terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Vida interior


Hoje dei de caras com o JL (Jornal de Letras, para quem não sabe) e, para além de gostar de dar de caras com os jornais -pertenço à velha guarda que gosta de mexer em papel jornal- fiquei a saber que, num livro de oitocentas páginas, Teresa Martins Marques nos vai trazer muitos elementos novos sobre o poeta e ficcionista David Mourão Ferreira e que este será lançado nas Correntes d'Escritas que, de vez em quando, acompanho pela rádio.
O natural interesse por antiguidades (hoje Mourão Ferreira é uma antiguidade, valiosa, penso) levou-me a abrir o Jornal. Aberto o Jornal pus-me a lê-lo e conforme ia lendo da página 8 à 11 uma coisa ia ficando clara para mim. A vida interior deste escritor e professor era um mundo vasto tendo começado na infância, muito ao jeito de Fernando Pessoa, aliás...
A páginas tantas, num texto auto-reflexivo, diz o autor (página 11, no fundo,  onde diz auto-análise aos 18 anos, para quem tiver muita pressa em procurar - risos): "Ao contrário de certos indivíduos que teimam em procurar na vida os temas literários, eu estou sempre disposto em transformar a vida em literatura. Por isso, encontro-me sempre disponível.  Detesto as escolas, os partidos políticos, enfim, todos e quaisquer facciosismos".
Perante tal afirmação, dirão hoje uns "era um jovem, não pensava..." ou "ainda não tinha vivido nada...", o mais natural serão respostas assim. Mas lendo estas palavras avançaria com a impressão de que David Mourão Ferreira, teve daquelas intuições que aos jovens sensíveis é dada em plena imaturidade e que se traduzem em palavras maduras de quem parece ter vivido muito, incluindo os tempos presentes que nunca chegou a viver.
Tal afirmação proferida nos tempos de hoje seria considerada blasfémia perante as hostes e tal vida interior, tão dividida entre a poesia, a ficção, o ensaio, o romance tradicional e o teatro seria alvo de críticas tão certas como "não se decide, dispersa-se muito, é um viajante sem destino, está mesmo perdido".
Não sei se andaremos preparados para personagens e pessoas antigas deste tipo pois penso pertencerem a um outro mundo, a um outro tempo, no qual não havendo "A Via" como um estado de graça que hoje é exigido na surdina dos comentários, havia, e num tempo nada fácil em termos de liberdade por causa do Regime, mais possibilidades daquilo a que vulgarmente se chama "vida interior" e que esta pudesse passar da invisibilidade latente para a luz do dia sem que fosse chocante o que, em formas de expressão artística, se traduz (e quantas vezes) em incoerência, a repulsa natural ao facciosismo demonstrado, em ambiguidade, em dúvidas existênciais, sem que estas minimizassem alguém como hoje parece acontecer ou então serem denominadas de "desabafos" como se estivéssemos eternamente deitados no divã de um psicanalista e senão mesmo sentados na cadeira de um confessionário.
As razões desta psicose invertida na qual o artista passa a maluco e o pãozinho sem sal a artista talvez resida no facto de se ter perdido o fio à meada do que é a criação e dos caminhos pela qual ela naturalmente deambula e sempre deambulou.
Almada Negreiros passeava no Chiado, em jeito de provocação, num Modernismo tão novo que incomodava os Dantas-botas de elástico, mal sabia ele que esta mera afirmação de vida interior de David Mourão Ferreira, no Futuro que tanto "futurizou", e que era, quem sabe, a raiz criativa até do próprio Dantas, iria ser alvo de peneira crítica, logo à nascença, pelos sensores do bom tom das facções.
Se Mourão Ferreira, viveu, num certo silêncio que agora se revela, hoje, teria talvez dúvidas em escrever um poema sem que isso não fosse uma pedrada num charco qualquer. É que do grande mar que é símbolo das grandes almas passámos aos charcos dos patos bravos que bicando os que ainda se.atrevem a ser antigos e  criativos, se sentem bicados pela criação como se está fosse um "nú" na cabeça do Islão. Ora como se sabe, o "nú" tem muitas interpretações e a arte, a ficção, enfim, todo o domínio da criação vem sempre nua ao mundo, e cresce nua e caminha nua. Esta nudez d'alma escrita por David Mourão Ferreira, hoje era, evidentemente e convinentemente tapada, por um comentário, por uma crítica, ou pela mais recorrente e moderna forma de censura: o silêncio e a aparente indiferença. Evidentemente que o livro tem interesse. Sempre gostei de antiguidades. Até mesmo quando são jovens, têm dezoito anos, e são tão modernas que até espantam.

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Caminho para o Infinito



[E o mais irónico serão,  (porque já o foram )
Os caminhos desenlaçados como histórias
E o mais estranho é (porque sempre o foi)
Essa infinitude dos caminhos e da história.]

