domingo, 10 de dezembro de 2023

O tempo


 Já visitei lugares em que o tempo se estendia lentamente como o espreguiçar de uma chita e outros em que o tempo passava tão depressa como o seu salto. Infinito mistério, o do tempo, sem que se saiba onde começamos e onde acabamos com ele. E uma vez, numa falésia, um pôr do sol que durou mais do que o tempo previsto com o céu multicolor, o mar leitoso, refletindo as cores do céu e parado, sem se mexer, obediente ao momento. 

Isto para dizer que o tempo parece ser uma entidade independente e dependente em simultâneo, como certas pessoas, feitas de tempos, momentos aglomerados uns aos outros, sem ligação entre eles, mas mantendo uma coerência no discurso que têm sobre a sua história que é surpreendente. Parecem ser dependentes do tempo e independentes dele, como os políticos modernos. Nada de Reis David, tocando a lira poética exalando o tempo em sons, nada disso. O som assemelha-se mais ao de um tango, todo partido, em notas que dão reviravoltas súbitas, ora rindo, ora sofrendo, nunca poetando ... são sentimentos puros que caem lágrima a lágrima. São lágrimas tão visíveis, sejam de furor, sejam de amor. A poesia é para reis. 

Quereis as coisas bem estruturadas quando o tempo é louco? E de loucos!



Tecnicamente impossível

 




É certo que a criança tinha algum grau de Asperger, no entanto, não pude evitar rir quando, ao contar a lenda do galo de Barcelos, se sai com esta:

- E o juíz viu que era tecnicamente impossível o galo cantar.

E disse-lhe:

- Essa do tecnicamente impossível, tem graça.

Ligeiramente indignado ripostou;

- É tecnicamente impossível o galo cantar.

Ainda tive a tentação de lhe dizer que os milagres são falhas técnicas e acertos fora das técnicas, mas penso que não iria compreender. 

Estamos num mundo tecnologicamente avançado, ideal para o aparecimento de cada vez mais casos de autismo e de Asperger, como se o mundo, tal como está, chamasse as almas que com ele se assemelham. Não me admirava nada que assim fosse. Almas especializadas e onde a capacidade de simbolizar fosse encaixada numa falha técnica. Aquilo que não tem sentido, só pode ser uma falha... até o próprio "no sense" é um erro, algo que não corre bem no discurso que é uma sucessão de causas e de efeitos. 

Mas já nada me admira, desde que vi um ser que se dizia espiritual a ficar branco como a cal quando alguém acendeu uma fogueira sem que houvesse fogo de contacto. No fundo, não era espiritual. Porque também há os Asperger dos mundos espirituais, gente que, bem lá no fundo, se acha superior e que caminha sobre as brasas em que não acreditam. 

Também conheço um que se propunha a confeccionar ídolos de papel para vender e, qual não é o meu espanto, quando solta esta:

- Há quem acredite nestas coisas.

Subrepticiamente estava lá o "tecnicamente impossível". 

Foi com isto que tive de lidar por uns anos. Depois cansei-me de conviver com um leque tão baixo de possibilidades.  Apesar de tudo, uma criança com Asperger é mais genuína. 

Depois há os científicos que dizem que tudo no Universo é energia e que se as energias forem canalizadas em grande número, farão com que a imagem da Virgem chore lágrimas de sangue. É tecnicamente possível e, assim, e só assim, os milagres são aceites e até podem dar jeito. 

Chamo a isto o mistério da alma humana. Até que ponto é que não estamos rodeados de Asperger de várias espécies, desde os mais simples, como crianças, até aos mais eruditos que, não sendo crianças, são muito espertos e dizem roçar a possibilidade de desvendar o Mistério, tão próximos se sentem da verdade. Mas da verdade que é sempre tecnicamente possível, nunca da mentira ou do erro que é tecnicamente impossível. Normalmente chamam a isto a vitória da Luz sobre as Trevas, mas não serão apenas Asperger meio iluminados no sentido em que alcançaram a parte de fora do símbolo (a única que conseguem alcançar) deixando no ar uma vertigem de autoconvencimento invencível como o Gato da Botas que, bem vistas as coisas, era apenas esperto, expedito e com talento para se mover neste mundo, (nunca no outro) como o príncipe dele e todos os belos príncipes que perseguem e queimam na fogueira todos aqueles que não brilham com a luz que bem entendem ser a verdadeira. 

Também ouvi da boca de um que mal se começava a evoluir espiritualmente, naturalmente, a riqueza material aparecia. Esse era Cristão e devia imaginar um Cristo todo paramentado a fios de ouro. Olhei-o de boca aberta, e ainda tenho a boca aberta, a olhar para ele. Ele é o palácio e eu a burra. Ele era mais "apalaçado" do que o túmulo de Cristo e respectiva ressurreição.

