segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Oração




Sim , essa profundidade imaginada como se fosse um tom azul escuro, aquele que só um certo azul sabe ter como se nele se adivinhassem infinitos espaços... caminhávamos na noite de Sintra, porque há uma noite que é só de Sintra, feita para ela, igual a esse azul de espaços infinitos, ora com brumas, ora com a lua brilhando como uma coroa. Caminhávamos num caminho que era outro, sobreposto a ele, feito de outras sensações, também elas infinitas, abrindo portais, uns a seguir aos outros, mundos diversos nunca totalmente revelados, mas deixando-nos a promessa de um não-tempo onde, sem brumas, ou ventos, ou sol em demasia, tudo se revelaria na simplicidade aparente que têm todas as essências.

Viamo-la quase como um livro que havíamos roubado de um templo, e entre a minha sensação e a tua havia vidas separando-nos e o gosto comum dessa vida outra que partilhávamos, ali, passo a passo, e que nos envolvia na construção de um templo único, feito pedra preciosa a pedra preciosa e com alicerces inquebráveis por tão sustentados na verdade...

Havia a Sintra secreta, que não dizíamos nem falávamos e que reservávamos para um olhar.
Talvez fosse ela uma noite mais verdadeira do que as outras, porque lá, as estrelas tinham outro brilho, e as árvores em negro recortadas eram sons e presenças, de uma grave e austera consistência, interpostas entre as pedras vivas.

Talvez lá, nós morrêssemos em vida, nessa vida conhecida e de todos os dias, de despertadores e pequenos-almoços apressados, talvez lá, nós morrêssemos por nos sabermos mortos nessa vida conhecida de todos os dias e lá nascêssemos como condição da própria memória do lugar que não permitia a morte, nem a falsa vida.

E, dessa fonte viva, bebêssemos todas as esperanças que nos faltavam, e nessas cascatas nos metamorfoseássemos como deuses reencontrados, sem que houvesse silêncio que pudesse sobrepor-se à luz das estrelas...  e todas as teorias desaparecessem na revelação que eram os nossos gestos acompanhando a ligeira dança dos ramos e das folhas, na brisa que também eramos...

E talvez, regressássemos a casa e guardássemos esse azul, de infinitos espaços, tanto céu, para tanto verde, numa caixa  escondida dentro da eterna vida onde nos conhecemos e onde flutuámos num perpétuo nascimento, na hora de sempre acontecer o milagre de estarmos vivos. As orações, não se oram, vivem-se.

 (Cynthia Guimarães Taveira)

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