
existencialismo é tão cansativo como a mais pura animalidade. Resume-se a uma
entropia que mais tarde ou mais cedo expira.
O pressentimento da melodia, dirá Damásio, intuitivamente,
resume a herança de luz que nos salvaguarda, não pelo acto imediato de identificação
mas pelo acto de fusão; identificação
tem o seu quê de racional e de intencional, a fusão é irracional e sem
intenção. A animalidade superior trata desta questão. O homem caminha para ser
irracional e sem intenção, só assim se funde na consciência que falta aos
animais. Só assim conhece. O leitor é o criativo por excelência:
“O leitor sabe que está consciente e sente que está em pleno
acto de conhecer, porque o subtil relato imagético, que está agora a fluir na
corrente dos seus pensamentos, manifesta o conhecimento de que o seu proto-si foi modificado por um objecto
que agora mesmo se torna saliente na sua mente. O leitor sabe que existe porque, nesta narrativa, o leitor é o
protagonista no acto de conhecer. O leitor eleva-se, transitória mas
incessantemente, acima da água do conhecimento, sob a forma de organismo sentido, imparavelmente renovado a cada novo
instante, graças a toda e qualquer
coisa que afecta a sua máquina sensorial, vinda do exterior ou recordada na
memória. O leitor sabe que existe e que está a ver esta página, porque a
história da consciência narra um personagem, - o leitor – no acto de ver […]
T.S. Elliot pode ter pensado em qualquer coisa de semelhante quando escreveu
nos Quatro Quartetos, sobre uma música ouvida “tão profundamente que nem sequer
é ouvida” e quando disse “tu és a música enquanto a música dura”. Pelo menos
deve ter pensado no momento fugidio em que um conhecimento profundo emerge –
uma união ou encarnação, tal como Eliot lhe chamou.” . (Teresa Martins Marques - Clave de sol - Chave de sombra - Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira, Editora Âncora, Lisboa, 2016. pag. 733)
As histórias que externamente contamos foram já escritas no
jogo de escondidas, achadas e de novo perdidas no Jardim das Delícias. As histórias
que internamente contamos estão todas por contar, situam-se na desordem
inaparente da escrita. A mesma desordem que há no movimento fluente da luz. Impossível
de agarrar e, no entanto, jorra.
(Cynthia Guimarães Taveira)
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