domingo, 23 de novembro de 2014

O que dizem os poetas



"O meu sonho de felicidade seria não haver necessidade de poesia como género literário por ela se achar já realizada na vida."
Natália Correia


Há, nos portugueses de hoje, um sentimento vivo, igual, sem tirar nem pôr, ao sofrimento que atravessa alguma poesia de Mário de Sá Carneiro. Frases como: “Falta-me egoísmo pra ascender ao céu, /Falta-me unção pra me afundar no lôdo.”; “Rios que perdi sem os levar ao mar...”; “Castelos desmantelados, /Leões alados sem juba... “; “Tombei... //  E fico só esmagado sobre mim!... “; “Há exéquias de herois na minha dôr feudal - /E os meus remorsos são terraços sobre o Mar... “, são elas a melodia da incompletude, de uma certa perdição não merecida provinda de um sonho não sonhado mas, ainda assim, traído...

Como se, na História atravessada, desde um D. Sebastião, que sendo parte luz, é também parte sombra, como referência temporal de um auge oriental, no qual, o ponto mais alto é, em simultâneo, o início da queda ficando essa aura incerta marcando o horizonte do olhar à medida que, ora se caminha, ora se rasteja, numa espécie de limbo com seus nevoeiros e luz difusa, a mesma cujas tonalidades constituem o ocaso do dia e o princípio da manhã...

Esse sentimento de incompletude, mais do que a gerar advém das sucessivas tentativas de acompanhar o tempo do mundo, o tempo dos outros. Havendo conquistado o espaço, num Império mais profundo que aquele que é dado a ver nos livros de História, o tempo, esse, havia-nos escapado das mãos enquanto nos enlaçávamos na embriaguez das especiarias, da prata, do ouro, do corpo breve mas seguro da negra que passava em tom desnudo... e, nesse enlace com o mundo, na frequência dele como casa e esta o todo... lá fora, o tempo de cronos passava, implacável, insubmisso e infiel a tudo. Não acompanhámos o tempo porque estávamos entretidos no espaço, longe das revoluções, das máquinas a vapor, das vãs ambições das potências do mundo...