Estes seres normalmente gostam de bruxas cegas porque dizem que prevêem o futuro, ou de bruxas simplesmente doidas que dizem umas coisas que depois podem ser aproveitadas. São os gatos das botas, versão "sanguessugas" e extraordinariamente evoluídos espiritualmente, assim se pensam. São os que "dominam" tudo à sua volta, os que sabem de que é que a casa gasta, de que é que este mundo gasta.

Houve aí uma fase em que chorei lágrimas sem fim, elas vinham de dentro, jorravam como uma fonte que nunca se acabava, sem que na altura entendesse o que se passava ou o porquê de tantas lágrimas, mas a resposta era bem simples: desilusão. Mas foi essa desilusão com esses seres que me fez ver o quão distante estava de tudo aquilo. Nunca foi uma desilusão com a minha própria ilusão, foi uma desilusão com a ilusão que criavam e foi por isso que se deu um corte ontológico, visceral. 

Hoje percebo que têm Asperger de adultos, que estão bem nesta época, que a merecem, que vivem nela e a saboreiam até ao tutano. Daí que não tenham criatividade alguma. São tecnicamente possíveis, juntam elementos como a Inteligência Artificial. Nunca erram. Nem levam pancada (como afirmou Pessoa) porque nunca iriam bater neles próprios, o máximo que conseguem fazer é a penitência, que cheira a catequese, a teias de aranha, a padres com taras e ao perdão imediato depois do terço. Um perdão tecnicamente possível. Instantâneo, até. 

Um dos elementos que gostam muito de juntar são as chamadas trevas que cada um carrega dentro de si. Adoram dizer que passaram pelas trevas, como heróis, e atiram à cara dos outros a urgência de o fazer como se, por um qualquer mistério insondável, soubessem quais são as trevas de cada um, pois pensado saber quais as deles, pensam saber as de todos. E movem-se bem nessas jogadas, quer sejam de bastidores ou directas. E mesmo que pisem o risco e espezinhem o Espírito Santo nessa corrida para a glória, lá vem a Santa Penitência que é como a água e lava tudo... e aparecem lavadinhos e penteadinhos como acólitos. 

Mas há tanto Mistério na Vida, tanto que penso ser um grão de areia neste cosmos imenso, a primeira bolacha do pacote que sabe sempre melhor do que as outras. Tão vivo é o Mistério que é sempre vivificado e tão longe está destas acrobacias de circo. Tão longe me sinto, como uma ilha. Sou só a distância que me separa do Mistério. 



sábado, 9 de dezembro de 2023

Mas também há...


Caiu-lhe a ficha, maionese, azeiteiro, a última bolacha do pacote e tudo mais um par de botas. Os portugueses são estranhos quando adoptam dizeres e estes estão na moda. Na verdade, os portugueses são estranhos e é por isso que pensamos neles. Dir-me-ão que qualquer povo é estranho. Evidentemente que sim, a única diferença é que os portugueses são estranhos para alguns portugueses que se dão ao trabalho de pensarem nos portugueses. E esses portugueses que se dão ao trabalho de pensar nos portugueses, ainda são mais estranhos e ainda conseguimos o prodígio de ter portugueses que pensam sobre os portugueses que pensam sobre os portugueses, estes últimos são estranhíssimos. Dir-me-ão que estou a exagerar. Não não estou. Há portugueses que pensam sobre os portugueses que pensam sobre os portugueses. É assim que pode nascer uma recenção crítica de uma obra de António Telmo, de António Quadros ou de Dalila Pereira da Costa. Penso (também não conheço tudo) que ainda não se atreveram a pensar sobre os portugueses que pensaram sobre os portugueses que pensaram os portugueses, mas esperem, estou enganada. Quando um português que pensou sobre os portugueses que pensaram sobre os portugueses lança um livro, inevitavelmente podem ser feitas críticas, positivas ou negativas, num jornal por exemplo e assim temos os estranhos portugueses elevados ao cubo, isto se excluirmos o estranho português normal que diz coisas como maionese, azeiteiro, a última bolacha do pacote e ainda tudo mais um par de botas, só porque está na moda. Só agora me caiu a ficha. Plim! Pim! 

