segunda-feira, 29 de junho de 2015

Inteligência aprumada


 
Não te falo da sabedoria que a ti ouvi,
porque dela já sabes e onde fica:
naqueles espaços em vazio,
entre um gesto e um sentimento,
entre a verdade e a mentira,
entre o bem e o mal,
e onde, a justiça aparece
como a mais isenta e flamejante
das donzelas das cortes reais,
resguardando sempre,
todo o tamanho do mundo que me deste.
Sabedoria invisível e guardada
por entre o espaço dos lábios fechados,
bem no meio do silêncio
e onde o sopro ocorre,
visível apenas no espírito refinado
de uma inteligencia aprumada
por rosas colhidas depois das noites frágeis,
imensamente sapientes,
dessa manhã que há no jardim reservado.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 25 de junho de 2015

A elegância

 
“A prospecção e aceitação do sobrenatural, não será uma fuga perante o real ou um corte com o quotidiano.
Mas, antes , o contrário: será ela a forma mais forte e perfeita de fidelidade ao Real, porque da sua total e plena inclusão e aceitação na nossa existência. (...)
O problema do real será resolvido por um movimento que surgirá como sua paradoxal resolução – porque ele só se desvendará pela visão e aceitação do seu avesso”.
 
Dalila Pereira da Costa, “A Nova Atlântida”, pág. 326, Lello e Irmão – Editores, Porto, 1977
 
Olhava atentamente para essa formas de mexilhão que tendia a fazer nos vestidos, nas rendas que pintava e lembrara-se do que tinha dito antes, momentos antes:
O ovo é a forma arredondada do losango , ambos necessitam de dois pontos centrais para serem desenhados... e sorria, na volta dos próprios pensamentos, sabendo que o selo, o losango era tantas vezes firmado e afirmado pela linguagem alquímica como sendo o segredo e sorria, lembrando-se das aulas que havia tido com Freud em pano de fundo, da análise corporal e sexual dada a esses losangos, como desenhos repetidos pelos povos “primitivos” dum mundo ainda de um jeito  Neolítico e de como tal tipo de interpretação freudiana havia sido presenteada com a fórmula: o losango  é a vulva, com pinta no centro foi fertilizada... e esses símbolos e interpretações giravam na sua cabeça e, do nada e de tudo, se lembrou de como o povo diz: “quem se lixa é o mexilhão” e, na sua cabeça, aparecia agora a imagem desse mexilhão a negro desgastado primeiro, como um marisco associado ao povo que o recolhia na baixa das marés, como dádiva do mar, sem preço ou mercado, oferecido ao povo e a ele assimilado. E esse negro mexilhão, aparecia agora sob a forma híbrida que fica entre a oval e o losango, e essa palavra colada a ele, ganhava agora as vestes, não de um negro desgastado, mas elegante, como um vestido de noite  brilhante com a água num qualquer serão de príncipes e princesas, e esses pequenos laivos de branco em relevo que o cobriam, eram os cetins, dos mais modernos padrões, de uma fineza real, unindo o clássico ao moderno e, com esse mexilhão, lixado mas transmutado, pode ver a realeza do próprio povo, escondida num mexilhão pobre, apanhado numa baixa maré e, com ele, todos os outros pobres portugueses, de uma antiguidade expressa nas rugas e nas mãos com calos, e nos ofícios, e nas horas de labor, e nos silêncios dele, e nas frases que rematavam dúvidas ao fim de anos de trabalho. E viu um povo rei, como quem vê o paradoxo de que fala acima Dalila Pereira da Costa, e não mais passou a suportar o escárnio de quem, perto do povo com suas vestes pobres de quem se esquece de si, só o sabe desprezar como classe inferior, sem Mercedes ou vivendas e novos-riquismos plasmados de um estrangeiro que não é nosso. E olhando tal desprezo, tal pouca fineza d’alma, saber, como quem sabe um filho ou irmão, que a realeza se esconde, nesse mexilhão do mar, criação dele dada aos pobres, criação da mãe simples que apenas está... como vestido legitimo, de um requinte assombroso, afastando o nevoeiro, brilhando numa manhã, acendido por lágrimas e fogo, ao nosso lado, real e biface, como nós portugueses sabemos ser.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 22 de junho de 2015

cor de rosa


Se te visse, cor de rosa,
desbravada como se fosses uma floresta,
via-te em piares das aves do dia e da noite,
partindo espelhos em desafio,
aos azares, às sortes e aos destinos...
Ritmo de saltos e cascos,
égua em nervos destinada,
se te visse selvagem trepando, escalando,
as absolutas  nuvens que não imaginaste,
a as tornaste vivas biformes, triformes,
quadriformes e assim, além...
Se te visse cheia de ritmo
Impossível até para os animais
E para os enigmas...
Na força bruta que enche a sofisticação
que há no traço dos teus lábios.
 
