quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O que me adormece e o que me acorda


Dei por mim tentar ver uns vídeos com filosofos portugueses a falarem sobre a alma lusa. Não consegui ver até ao fim nenhum deles devido aos excesso de sono que me causaram. E pensei nos tempos em que frequentava colóquios e encontros e pensei "como é que aguentei?". Hoje já não tinha paciência e o simples facto de ter de me deslocar para ouvir palavras repetidas até ao infinito é um pensamento que me causa aflição. Tenho andado a ver uns vídeos que falam muito de drogas que provocam estados alterados de consciência. Tem sido muito interessante, sobretudo porque essas drogas não me atraem nada. Até agora tem sido tudo "ao natural" e suficientemente alucinante para perceber porque é que as palestras filosóficas me dão sono. Não há mistério filosófico como o da nossa própria vida... Encontro-me a dar aulas e o estado do país mede-se nas escolas. Está podre. Não é o facto de haver alguns filósofos que falam para o público que tem alterado a degradação total da sociedade portuguesa. É a absolutamente inútil. O que é útil, mesmo, é chorar por dentro. Não é vir lamentar um passado que não volta mais com lágrimas de filosofia. É chorar mesmo com o coração todo e berrar a sério, bem dentro de nós. É disfarcar-mo-nos de gente comum e andar no submundo em que se tornou a sociedade portuguesa para que todos não dêem pelo nosso choro, pelo  nosso desgosto, pelo nosso desagrado. Nada se tornou mais vão e mais perigoso do que as palavras. Não valem nada e podem matar. Falar é ser bipolar. Chorar é ser uno. No outro dia fui montar a exposição com quadros que já têm quinhentos anos de estadia em minha casa. Perguntou-me a senhora responsável pela exposição o que significam os quadros. Dei por mim a respirar, a sorrir e a não me apetecer explicar nada porque se fosse verdadeiramente a explicar a senhora ficaria a chorar cheia de alma pelo suicídio coletivo do país e do mundo. Pausei. E ainda a sorrir disse-lhe que eram símbolos. Total inaptidão no olhar da senhora. Parecia que lhe tinha falado marcianez. Levou a conversa para a auto-ajuda, não sei porquê. Sei. Por causa da literatura de cordel dos supermercados. Sorri, simpática, a pensar que tinha de me ir embora dali o mais depressa possível. Não queria explicar nada. Não tinha nada a dizer. Quando estamos furiosos com tudo, é melhor não dizer nada. Mais vale chorar e berrar para dentro até que alguém ouça lá em cima. Depois pus-me a caminho por colinas verdejantes e um sol radioso sobre o campo de outono. Aí já não chorei. Amei. Amei aquele verde gritante em contraste com um sol que estava ali só para iluminar os montes e as folhas douradas e os vários verdes ao longo das colinas. Se estivesse bem com o mundo como anda, estava louca, assim, estava sã a ver o verde que não parecia deste mundo. As palavras dos filósofos são dolorosamente vagarosas em comparação com a exaltação que me provocou aquele verde. Não sei explicar o desalento que me invade. Não é nenhuma depressão, nem loucura. Penso que é uma descrença momentânea na humanidade. Uma espécie de certeza de que "não vale a pena" sequer tentar explicar nem pinturas, nem símbolos, nem a alucinação que tem sido a minha vida sem ter experimentado qualquer produto alucinante. Não é uma descrença em mim, é mesmo na humanidade porque anda a enveredar por caminhos que não sei se têm retorno. Eu retorno sempre. A humanidade parece perdida. Penso que há uma espécie de guerra surda onde exércitos de lados opostos se degladiam, nem sei bem porquê. Mas dizem as alquimias que é necessária a decomposição. É, é doloroso ter de assistir a isto. Que pensam as águias lá em cima de tudo isto, enquanto olham cá para baixo? A filosofia não me interessa, mas o passado é delicioso. Perco-me na pré-história como num labirinto mágico. Também poderia ter dito à senhora que as pinturas eram estelas, rituais apanhados a meio, seres maravilhosos doutro universo. Mas o olhar moderno que se deitam às estelas é idiota, como se fossem uma imagem tosca a comparar com os efeitos especiais de um qualquer filme. Ou então, momentaneamente, um olhar inquiridor que logo se esmorece porque já é hora de almoço. O olhar fica cinzento e baço rapidamente, tão diferente das colinas verdes ao sol. Onde estão os vivos? Estive a ver o olhar dos filósofos e não brilhavam. Não tinham vigor na voz. Arrastavam as palavras como chinelos por casa. Dependendo do clima, mostro a minha vitalidade. Mas é cada vez mais difícil. Escondo-me e disfarço-me para fingir que sou deles, que sou eles. Ando nas vielas dos corredores da escola e bebo galões ao lanche. Faço o possível para que não me vejam os olhos e o meu verdadeiro sorriso. Faço o possível para que não saibam da alegria que sinto quando vejo os montes e os pequenos vales onde acima as águias espreitam. Ninguém pode saber nem disso, nem das minhas lágrimas, nem dos meus berros que lanço aos céus. Não o faço por maldade. Faço-o por bondade e bondade também para mim mesma. Se me esconder dou a mim mesma a hipótese de não ter de me explicar e de arrastar as palavras como se fossem chinelos velhos pelos cantos do mundo. Porque sempre que falamos somos esses filósofos que nos fazem dormir. E, a ser qualquer coisa, prefiro ser aquela águia cujos pensamentos não adivinhamos e que paira acima da paisagem, engolindo-a com o olhar. 









 

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