(pintura de Cynthia Guimarães Taveira)
Como as coisas me incomodam. Imagino a Casa da Índia com os seus
afazeres, ela própria um entreposto comercial. Mas as multinacionais
nada têm a ver com isso. São pequenos impérios com propósitos
sinistros que tornam as pessoas autómatos de vendas, de números, de
especulações. Desumanizam e segregam. Há uma espécie de
optimistas em número crescente. São aqueles que dizem que o mundo
está perdido, que não há esperança para ele, mas que, relativamente à sua vida pessoal, têm sempre esperança de que as
coisas vão melhorar. Isto só é possível com uma espécie de corte
entre eles e o mundo. São filhos únicos do mundo. Depois, há os
segregados que pensam que o mundo poderá vir a melhorar, apesar de,
na sua vida, a esperança ser um resíduo perdido como a cauda de um
cometa já de brilho ténue na imensa solidão do cosmos. Esses,
inscrevem-se numa espécie em extinção daquilo a que se pode chamar
uma semi-vocação: os mártires. E nenhuma destas espécies de
optimistas parece sobreviver durante muito tempo. Mais tarde ou mais
cedo, uma espécie converte-se noutra e vice-versa. O optimismo,
sempre a par com o pessimismo de qualquer feitio, tornou-se numa
doença bipolar e o entusiasmo perde-se, como uma festa que esmorece.
Tornar vivas as coisas, independentemente do optimismo e do
pessimismo, parece tarefa quase impossível. O mundo, aglutinado em
duas espécies de massas, as das multinacionais e a dos desvalidos
delas, refugiados em terrenos ideológicos de esquerda que vivem dos
oprimidos (que se deixaram na maioria das vezes oprimir a troco de
conforto e das promessas de felicidade, tanto da publicidade como da
propaganda política), dão cabo do ambiente. Tanto do ambiente que
nos cerca, cada vez mais poluído, como do ambiente propicio à
vitalidade alegre de se estar vivo. O mundo torna-se num campo de
batalha com a desvantagem de estar, não apenas num determinado
terreno, o de guerra, mas em todo o ambiente que nos rodeia. As
relações humanas são cada vez mais bélicas com sentimentalismo
fácil à mistura. E enjoa como uma pastilha elástica velha. E tudo
porque nada, absolutamente nada é feito à escala humana. Nem os
edifícios, nem as pessoas. Babel, à medida que cresce em altura,
baralha a comunicação entre os seres. Parece uma consequência
natural. A grandeza externa do mundo dos negócios conduz à grandeza
externa das massas de segregados e a única linguagem que existe em
comum, quando há falta de capacidade de se comunicar, é a das
armas. A guerra, já nem sequer possui o valor simbólico que um
relativo aumento de consciência lhe proporcionou: a interna, entre a
besta e o homem. A comunicação torna-se em agressão à medida que desaparece. De maneira que vivemos num mundo extremamente agressivo e
bélico, em que as relações são sobretudo de poder, a melhor
expressão da torre de Babel, mesmo que todos falem inglês e
entendam o filme do mundo sem legendas. E daí que a maioria dos
textos acabem por se parecer com diários de tempos de guerra,
pontuados com os seus devidos romances, sempre redentores no seu
sentimentalismo barato, de lágrima fácil ao canto do olho, que vai
redimindo os cronistas, aplaudidos histericamente pelas massas que
ecoam nas redes sociais. A escala humana das acções, dos produtos,
dos projectos humanos é aquilo que nos dá o ambiente propício à
boa lembrança. O ambiente feliz é aquele que é bem recordado, mais
até do que aquele do qual temos consciência enquanto estamos nele.
Tudo aquilo que é desmesuradamente grande ou desmesuradamente
pequeno, torna-se numa má recordação. Daí que ainda recordemos
Babel ou as mesquinhas acções que conduziram à crucificação de
Cristo, com um sabor amargo na boca. A escala humana é mais complexa
do que parece porque vem incluída com o prato predileto da
divindade: o facto de fazermos a ligação entre o céu e a terra.
Nem tão grande como o céu, nem tão pequeno como a terra. Somos
aquele ponto em que as linhas paralelas se tocam e isso só é
possível com uma determinada vibração do coração. Quando é
possível, o coração vibra de felicidade ou de alegria, como lhe
queiram chamar, os anjos rejubilam, os outros tornam-se irmãos e
mais tarde, a recordação é boa. O ambiente é bom, as crónicas de
guerra transformam-se em poesia e é nessa altura que a língua
portuguesa intervém imediatamente porque está no seu ambiente,
sendo que a poesia é muito mais do que a transformação dos
escombros da guerra em ruínas românticas propícias a nostalgias de
adolescentes… a poesia é bastante mais do que isso, é o brilho
externo da ponte entre o céu e a terra, só possível, quando a
escala é humana e o homem adulto readquire a sua primordial
idade, com uma ligeira, mas muito qualitativa diferença da chamada
infância, já não como recordação distante e nostálgica mas como
vivência. Até que isto seja compreendido e alcançado, só temos
ambientes tensos e frustrantes e a terra toda, o planeta todo, que é
um ser vivo, não é indiferente a tais ambientes… e responde com a
mesma linguagem porque é aquilo que escuta e recebe dos
intermediários humanos, oscilantes, na contemporaneidade, entre o
macro e micro optimismo e pessimismo, desproporcionais relativamente
à razão pela qual existimos.