 


quinta-feira, 30 de novembro de 2023

No dia em que voaste


Meu querido Fernando:

Neste dia de aniversário do teu vôo, escrevo-te a partir de um Portugal em ruínas. A gulodice de estrangeiros abastados, de estrangeiros desamparados e de muitos portugueses nascidos em berço de inveja e de cobiça estão a dar cabo do país. Isto sem contar com a classe política que não é classe nenhuma. Já não há classes sociais com base na função, há classe monetárias. Portugal desaparece a olhos vistos, engolido por seres que não o merecem. Nada fica de pé, nem as gentes, nem a natureza, nem a cultura, nem a memória, nem os símbolos e isto porque a desumanidade diz que as gentes não interessam, a cobiça diz que a natureza é dispensável, a ignorância abaldroa a cultura, o medo afasta a memória e o ódio vence o símbolo. É disto que Portugal é feito hoje, uma mescla inabalável e cujo estrangeiros pés descalços ora em cultura ora em educação, ajudam a calcar ainda mais todos estes defeitos. Até há alguns anos estávamos entregues aos bichos nacionais, agora juntaram-se-lhes os internacionais. E digo bichos porque o mundo está e é cada vez mais uma selva eufórica que mete medo e não cheira bem. Nada disto é xenofobia, meu querido Fernando, porque só há xenofobia quando culpamos os estrangeiros por tudo, não, não é isso, a culpa é de dois terços dos portugueses e de um terço dos estrangeiros que se deixaram encantar pelo pseudo-paraíso. Ora porque são ricos chateados de morte em busca da humanidade (aqui só a encontram pontualmente numa certa doçura que ainda temos), ou são pobres, desesperados de morte que encontram aqui a promessa de uma vida melhor (raramente encontram uma grande vida). Mas pior do que eles, somos nós que já nada esperamos de nós mesmos. Os portugueses estão adormecidos, para não dizer mesmo mortos para o sonho que os devia animar. E estão-no por vontade própria. Parecem estar possuídos por formas puras de autodestruição. Ainda há quem diga que a culpa é das ideologias sem perceber que a luta ideológica é a base da democracia que nos mina. Quando a democracia vive e subiste dessas guerras, a essência de Portugal que é o comunitarismo (jamais comunismo!) a par com o individualismo (como sinónimo de seres despertos para si e para os outros), essa essência, dizia, afasta-se subtilmente da festa, dando passos para trás e saindo pela porta da criadagem para não dar nas vistas. É isto que se passa, meu amor. É deveras triste assistir a tudo isto sem poder intervir, nem interferir. Se as vozes de burro não chegam ao céu, também a dos anjos não chegam a uma terra povoada por burros. E a burrice é quem mais ordena (já não há sequer povo). Quando os portugueses vão votar, vão a uma pastelaria do século XIX. Lá dentro não há ninguém sentado nas mesas, apenas fantasmas. E na montra têm à escolha bolos, alguns petrificados, outros podres, outros ainda irreconhecíveis como bolos. E lá apontam o dedo cadavérico para a sua escolha. Os fantasmas ainda tentam lançar farpas para os avisar, mas o pior cego é aquele que não quer ver. 

Desculpa meu querido. Sabes que de vez em quando és citado pelos políticos? Sempre que o fazem, sinto uma náusea. Se eles te tivessem lido, veriam que não são dignos de te citar, nem sequer as notas de rodapé que escreveste à margem do rio das tuas palavras. 

Vivo envergonhada com o meu país, mas ainda pior, revoltada. Só Deus sabe e ouve o quanto.  As massas podres avançam a passos largos. É um exército desalmado, louco e invencível. Só o meu grito os vence. Aquele que Deus e tu ouvem. 

Uma grande beijo,

Da sempre tua,

Cynthia 

terça-feira, 14 de novembro de 2023

O meu reino não é deste mundo...


 Quanto maior o custo de vida e menores os recursos financeiros para lhe fazer face, maior a corrupção. Desta feita, temos a nossa "democracia" entregue aos abutres e são eles os corruptos, os potenciais corruptos e os futuros corruptos em todos os partidos, isso é certo.
Temos o Bloco de Esquerda que enche a boca com a palavra democracia, mas que em termos ideológicos é mais radical que o Partido Comunista e nenhum deles está livre da corrupção a começar pela corrupção das ideias: vendem a alma ao diabo e daí a facilidade com que ambos se refiram a si próprios como democratas quando, não são. Se chegassem ao poder, sem ser como bengalas de outros partidos, acabavam com a democracia num piscar de olhos. Depois temos o centrão, rotundo, gordo e anafado, como o S que compõe o seu nome, a saber, PS e PSD, onde fervilham velhas raposas dos negócios e jovens vestidos de escuro com camisa branca e, claro está, mochila às costas para passearem o computador, todos eles, se não corruptos, circulam, porém, na linha ténue que separa o serviço público (" deixa-me rir... Esta história não é tua" - obrigada, Jorge Palma) e o abismo distópico da corrupção, de vez em quando caem alguns lá dentro. Temos uma Iniciativa Liberal , cujo mote é "Homem que é homem, é empresário", ou outro "Cresce, homem! Faz-te a ti mesmo". Ora sabendo nós do papel das empresas na corrupção, não advêm daí grandes esperanças. E temos também, a grande novidade de raposas oportunistas acompanhadas dos seus jovens que não o são menos aos quais é dado o ridículo nome de Chega. Outros que tais cujo o mote é "junta-te a nós, irritado de morte, e baila connosco. Dá uma oportunidade aos oportunistas" e os idiotas, alimentados a futebol, furor e Facebook (estes são os verdadeiros "efes"), são arrastados na onda de um pénalti do oponente que "foi ao lado", de maneira que o meu reino não é deste mundo. Só sei que está tudo mais caro e que quanto mais caro está, mais estes monstros  neste caso, de seis cabeças, sete se pensarmos no próximo presidente, cresce e dá voltas sobre si...

