terça-feira, 10 de agosto de 2021

O baile

 


Reservam-nos os passos
Danças de ópios largos?
Enfim, recém-chegados ao salão
Onde arcos, por vezes escassos
Cercam as almas ali encontradas

Se fomos graças e aves estendidas em céu
Sobre as montanhas aventurando a terra
Se fomos gente nómada
Embarcando na alta chama

Não mais vimos ao largo
Aquela barca que Deus levou
E se, no vento, foi em ondas de mar
E se nossos olhos acalmou ao chegar
Longe acabou por ficar do nosso abrigo

Quem  ousará a dança
Neste velho salão onde as tábuas já tangem?
Recostados os velhos em fumo vil
Libertam-se das amarras indo para outras prisões.. 

E nós recém-chegados, vindos das montanhas que tocam as asas das águias
Vindos de navegar na alta Saudade
De quem viu barcas idas sem retorno
Que dança ousamos nesse velho salão
De valsas esculpidas em espelhos
Onde os velhos dormentes ignoram
As vidas outras que trazemos?

Sorte ou destino, tanto fazem
Os nomes dados à nossa chegada
Aos nossos passos tímidos 
Que agora se ouvem nas tábuas 
Esquecidas de si

Outrora pensámos ser águias ou asas
Tanto faz, o nome a verdade não desfaz...
Hoje sabemos serem os passos
O nosso próprio ser 
Tímidos, pisam tábuas tangentes
A outros tempos
Se longe se perto quem o sabe dizer?
No vidros, por entre cortinas pesadas e gastas, abre uma rosa por cada passo dado

Não sonham nem conhecem os velhos
Recostados no ópio bravo da sua memória
Dos agora acessos castiçais
Dos agora iluminados lustres
Da nossa recém-chegada aparição
Da nossa vida outra que trazemos

Ficam na bruma adormecidos
Enquanto o nosso corpo que é só do Tempo
Dança valsas frescas e matinais
Com vestido novos e novas cores
Devolvendo a luz onde não a havia
Em segredo e só porque dormem
Os velhos enfeitiçados nos espelhos distorcidos pela perda da Saudade.

Velhos, tão jovens são afinal
Numa outra postiça máscara de Poe
Recém-nascidos e não chegados
Ao velho salão polido e encerado
Recostados nas cinzas da História
Opacos olhos, sem rugas, nem altura
Não foram na barca que Deus levou
Não dançaram as velhas valsas
De que o espelho guarda a memória
E das rosas não souberam o perfume
Tão velhos e jovens são
Que não sabem da fonte no jardim
E dormem num canto triste
Mais do que o do cisne que persiste.


(Cynthia Guimarães Taveira)


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