{Há qualquer coisa de ausente a partir daqui
Como se visse os teus sonhos como romances
E tornasse a lê-los como duplos romances
Rescritos com o mesmo vigor

E tornar a recordá-los uma outra vez
Como se recortasse pedaços de palavras
E deles levasse o que de mais luminoso são

E com eles pudesse
Reconhecer caminhos
E deles também levasse
As flores que se entendem por destino}

]...Não é tão exacto o céu como supões
Dispostos os astros sem contradições
Servem as estrelas o navegar
Mas não servem quem além do céu estrelado ousa passar

Não é exacto por viver no corrupio
Do suor do poeta em desafio
É mais como essas gotas caindo
Por aqui e por ali fazem elas o caminho

Caindo em palavras no papel
São soluços de um coração que não é frio
Guiam sem guiar por quem escolhem
Aparecem sem razão ou previsão

Muito se assemelham ao calafrio
Que há no silêncio donde cai
Essa nota de música que de súbito vem
E revela a exactidão da certeza
Que da alma tanto tempo esteve refém

E para que o espírito viaje
Tem de atravessar as rotas
Entre elipses e cornucópias
Entre todas as linhas tortas
Mais torto que elas delas se desvia
E tão rápido e solto assim vem
Que sem saber dele os astros prosseguem
Seguros e soberanos em seu designíos
São belos vestidos ocultando
Outros e mais secretos sentidos...[

(Cynthia Guimarães Taveira)











terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Mistério Musical


A dança consente que a música entre no corpo. Se possível no corpo todo. Se possível apagando-o, anulando-o até ser só música. Decide-se dançar.

Subia o Chiado progressivamente triste, entristecendo a cada passo e, só à medida que me aproximava da Brasileira, era audível uma violoncelista  solitária tocando uma música qualquer mas que o violoncelo se encarregava de a tornar matéria depressiva.

Sempre reagi mal ao violoncelo. Ao violoncelo isolado. Já ouvi a não sei quem ser o instrumento que mais reflecte a voz humana e talvez, por um mistério maior, ouvi-lo assim isolado, como um humano-ilha me atinja qualquer coisa de pesado, como uma solidão anti natura no meio de um universo preenchido.

Pascal Quignard disserta, às tantas, sobre o facto de os ouvidos não possuírem pálpebras sendo por isso a música, ou o ruído, mas aqui falamos de música qualquer coisa que se impõem. Tem qualquer coisa de tiranica, se deixarmos. Não se queremos.

A música serve-nos servindo-se de nós e vice-versa... pode ser a ilusão da cura de um sentimento ou pode ser mesmo a cura dele...

Erik Satie, esse personagem formidável, vivendo de cabaret em cabaret, bebendo até à cirrose final, único ao ponto de criar a sua própria ordem iniciática criou a música ambiente e pedia encarecidamente aos amigos que a ouviam para continuarem a falar normalmente. Para que não se calassem. Pediu-lhes, sem que estes dessem conta e, talvez até ele, que não se subjugassem à música. Intuindo tanto o subliminar como a vontade dos seres acima de qualquer influência.

Pode gerar um desacordo teórico, a música. O minimalismo deste compositor que tocava, quantas vezes, aquela harmonia oriental, compôs em contra-corrente à grandeza dos clássicos e em contra-corrente à sua própria vida caótica. Fica sempre a pergunta: como tendo uma vida assim, de garrafas, de copos, de corpos, de instantâneo caos, como com tudo isto lhe saia o oposto em notas breves, pontuadas de silêncios que caminhavam tranquilamente por entre as frestas do que de mais profundo e sagrado há no ser humano?

Quem sabe se a resposta está no Heavy Metal? Lembro-me, por diversas vezes, ao longo da vida, me ter cruzado com aquele tipo de alunos que tira sempre a nota máxima a tudo. Achava-os geniais. Mas naquilo em que achava haver o maior prodígio era o facto tirarem eles aquelas notas altíssimas e serem incondicionais admiradores de Heavy Metal. Em qualquer cabeça lógica isto não faz sentido até se chegar à auto-análise.

Como me saem anjos, mundos barrocos, luminosos e harmoniosos dos pincéis, tantas e tantas vezes ao som da mais banal estação de rádio com música da moda, quanta dela sem grande qualidade? Como? Da mesma forma que Satie e tantos outros que viveram na aparente ambiguidade. A harmonia é interna e não externa.

A leitura fácil e idiota de ler os homens pelo que ouvem é tão infantil como lê-los pelo que vestem.

Mas pode-se voar ao som da mesma música. Como se pode voar em conjunto vendo um filme, lendo passagens de um livro, olhando uma paisagem. A sintonia... a dois ou a três ou a mais é possível quando o ser se despe e se entrega no mesmo fragmento de segundo, da mesma maneira.