(Se encarnas o Absoluto,
não há guerra que te entenda...)

 


(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Quatro espelhos...


Quem ousa tomar
Portugal no seu inteiro corpo?
Quem urge pagar
em dores, tormentas, naufrágios
esse desacordo que há
entre o ser e o para ser?
E em quatro espelhos adivinhar
os gestos duplos e amplos
do que é e do que parece ser
e dos outros, iguais e maiores
de um país a acontecer?

(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 2 de junho de 2015

Astro

 
 
Nós, seres,
no caminho de pedra,
corpo e sombra,
linha rarefeita,
deixando por nos explicar
porque negra há-de ser a sombra,
e não outra cor nos tome,
e nos fale da outra sombra,
oculta e acima do sol,
onde transparência a guarda,
na outra sombra,
só assim chamada,
porque escondida, além do astro.
Outro nome que não sombra,
eventualmente terá,
esse outro de nós,
que dá brilho ao sol,
muito para além,
do que aquele que o sol nos dá.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 31 de maio de 2015

Não reparaste, ainda?




Não reparaste, ainda? Estão por toda a parte... em mesas, vestindo-as, mas também vestindo humores indiscretos, em sombras de fotografias,  nas festas, nas cidades, nas fogueiras de vaidades. E na diplomacia, serenas, em recantos vibrando em cores, junto à morte e às casas tristes, junto aos olhos nas varandas, livres e soltas e abandonadas, presas e disciplinadas, por entre o público, sem nada que ser e longe, tão longe se as olhamos, e tão perto que nem as vemos e fazem falta, se delas nos esquecemos, sobretudo na alma, em centelhas, deslizando por nós, refazem o eterno elo que vamos sendo, lembrando as estrelas que são, na outra margem... segredos mil de quem as ousa, mais que imagem que em nós ruiu são um vasto clã  da eterna asa... flores, segredos escondem, rescritas na história de um corpo tendente à glória.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Fio ténue


“Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
E a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar."
 
  Fernando Pessoa, in Mensagem
 
Tornavas tudo íntimo porque tudo tendia a tomar mais do que duas dimensões e, ao fazê-lo, nada ficava inocente. Nem podia sê-lo. Descontextualizavas as palavras e os gestos e colocava-las num qualquer outro pensamento, ideia ou tempo. Assim, de repente, raptavas aqueles que de ti se aproximavam para um outro lugar, para uma outra consciência das coisas, para a dimensão mais profunda que delas te conseguias aproximar. Sabias que, em último grau, tudo era afinal revelação, mas sabias também, que se cada gesto era uma viagem, se cada pensamento um passo, se cada ideia um voo, havia uma espécie de ilha que ia contigo, onde quer que fosses. Ilha única, impartilhável pela impossibilidade de quem quer que fosse poder fazer a mesma viagem até lá. Sabias da impossibilidade de duas pessoas fazerem a mesma viagem, por terem tido vidas diferentes, serem outras, e terem até outro corpo que não o teu. Mas no fundo de ti, vivia a dúvida, aquela isenta de vontade ou desejo, e que se prendia com a certeza de memórias sem tempo, coladas a ti como um tempo presente. Era esse o teu limite da dor, o exacto instante em que acabava a ilha e começava o mar. E nesse pequeníssimo espaço de areia e tempo cabia o infinito abismal de separação. Essas ilhas encobertas que se dispunham no mar, atravessando-o eram, sem que o soubessem, a sagração do próprio tempo, tão raras quando vistas, tão próximas quando encontradas, tão ímpares na realidade que propunham, mas tão ilhas que eram e  inalcançáveis, por isso.  Dessas ilhas apenas o vento as sabia quando levava as folhas como poemas, as sementes como esperanças, as poeiras como estrelas... e nada mais era senão isso, e todas as obras dos artistas não eram senão isso... e todos os descontextos das palavras e gestos que proporcionavas a ti e aos outros, nada mais eram senão isso... e os olhos e as almas ficavam sempre por acontecer, enfaixados numa falsa esperança porque a realidade nunca se submetia à vontade do sonho, calando-se este, na viagem que era só promessa... e tudo ganhava a utilidade que o próprio sonho negava: as folhas, as sementes, as poeiras caiam, geravam numa utilidade descarnada, quase, donde tinham vindo. As brumas nunca enalteceram as ilhas e os sonhos nunca foram de ninguém, os deuses entregavam-se em vão, porque não escutaste e, com a capa da esperança se afastavam, deixando-te com um sorriso vago de quem caminha nas esferas e volta a estender a mão, em contra vontade, a quem passa, numa eterna espera.
 
E há, no entanto, esse fio ténue aproximando-se, e segreda tanto a voz como a escuta.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)