Já sabes, por esta altura, de que não aprecio muito aniversários de morte. Vista daqui, deste planeta, a morte significa ausência, visto daí, significa, presença. É por isso que, apesar do desagrado, te escrevo, por vezes, nesta data. O mundo tem sido um lugar estranho. Tem sido sempre. Tenho cada vez mais vontade de fugir para outro, pois se não fossem as paisagens, alguma beleza e algumas palavras, não estaria aqui a fazer nada. O teu sonho parece cada vez mais um delírio, mas, bem vistas as coisas, também estiveste presente numa época de ditadores emergentes. Para quê alarmarmo-nos se os homens em democracia escolhem o que querem e o que não querem? A política não me interessa e o sonho não interessa à política. O teu sonho, então esse, parece uma ave ascendente no céu que deixa de se ver. Quando não sonhamos, andamos de sobrolho carregado, e é assim que todos andamos, por mais eventos e festas e festarolas que se organizem.
A réstia de humanidade que alguns conservam parece condenada. E falo apenas em humanidade, porque se falar em gente viva, esses desapareceram por completo. Só aparecem em sonhos, daqueles verdadeiros, quando estamos a dormir e somos deuses criadores. Aí onde os mortos ressuscitam. Época sombria e pesada como o metal, esta. Não há propriamente novidades porque vivemos num ciclo repetitivo até à loucura. Estive a ver e a ouvir uma entrevista de um autor que está na moda hoje, sim, o Yuval Harari, e ele informou-nos de que a Inteligência Artificial poderá ser a ditadora do futuro. Que há de novo nisso? As ditaduras são todas iguais. São fotocópias impressas até ao infinito. Por isso, não há novidades. Só haverá quando o Espírito entrar por aqui adentro. Somos, como humanos, agora, incapazes de novidades. Só as paisagens são novas porque o Sol nunca está igual e nós não temos nada a ver com isso. Apanhamo-las, por acaso, como se as fotografássemos numa viagem de comboio. As pessoas andam com demasiado medo para até serem sensíveis. O medo é dominante. Medo de nós próprios. Aqueles que criam, à moda antiga, ainda com as mãos, puxando um poema do céu, uma pintura da beleza, um suspiro do divino, fazem-no na extrema solidão. É só isso que se passa. Se o fizerem para fora de si, são eliminados. Com um golpe. É por isso que vivemos em ditadura, porque na sociedade das festas, quem subir pela poesia, transforma-se no bobo dela, enquanto dura e as pessoas não regressam ao seu medo. As grandezas são o tamanho dos mísseis ou o número de fãs de uma cantora. A grandeza nunca está no homem. Os homens querem-se pequeninos e obedientes a todos os estímulos. a grandeza é tida, aliás, como falta de humildade... réstias do papaguear dos padres que nunca souberam que os seres grandes nunca sabiam que eram grandes, inspirar uma nuvem inteira e soltá-la em forma de mil pombas era natural para eles... Como tu és grande. Mas se vivesses hoje, também escreverias num sótão esquecido qualquer, como já o fizeste. Como vês, nada mudou. Cai a nostalgia como o crepúsculo. A nostalgia indefinida que não sabemos bem de que é. Ao pé dela, a esperança é enfadonha, porque só temos esperança em que o dia a dia seja melhor. Mas a nostalgia, retira o dia a dia, e fica suspensa num sem tempo que é bom. Nós vimos que era bom. Estamos fartos do tempo. Nunca se sabe muito bem o que fazer com ele e chantageia-nos sempre que pode. Se o Amor, como disse um grande homem que conheci, é esse vigarista (o que me ri com ele!), o tempo é um chantagista. Cobra-nos as moedas todas que dizem que Deus nos deu. É um coletor de impostos divinos. E chateia-nos. É um miserável, sem eira nem beira e sem a grandeza de se recusar a si próprio. O tempo, cansa, os tempos como estão, no plural, ainda cansam mais. Dão aquele sono que se abate sobre o triste sujeito que se limitou a almoçar e cuja digestão o deixa trôpego, quase alcoolizado. Incapaz, até de criar. Espera e espera que a digestão se faça, e afasta os sentimentos de culpa que o tempo lhe cobra por não se encontrar a multiplicar as tais moedas (que nunca ninguém viu) e afasta, por fim, os pensamentos todos como se fossem diabretes para que a tela fique de novo em branco e a possa preencher como um recém-nascido a sorrir pela primeira vez, depois daquele choro convulsivo. Nunca percebemos porque não nascemos já a rir. Ou pelo menos calados, normais, com alguma seriedade. A berraria é que não entendo. Parece que nascer é um drama, quando não é. E morrer também não porque é nascer. O ser humano é mesmo triste. E nós, meu amor, não temos nada a ver com isso. Não temos nada a ver com esta humanidade. O nosso choro é fingido. Só para agradar e receber aplausos: "Choram tão bem!". E o que nos rimos, porque o Amor, esse grande vigarista, está do nosso lado.
Um grande beijinho,
da sempre tua,
Cynthia