E, por entre monarquias decadentes, repúblicas ausentes, ditaduras abertas, no último século de desventura... resta a sensação de uma incompletude, como um peso que se traduz e que, esse sim, alimentamos e fazemos perdurar, na injustiça vigente que negamos por nos julgarmos incapazes tanto de a merecer como de a ter. Como se houvesse uma autopunição mais forte do que a própria justiça... e essa punição alimentasse essa mesma ausência de justiça. Da mesma forma  que o temperamento português, foi lido, no desenrolo da abertura ao mundo como tendo momentos de euforia e de disforia é verdade que um outro, desde D. Sebastião, foi nascendo e crescendo, por vezes até ao ponto do intolerável porque bloqueador e transgressor da identidade: o sentimento de uma punição auto-infligida e merecida por termos desviado os olhos do tempo na busca de uma eternidade num espaço... um certo desencanto tido logo à partida de cada acto... por não termos acompanhado os tempos. A forma/fórmula esquizofrénica como tentamos resolver esta questão é visível mas apenas como remendo na resposta que vamos dando: ou um fechamento numa tradição da qual nos vamos esquecendo de geração em geração, muitas vezes acompanhada pela falsa-memória do que ela é ou, por outro lado, uma colagem imediata e sem continuidade ao tempo dos outros em actos estrangeirados extremistas... tudo isto resulta num sentido de injustiça permanente que requer um inimigo para que se faça justiça... então... produzimos os nossos próprios inimigos com a facilidade de quem faz um filho e não por desejo, ou por gosto, nem sequer necessidade absoluta (essa seria a nossa morte...), mas porque criámos a necessidade em nós de uma autopunição como forma de gerar a injustiça e de a aplicar em simultâneo... isto é uma doença nacional e, se por um lado vai cumprindo o ditado “mulher doente, dura para sempre”, ou seja, se este viver na margem do tempo dos outros é, em rigor, aquilo que por vezes nos sustenta, por outro, é aquilo que nos coloca sempre à beira de um suicídio colectivo... tentação que recai agora, até, sobre a língua portuguesa, a grande iniciadora a ocidente, centelha do Verbo Divino... sendo que a desvinculação do pensamento constituí, neste momento, o perigo maior pois este aparece colado à falsa noção de sabedoria que é a acumulação de informação (e muita dela enganadora...) e dando a ilusão de, finalmente, “acompanharmos” o tempo dos outros quando, na verdade, essa acumulação não constitui nem faz permanecer o que é a nossa identidade... é nesse sentido que os poetas portugueses têm sido o garante, como rochas firmes ou anjos caídos, apesar de tudo e contra todos, de um certo permanecer, fundamental, da ideia de que em Portugal se pode nascer, não por missão ou castigo, mas em  circunstâncias situadas numa espécie de remoinho da própria consciência e que,  com a consciência desse próprio remoinho, há como que uma condução de uma demonstração, pelo seu papel de transmutadores do sentimento em palavras-Espírito, à noção exacta de que missão e castigo, são uma e a mesma coisa, cumprindo uma espécie de votos paradoxais que se erguem através do tempo, ao longo de gerações, como continuadores da nossa identidade.
Em simultâneo, neste quase-mundo que Portugal é, há, neste momento único  que é o desta  ilusão de finalmente estarmos a acompanhar o tempo dos outros, que nós nos tornámos, enfim, nele e “somos” como eles, sendo que, o que daí retiramos, e por esse ser o verdadeiro estado do mundo actual, sejam fragmentos, divisões, conflitos, guerras, fracturas expostas pela globalização... se o pensamento não nos servir para mais nada ao menos que sirva para que uma parcela da nossa identidade se mantenha viva, no meio dos escombros de todas as guerras, que no intimo mais intimo deste povo de navegadores e poetas, nunca pediu e tão facilmente é capaz, (e opta) de trocar uma arma por uma flor... ou pela palavra, liberdade, quando é mesmo preciso e está de acordo com o ritmo do universo para que da outra ponta da estrela poética que somos se possam ouvir as palavras de Natália Correia:
 
"Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
.


Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
.


Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
.


Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen."



(Cynthia Guimarães Taveira)

 







(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Saudade da saudade



A abraços meus e, oh saudade,
que em vida nem glória nem fortuna...
Primor de Ofélia morta
entre as margens do ser...
Saudades e, oh, abraços meus,
enclaves de sentidos múltiplos,
resto de sonhos difusos, Ai!
Não fosse a sorte de um anjo,
ser minha também...
Abraços meus e, teu olhar...
por entre rosas navega,
labirinto do meu penar.
Doce ternura que deixaste por ficar...
Abraços meus, nos campos d’oiro
Encantos mil foste...
Prima hora dos encontros,
Arte em busca de um altar...
Abraços meus, e, oh, saudade,
não fosse a hora da verdade,
não te voltaria a encontrar...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A voz




É a voz o que mais impressiona...
é um certo timbre...
umas falam de uma bondade inata,
outras, de uma cristalina transparência,
mas outras, raras,
falam de uma outra memória,
mais certa do que a certeza.
É a voz, e não outra coisa
que transportamos da música das esferas...
É ela a memória derradeira
Que não nos engana e nos soterra,
em eternas, amaldiçoadas
e benignas chamas...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

A arte...


(A arte começa com a verdade interior...)

 
Tu, mentira,
já não me dizes nada,
porque não foste nada,
Nem o Portugal dos meus sonhos foste...
És uma tela que não recebe a cor,
uma página sem palavras.
Já não me dizes nada, porque nunca disseste,
porque somente esperaste ouvir,
porque sempre foste o silêncio desértico,
a superfície das esferas,
e nunca atravessei os campos com a tua alma,
ou descobri tesouros debaixo das pedras do teu descanso...
És tudo o que não aconteceu,
nem em sonhos me apareceste,
aparentando um espírito qualquer...
És o vácuo da indecência
de te teres pensado pessoa, ou um deus... em frente a mim...
Porque só esperaste e nada fizeste,
enquanto eu revia a tua história toda
e, com ela,  adquiria asas,
cada vez mais longínquas
e longe de tudo o que não foste,
nem ousaste, apenas pediste para ser...
Fui tudo por ti
Hoje és cinza, eu, fénix
e, de mim  para ti,
deixo-te um inútil véu,
o da tua sombra que encontrarás
a cada esquina inesperada,
como vulto ou fantasma
de todos os espelhos que frequentaste,
devolvendo-te a oca imagem
do nada em que te tornaste...
pedinte de arte
sem talento, nem verdade para a ter.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Oração




