"O meu sonho de felicidade seria não haver necessidade
de poesia como género literário por ela se achar já realizada na vida."
Natália Correia
Natália Correia
Há, nos portugueses de hoje, um sentimento vivo, igual, sem
tirar nem pôr, ao sofrimento que atravessa alguma poesia de Mário de Sá
Carneiro. Frases como: “Falta-me egoísmo pra ascender ao céu, /Falta-me unção
pra me afundar no lôdo.”; “Rios que perdi sem os levar ao mar...”; “Castelos
desmantelados, /Leões alados sem juba... “; “Tombei... // E fico só esmagado sobre mim!... “; “Há
exéquias de herois na minha dôr feudal - /E os meus remorsos são terraços sobre
o Mar... “, são elas a melodia da incompletude, de uma certa perdição não
merecida provinda de um sonho não sonhado mas, ainda assim, traído...
Como se, na História atravessada, desde um D. Sebastião, que
sendo parte luz, é também parte sombra, como referência temporal de um auge
oriental, no qual, o ponto mais alto é, em simultâneo, o início da queda
ficando essa aura incerta marcando o horizonte do olhar à medida que, ora se
caminha, ora se rasteja, numa espécie de limbo com seus nevoeiros e luz difusa,
a mesma cujas tonalidades constituem o ocaso do dia e o princípio da manhã...
Esse sentimento de incompletude, mais do que a gerar advém
das sucessivas tentativas de acompanhar o tempo do mundo, o tempo dos outros.
Havendo conquistado o espaço, num Império mais profundo que aquele que é dado a
ver nos livros de História, o tempo, esse, havia-nos escapado das mãos enquanto
nos enlaçávamos na embriaguez das especiarias, da prata, do ouro, do corpo
breve mas seguro da negra que passava em tom desnudo... e, nesse enlace com o
mundo, na frequência dele como casa e esta o todo... lá fora, o tempo de cronos
passava, implacável, insubmisso e infiel a tudo. Não acompanhámos o tempo porque
estávamos entretidos no espaço, longe das revoluções, das máquinas a vapor, das
vãs ambições das potências do mundo...
E, por entre monarquias decadentes, repúblicas ausentes, ditaduras abertas, no último século de desventura... resta a sensação de uma incompletude, como um peso que se traduz e que, esse sim, alimentamos e fazemos perdurar, na injustiça vigente que negamos por nos julgarmos incapazes tanto de a merecer como de a ter. Como se houvesse uma autopunição mais forte do que a própria justiça... e essa punição alimentasse essa mesma ausência de justiça. Da mesma forma que o temperamento português, foi lido, no desenrolo da abertura ao mundo como tendo momentos de euforia e de disforia é verdade que um outro, desde D. Sebastião, foi nascendo e crescendo, por vezes até ao ponto do intolerável porque bloqueador e transgressor da identidade: o sentimento de uma punição auto-infligida e merecida por termos desviado os olhos do tempo na busca de uma eternidade num espaço... um certo desencanto tido logo à partida de cada acto... por não termos acompanhado os tempos. A forma/fórmula esquizofrénica como tentamos resolver esta questão é visível mas apenas como remendo na resposta que vamos dando: ou um fechamento numa tradição da qual nos vamos esquecendo de geração em geração, muitas vezes acompanhada pela falsa-memória do que ela é ou, por outro lado, uma colagem imediata e sem continuidade ao tempo dos outros em actos estrangeirados extremistas... tudo isto resulta num sentido de injustiça permanente que requer um inimigo para que se faça justiça... então... produzimos os nossos próprios inimigos com a facilidade de quem faz um filho e não por desejo, ou por gosto, nem sequer necessidade absoluta (essa seria a nossa morte...), mas porque criámos a necessidade em nós de uma autopunição como forma de gerar a injustiça e de a aplicar em simultâneo... isto é uma doença nacional e, se por um lado vai cumprindo o ditado “mulher doente, dura para sempre”, ou seja, se este viver na margem do tempo dos outros é, em rigor, aquilo que por vezes nos sustenta, por outro, é aquilo que nos coloca sempre à beira de um suicídio colectivo... tentação que recai agora, até, sobre a língua portuguesa, a grande iniciadora a ocidente, centelha do Verbo Divino... sendo que a desvinculação do pensamento constituí, neste momento, o perigo maior pois este aparece colado à falsa noção de sabedoria que é a acumulação de informação (e muita dela enganadora...) e dando a ilusão de, finalmente, “acompanharmos” o tempo dos outros quando, na verdade, essa acumulação não constitui nem faz permanecer o que é a nossa identidade... é nesse sentido que os poetas portugueses têm sido o garante, como rochas firmes ou anjos caídos, apesar de tudo e contra todos, de um certo permanecer, fundamental, da ideia de que em Portugal se pode nascer, não por missão ou castigo, mas em circunstâncias situadas numa espécie de remoinho da própria consciência e que, com a consciência desse próprio remoinho, há como que uma condução de uma demonstração, pelo seu papel de transmutadores do sentimento em palavras-Espírito, à noção exacta de que missão e castigo, são uma e a mesma coisa, cumprindo uma espécie de votos paradoxais que se erguem através do tempo, ao longo de gerações, como continuadores da nossa identidade.
Em simultâneo, neste quase-mundo que Portugal é, há, neste momento único que é o desta ilusão de finalmente estarmos a acompanhar o tempo dos outros, que nós nos tornámos, enfim, nele e “somos” como eles, sendo que, o que daí retiramos, e por esse ser o verdadeiro estado do mundo actual, sejam fragmentos, divisões, conflitos, guerras, fracturas expostas pela globalização... se o pensamento não nos servir para mais nada ao menos que sirva para que uma parcela da nossa identidade se mantenha viva, no meio dos escombros de todas as guerras, que no intimo mais intimo deste povo de navegadores e poetas, nunca pediu e tão facilmente é capaz, (e opta) de trocar uma arma por uma flor... ou pela palavra, liberdade, quando é mesmo preciso e está de acordo com o ritmo do universo para que da outra ponta da estrela poética que somos se possam ouvir as palavras de Natália Correia:
"Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes, .
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes, .
Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além, .
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen."
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes, .
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes, .
Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além, .
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen."
(Cynthia Guimarães Taveira)
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(Cynthia Guimarães Taveira)