domingo, 8 de maio de 2022

O texto pedido


 Lá vai mais um texto a pedido de várias famílias, não muitas, mas várias. Assim sendo, começo por dizer que é um acto desesperadamente facilitista escrever para se ser entendido, isso provém de uma possível carência de quem escreve (afetiva, de reconhecimento ou outra qualquer) e, nos meios mais elevados, provém da ideia de tripeça, ou seja, três sentidos de interpretação ou ainda da moeda de duas faces, uma interpretação mais acessível, outra mais elitista (as parábolas de Jesus, por exemplo) e/ou ainda a ideia de que os "mestres" dizem verdades sublimes, vindas do alto e que terão o seu nível de interpretação consoante o nível de entendimento (Camões associou o entendimento ao Amor, e estava certo - não é "quanto a mim", estava certo ponto final parágrafo - as discussões são para os inúteis). Mas, a verdade (esta palavra terrível - não existe no Oriente, mas existe no meu coração) é que raramente há verdadeiras tripeça, parábolas, mestres que escrevem (normalmente não escrevem uma linha, não precisam...). Essa coisa de se ter de escrever para se ser entendido é o jogo viciado da fama, do proveito e do arroto final que é extremamente desagradável e pode ser evitado, se tudo o que vem antes dele também o for. Até os nossos maiores são incompreensíveis, e raramente confessamos que são incompreensíveis porque parece mal. Entenderemos tudo em Fernando Pessoa? A sério? Ou em Camões? A sério? A língua portuguesa (as outras não sei e duvido que o sejam - terrivelmente etnocêntrico este pensamento, mas sabe tão bem)  é viva e dança connosco. Aquilo que é mais fácil neste mundo é ser compreendido, entendido, lido com admiração (em terra de cegos... Cada vez mais cegos, não sabia que para além da cegueira ainda havia mais cegueira, mas pelos vistos há - nada como Kali-Yuga para essa aprendizagem...), aquilo que é mais difícil e fácil em simultâneo é ser-se raptado pela própria língua portuguesa porque a sua soberania é imensa e vai para além do próprio entendimento do desgraçado que a escreve (quem escreve a sério normalmente é um desgraçado neste país, agraciado pela língua). Escreve-se porque sim. Sem mais, nem menos. O público está noutra dimensão, mesmo quando várias famílias nos pedem as letras, as palavras e os textos. E o mais estranho disto tudo é que nem sempre as famílias são as do costume. São outras: aquelas que vivem nas palavras, são delas e por elas e de maneira que, à semelhança do escaravelho que tem aquela forma única de se gerar a si próprio, muito semelhante com algo que se traduz como "Eu sou", "Eu gero-me" (algo associado à luz, ao nascer do sol e de toda a presença neste cosmos), o mesmo se passa com a língua. E mesmo que haja o pedido dessas famílias incomuns que vivem nesse espectro sideral, nada nos garante que elas mesmas entendam o que é escrito: pedir não é o mesmo que entender e nem sequer se pode associar à fórmula "Pede e ser-te-a concedido", porque o entendimento já está para além do desejo e quando vem, é como um raio de luz. Quantos textos pobres são entendidos, quantos textos ricos são incompreensíveis? Quanto aos primeiros, podemos responder que são muitos, quanto aos segundos, nunca saberemos, ou se  soubermos já estão em nós. Escrever para ser entendido é para quem tem essa missão no mundo, escrever para se ser desentendido é puro acidente e, normalmente, é para quem não tem qualquer missão no mundo, porque o que escreve não é "normal". É um acidente daqueles inexplicáveis. Não foi em vão que Fernando Pessoa escreveu "Aconteceu-me um poema". Estas famílias das letras, das palavras e das frases são poucas e loucas. Uma verdadeira elite, sem a outra face da moeda, o Zé Povinho. Bastam-se a si próprias como o escaravelho. São puro sol. As sombras que se danem... 

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