terça-feira, 12 de julho de 2016

A desordem inaparente da escrita

 
Há um provérbio judaico que diz que Deus criou o homem para que este lhe contasse histórias. Como se toda a criação do mesmo não lhe chegasse. Há na Criação, independentemente de esta ser queda ou não, uma ordem que se confunde com a matemática. Conhecendo a exactidão da matemática conhecer-se-ia a exactidão de Deus. O sustentáculo do mundo seria o número e o “jogo de dados”, (que Einstein não diz quantos são, nem os jogos, nem os dados) seria, para quem busca o conhecimento, o conforto da probabilidade e o leve esvoaçar do número como símbolo. As histórias seriam a desordem aparente de um mundo inteligente, mas fechado. Qualquer história de vida ou historieta principal seria arquétipal, ora inserida no grande enredo ora inserida no pequeno enredo que atravessa o drama teatral. De uma maneira ou de outra, viveríamos confortavelmente incrustados no drama da nossa presença. A comédia estraga tudo porque se ri do drama. A poesia invade como ondas a cidade fazendo-lhe tremer os alicerces. A profecia encarna o demónio da sabedoria e a graça o eterno problema do imprevisível e sobretudo da liberdade. O drama da nossa presença permite que haja comédia, poesia e graça.

A conversa com os deuses permite-nos perceber o nosso engano. O engano de não os sermos e o engano de os sermos. Os deuses são demasiados humanos… porque o poder é o antónimo de ser-se humano, pois este possuindo todos não possui nenhum.

A improbabilidade do sonho mais incongruente acontecer coloca em causa o jogo das probabilidades. Porque qualquer pessoa entende que não há sonhos improváveis e que a sua probabilidade de acontecer no real que se nos apresente é uma probabilidade. O acto criativo é por isso aquela probabilidade mais alta porque permite o improvável. Fora do acto criativo há o aprisionamento incondicional na matemática das histórias arquétipais, ou entendidas como tal. O “dispor” das formas que se nos apresentam e a sua permanente reorganização é apenas o lado externo do processo criativo, porque os deuses andam à solta para dentro e para fora de nós. A eternidade não é um cristal, até porque frio, só e  na escuridão do cosmos não serve para mais nada a não ser para existir. E o existencialismo é tão cansativo como a mais pura animalidade. Resume-se a uma entropia que mais tarde ou mais cedo expira.

O pressentimento da melodia, dirá Damásio, intuitivamente, resume a herança de luz que nos salvaguarda, não pelo acto imediato de identificação mas pelo acto de fusão;  identificação tem o seu quê de racional e de intencional, a fusão é irracional e sem intenção. A animalidade superior trata desta questão. O homem caminha para ser irracional e sem intenção, só assim se funde na consciência que falta aos animais. Só assim conhece. O leitor é o criativo por excelência:

“O leitor sabe que está consciente e sente que está em pleno acto de conhecer, porque o subtil relato imagético, que está agora a fluir na corrente dos seus pensamentos, manifesta o conhecimento de que o seu proto-si foi modificado por um objecto que agora mesmo se torna saliente na sua mente. O leitor sabe que existe porque, nesta narrativa, o leitor é o protagonista no acto de conhecer. O leitor eleva-se, transitória mas incessantemente, acima da água do conhecimento, sob a forma de organismo sentido, imparavelmente renovado a cada novo instante, graças a toda e qualquer coisa que afecta a sua máquina sensorial, vinda do exterior ou recordada na memória. O leitor sabe que existe e que está a ver esta página, porque a história da consciência narra um personagem, - o leitor – no acto de ver […] T.S. Elliot pode ter pensado em qualquer coisa de semelhante quando escreveu nos Quatro Quartetos, sobre uma música ouvida “tão profundamente que nem sequer é ouvida” e quando disse “tu és a música enquanto a música dura”. Pelo menos deve ter pensado no momento fugidio em que um conhecimento profundo emerge – uma união ou encarnação, tal como Eliot lhe chamou.” . (Teresa Martins Marques - Clave de sol - Chave de sombra - Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira, Editora Âncora, Lisboa, 2016. pag. 733)
As histórias que externamente contamos foram já escritas no jogo de escondidas, achadas e de novo perdidas no Jardim das Delícias. As histórias que internamente contamos estão todas por contar, situam-se na desordem inaparente da escrita. A mesma desordem que há no movimento fluente da luz. Impossível de agarrar e, no entanto, jorra.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

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