Sim , essa profundidade imaginada como se fosse um tom azul escuro, aquele que só um certo azul sabe ter como se nele se adivinhassem infinitos espaços... caminhávamos na noite de Sintra, porque há uma noite que é só de Sintra, feita para ela, igual a esse azul de espaços infinitos, ora com brumas, ora com a lua brilhando como uma coroa. Caminhávamos num caminho que era outro, sobreposto a ele, feito de outras sensações, também elas infinitas, abrindo portais, uns a seguir aos outros, mundos diversos nunca totalmente revelados, mas deixando-nos a promessa de um não-tempo onde, sem brumas, ou ventos, ou sol em demasia, tudo se revelaria na simplicidade aparente que têm todas as essências.

Viamo-la quase como um livro que havíamos roubado de um templo, e entre a minha sensação e a tua havia vidas separando-nos e o gosto comum dessa vida outra que partilhávamos, ali, passo a passo, e que nos envolvia na construção de um templo único, feito pedra preciosa a pedra preciosa e com alicerces inquebráveis por tão sustentados na verdade...

Havia a Sintra secreta, que não dizíamos nem falávamos e que reservávamos para um olhar.
Talvez fosse ela uma noite mais verdadeira do que as outras, porque lá, as estrelas tinham outro brilho, e as árvores em negro recortadas eram sons e presenças, de uma grave e austera consistência, interpostas entre as pedras vivas.

Talvez lá, nós morrêssemos em vida, nessa vida conhecida e de todos os dias, de despertadores e pequenos-almoços apressados, talvez lá, nós morrêssemos por nos sabermos mortos nessa vida conhecida de todos os dias e lá nascêssemos como condição da própria memória do lugar que não permitia a morte, nem a falsa vida.

E, dessa fonte viva, bebêssemos todas as esperanças que nos faltavam, e nessas cascatas nos metamorfoseássemos como deuses reencontrados, sem que houvesse silêncio que pudesse sobrepor-se à luz das estrelas...  e todas as teorias desaparecessem na revelação que eram os nossos gestos acompanhando a ligeira dança dos ramos e das folhas, na brisa que também eramos...

E talvez, regressássemos a casa e guardássemos esse azul, de infinitos espaços, tanto céu, para tanto verde, numa caixa  escondida dentro da eterna vida onde nos conhecemos e onde flutuámos num perpétuo nascimento, na hora de sempre acontecer o milagre de estarmos vivos. As orações, não se oram, vivem-se.

 (Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 15 de novembro de 2014

A solução




A dificuldade da lógica reside no empecilho do sentimento e vice-versa. Quando tudo parece fazer sentido logicamente, o contrário não permite... ainda agora, sentimentalmente, a minha gata achou que deveria sobrepôr o seu corpo e o seu afecto a este caderno enquanto iniciava este texto. Respondi-lhe com lógica: “Sai daqui porque estou a escrever!”. Ela percebeu a minha ligeira zanga. Ligeiramente afastada pela minha mão,  seu olhar modificou-se e tornou-se uma mistura de submissão e algo que dizia: “Daqui não saio, do meu afecto ninguém me tira!”. Esperou cerca de dois minutos sempre com o mesmo olhar. Ao fim desse tempo (que me pareceu imenso) deixei-a trepar e colocar-se entre mim e o caderno, obrigando-me a esticar o braço enquanto escrevo. A minha lógica e o sentimento dela misturaram-se: eu tornei-me mais sentimental e ela, mais racional pois percebeu ser possível um espaço intermédio entre mim e o caderno, e mais, resolveu o problema do texto cuja a autora, ao iniciá-lo, e ainda na primeira linha, não fazia a mínima ideia de como este ia acabar.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 9 de novembro de 2014

Fogo e fogo de artifício...