 "Aqui ao leme sou mais do que eu..." 

Fernando Pessoa, continuo a amar-te. Sem dúvida. As tuas palavras são o sal da vida. 

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Aos agora mui interessados

 


Aos que agora parecem muito interessados no que ando a escrever: Kali Yuga é aquilo que se passa. Ciclo final. Já digo isto há muito tempo. 

domingo, 1 de outubro de 2023

Vera Justiça



Mais palavras que nos embalem, neste doce fim de tarde e tornar tudo ainda mais sereno. As saudades que tenho daquele que falava francês e tocava nas flores e com ele doutro tempo e doutros tempos. A nostalgia é uma malvada. O mundo não muda porque não quer, bem lá no íntimo adora o desespero das gentes, a injustiça das gentes, a inglória trajactória por onde avança. O mundo por onde vai, não quer ser agradável, não quer ser sereno, vai por onde quer e como quer. É sua escolha última sem nunca saber se é a definitiva. Ouço música soul, daquela calma e tudo parece estar bem. Suavemente bem. É mais um momento entre tantos outros. E nado, nado à tona da água. Perguntaram-me se me sentia exilada. Desde que nasci, respondi, agora ainda mais neste "à tona da água", sem ceder um milímetro à amargura ácida e sem saber se é definitiva esta resiliência. Só os loucos não se sentem magoados nesta solitária época. Só os loucos estão felizes. A normalidade já não sorri. Anda séria e sisuda por dentro a olhar para o coração e a tentar que sangre menos. Tentar que o coração não sangre demais é estar à tona da água, a inspirar sofregamente cada pôr do sol, cada música soul que canta a suavidade do mundo quando este decide ser suave. Agora, neste preciso momento, não acreditamos em políticas nem em políticos, mas a amargura não desce, porque acreditamos em nós, na nossa falta de demência, na nossa total falta de ambição política. Ela é forte, é o nosso centro que nos ergue acima das eleições e das misérias distribuídas pelas bancadas do circo. Os ambiciosos são toscos face a esta vontade de demanda interna que nos faz flectir as pernas e saltar para fora de órbita quando queremos. E ver tudo a partir de cima, qual extraterreste daqueles que estão hoje nos desfiles de moda e falar uma língua que o mundo não reconhece quando não está calmo e suave. Quando pratico a justiça, pratico-a sem pensar no amanhã. Nunca há amanhã. Amanhã, o planeta está morto e vazio de seres. A prática da justiça não é um acto de fé, de esperança e ainda menos de caridade, é simplesmente respirar, à tona da água, esbracejando na eterna dúvida se nos afogamos ou não. É apenas o ar que se inspira, sem razão, sem pensamento, sem futuro porque toda a razão e todo o pensamento só agem para o futuro. A justiça está fora do tempo, é uma inspiração de uma matéria indefinida sem ser um salto de fé. E é disso que o mundo tem medo. Prefere, na sua acção, um futuro catastrófico à ausência de futuro. Prefere reagir a agir. Prefere a escravidão da reaçção à liberdade. Agrilhoou-se porque quis e não tenho pena, a pena é para quem pensa no futuro do mundo. Este coração sabe que sangra, apenas, e no futuro, não se vê, como a bruxa que não conseguiu ler as linhas das minhas mãos, afastando-as dizendo que não percebia nada. Não me levou um cêntimo. O que me ri quando saí da tenda. Nunca houve futuro em mim como não houve para o mundo, tal como está. Se a bruxa estivesse mais atenta, tinha visto na palma da minha mão esta música suave, que é só o sabor do tempo exacto e não apenas estas mãos de extraterrestre elegíveis. Vivo entre o mundo quando está suave e o não mundo. Este como está serve só para nadar e manter os sentimentos à tona da água para evitar que o coração sangre demais. Os políticos são demasiado reactivos para serem justos. A nossa suposta elite é miserável. De todos os quadrantes. E é um profundo acto de justiça afirmar isto, aqui donde vos vejo, por entre as estrelas.