E quantas vezes os climas em que vivemos são apenas reflexo do macroclima geral? Nos últimos anos assisti apenas a divisões, fragmentações, desuniões, partidarizações, bipolarizações, tripolarizações e quadripolarizações... Na concha cada vez mais delimitada do indivíduo se fecham pessoas e ideias. São conchas firmes, construídas passo a passo ao longo dos últimos minutos dos últimos anos e até o diálogo visível entre molúsculos aparece com todas as probalidades de ser superficial... ou com uma intencionalidade...

Sim, assim anda a Europa também... a vai andar cada vez mais, num diálogo de superfície mantendo a aparência de que é imune a todas as crises...

E quantas vezes, o nosso microcosmos vibra com o cosmos e este com o macrocosmos?

Falo, provavelmente, vezes demais na urgência de se estar desperto para que da consciência do corpo se passe à consciência da consciência e que esta passe para uma consciência da consciência que é também a nossa circunstância.

Enquanto nos estupidificarmos como sociedade estaremos muito mais sujeitos à nossa própria estupidez  e a refugiarmo-nos ou num sentimentalismo adiposo de solidariedades que não curam as feridas (antes as beneficiam como placebos...), ou numa sensação de poder, igualmente adiposa, por conhecermos (antes de todos os outros, atenção...) todas as teorias de conspiração.

Tal é a descida vertiginosa que, por vezes, só conhecemos alguma subida em sonhos... na noite guardada para nós, contrabalanço sereno da tempestade... e quando só ela, a noite, inconsciente, nos seus sonhos de pêndulos compensadores são o último reduto de esperança, então, estamos definitivamente a dormir... porque até as noites se desejavam mais despertas... que dizer? São palavras, palavras que se escrevem, em tom de aviso e lamento... se corpo não despertar, se a curiosidade não surgir, se o descontentamento não nos agitar (e não estes falsos contentamentos tão na moda, tão falsamente espiritualistas... simulacros, apenas, camufladores de insanidades caladas...), se isso não acontecer... andaremos sempre a construir dias de fantasia e não chegaremos a tocar sequer as vestes da imaginação... quanto mais a fragância do espírito?

(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

O achado da língua


Fernando Pessoa, chamou, por diversas vezes, a atenção para a língua portuguesa... sendo até misterioso nalgumas ocasiões no modo como o fazia. O seu poder de síntese (daí ser poeta e de a sua prosa,nos aparecer de alguma forma, como parte dos “bastidores” da poesia...) conduzia-o a frase lapidares. Ora, as frases lapidares contêm o mistério dos mortos, encerram em si toda uma vida e daí que haja lápides funerárias com inscrições que apelam ao “decifrar” de um passado que assim não fica totalmente enterrado na amnésia... Dei com este excerto precioso de J. A. Alves Ambrósio, no qual, parte da frase lapidar de Fernando Pessoa é explicado, revelado. Será apenas parte dessa frase que aqui mostra a sua face luminosa, é verdade, mas não deixa de ser importante chamar a atenção para estes detalhes tão brilhantemente expostos por este autor, publicados no número 14 da  revista Nova Águia, pág. 94 e que contêm em si, o germe, de toda uma relação que se pode ter com uma língua, como coisa viva e não apenas utilitária:

“Se os filhos – ainda que nos mais tenros anos – pronunciassem mal uma palavra ou dessem um “pontapé na gramática”, qualquer dos progenitores, nascidos ambos na segunda década do século passado – e o Pai tinha apenas a 3ª classe e a Mãe a 4ª –, os emendava prontamente.” (...)

"As consequências, na sua lucidez, eram inexoráveis: pensar antes de falar e/ou escrever; a busca do termo adequado (no fundo há matizes não sinónimos); a peculiaridade inerente a cada idioma; a etimologia e a semântica; vários dicionários ao lado; uma raiz, uma génese, e concreções linguísticas diversas, resultado de diversas idiossincrasias; um espantoso alargamento do campo de consciência; a transposição da linguagem, do falar, para o estudo, a escrita e a relacionalidade, v.g.; uma total exigência para a Vida, na Vida; uma prospectiva perspicácia na identificação e comunicação do/com o outro; uma coadjuvância para, desde logo, a captação psicológica do interlocutor e/ou de um auditório para o qual tenha que falar-se; a exponenciação da intuição; o sentir-se cada vez mais seguro interiormente; a indefectível curiosidade; o amor pelo estudo; o sentimento de que quanto mais dificuldades mais vitórias; a elevação da genuína poesia (Camões, Correia Garção, Pessoa, Torga…) e prosa (Vergílio Ferreira entre os contemporâneos); a intangibilidade da Hierarquia e da Tradição (o “medir as distâncias”, como, reiteradamente ou- via dizer ao Pai), etc., etc., etc. Da opulência de resultados, é instante salientar alguns tópicos: o conhecimento de si mesmo; o intangível respeito pelas raízes e pela semântica; o vivo sentido da evolução; o conhecimento do Passado; a incoercível implicação da linguagem – para não me alongar. Com efeito, é absoluta- mente instante lembrar – sempre – que o conhecimento de si mesmo é o ponto de partida de toda a única – e verdadeira – Filosofia; e que a linguagem implica o pensamento – e esta asserção, parece-me, é mais verdadeira que a inversa. (...)

Por outro lado, quando me tornei um cosmopolita, notei – concluí, claro – com absolutas força, consciência, que, por trás, no fundo, de cada idioma o que se situa é uma irredutível, incoercível, espiritualidade.”



quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Cansaço a contra-luz




Ainda os que vão sonhando na floresta do cansaço em árvores levantadas em desencantos, em árvores levantadas de falsas esperanças, abanando aos ventos das tempestades, elevadas as árvores aos expoentes do não-ser, grandes de raízes profundas da civilização das mil-crenças, ver estes portugueses, sombras de si mesmos, plantadores já mecânicos de naus que tardam acontecer. Ver o cansaço extremo de quem vive sem não entender... não é preciso ir muito longe, nem aos governos, nem às bibliotecas, nem aos bancos das escola, nem aos mestres do oriente, não é preciso uma demanda para se ver esses olhos tristemente cansados raramente levantados, estão por toda a parte e não é preciso ir a Marte. Antes, a viagem se faça ao invés, e não seja o longe mais longe que nos dê a real visão do triste momento... que a viagem se faça para dentro dos olhos, bem para dentro, em acto de pura consciência. Que a viagem se faça pelo interior dele, do outro, do aqui tão próximo, do tão próximo que fica que lhe vejamos essas árvores levantadas, na floresta do cansaço, na ilusão do permanecer, tão perto dele, tão junto dele que lhe transmitamos o nosso olhar, mesmo que este seja a visibilidade dessa floresta de Inverno, mesmo que lhes digamos: repara como as árvores se erguem, se movem, se agitam na tristeza do teu penar.
Haverá assim, nem que seja isso, uma companhia... um rasgo de luz nessa floresta... a esperança de que a terra pulse na agonia do desejo do verde imenso da Primavera que, mais do que a serenidade conformada e conformadora, possa um dia devolver a vida no seu estado primeiro: o da alegria. Ainda os que vão sonhando, apanhando a boleia dos pássaros, que são sempre uns poetas... e vão..., ainda porque tudo dêem sem saber que o dão,  ainda que nada lhes seja devolvido, nem a graça, nem a fortuna, ainda assim, são eles os que conhecem o caminho... e talvez cada um saiba e guarde um sonhador dentro de si.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 1 de novembro de 2014

Antes e depois de ti



(a Vaslav Ninjinski)

Mudo, impenetrável,
assim é como danças.
Oh, mistério
O braço que ergues,
inevitável, não escondes a taça...
Danças em noite dourada
Mudo, em apenas música,
de largo respirar,
músculo a músculo,
nem se antevê, a persona escondida.
Nada, barreira intransponível
Somente gesto em chama.
Mudo erguido em som,
nada, para além de seres
mistério puro, frente a mim,
Com um antes e um depois de ti.
Expectativa interna,
dançado no silêncio da voz dos outros.

(Cynthia Guimarães Taveira)