Como se explica a esfera celeste de onde parece provir alguma música, e como se explica que esta seja tantas vezes utilizada em sociedades primitivas para que o corpo cesse e se possa entrar na esfera celeste ou infernal? De que trocas falamos? Místicos que, subitamente, ouvem anjos cantar, instrumentos provindos de uma outra esfera a tocar. Almas que se erguem, capazes de voar...

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O Anagrama quase infinito de Pessoa



Teresa Rita Lopes numa entrevista dada  à  edição do jornal Sol de 13 de Fevereiro de 2016 tem várias afirmações interessantíssimas mas uma delas parece-me de extrema importância: "Mais de metade dos textos do espólio continuam inéditos". Esta afirmação, que não é inédita, parece ser esquecida frequentemente por quem ousa atravessar os universos de Pessoa. Se menos de metade do que escreveu nos confere imediatamente a noção de um anagrama de ideias, de mundos, de presenças, de sensações, creio que a outra metade, provinda de uma pessoa tão complexa, nos compromete com a ideia de que esse anagrama tende para o infinito ou para o Absoluto como tantas vezes o poeta referia o "ilimitado".
A pergunta que se pode fazer, depois de tantos anos passados da sua morte, (até mesmo aqueles anos necessários para que as edições da sua obra passem ao domínio público) é o porquê desse espólio não ter sido ainda pesquisado e editado. Teresa Rita Lopes fala-nos da tendência para edições com falta de qualidade e deixa entender que a obra do poeta é, muitas vezes, um trampolim para a exacerbação dos egos, para a venda (com edições feitas de qualquer maneira) de livros, para a confirmação de teses pessoais quer sejam ideológicas, religiosas, académicas e por aí fora...

A complexidade do espólio, das caligrafias presentes nos manuscritos do poeta (que tinha vários tipos de letras...), a ausência de capacidade de relacionar esse espólio entre si (confrontar os escritos, decifrar percursos, datas, coerência de pensamentos e por aí fora), requer a paciência de um chinês, (de vários chineses) uma capacidade de investigação exaustiva, uma entrega de várias vidas.
Gozando nós de um estatuto "europeu", essa Europa da cultura e civilizada, não deixa de ser estranho, e passados quarenta anos de democracia que, tendo nós no nosso património um poeta tantas vezes considerado como um dos expoentes da literatura mundial, ele continue por estudar. Se parte é "culpa" dele - quem o mandou ser tão complexo, tão versátil e tão indecifrável, às vezes? - outra parte parece prender-se com vários problemas que, todos juntos, bem embrulhados e com devido laçarote de oferta, sejam um presente da ignorância da sua obra. Da pessoa que era Pessoa, há várias teses, plasmadas ou não dos próprios autores que constroem as teses sobre a "figura" de Pessoa, e se não plasmadas quantas vezes misturando o artista com obra numa espécie de ficção tridimensional baseada na fórmula: Pessoa + Obra = ao Pessoa que calculo que fosse... ou que gostaria que fosse ou que dá jeito que seja, ou que eu teimo que seja ou que "ai dele se não for" e por aí fora.
Existem lutas por espaços académicos que não facilitam a obra arqueológica? Não sei, mas é provável... Existem lutas ideológicas com a mesma consequência? É provável. Será que noutro país europeu a sua obra já estaria, pelo menos, mais estudada? É bastante provável que sim, ou talvez não, e esses problemas que nós temos sejam comuns a muitos países. No mundo editorial há razões para que o desconhecimento prevaleça? É provável que sim.
Um dos problemas, facto para o qual já alertei várias vezes ao longo de anos, prende-se também com a cada vez menor atenção dada aos estudos humanísticos, por assim dizer, dando primazia à tecnologia e cursos que a ela conduzem.
O que se pode fazer para resolver esta questão? Bem, Teresa Rita Lopes diz ter vontade de reabilitar o poeta o que já é muito bom que alguém o queira fazer em termos académicos, (embora não morra de amores pelo mundo académico sublinho que algum rigor que possa ter faz, de facto, muita falta), por outro, podemos esperar que a conta gotas saiam inéditos mesmo que estrategicamente colocados por entre a obra já publicada.
As edições críticas são o suporte de uma leitura de Fernando Pessoa e se houver dúvidas quanto à qualidade da edição há sempre alguma ponta por onde "agarrar", alguma pergunta que se pode fazer, alguma investigação na qual possa (tendo alguma fé) tirar uma dúvida sobre uma palavra ou outra.
O anagrama de Pessoa pode tornar-se cada vez mais denso à medida que vai sendo explorado exactamente pela inexactidão de algumas edições que apenas dão a impressão de serem "seguras" ou "fiáveis" ficando o seu estudo semelhante a uma sobreposição de anagramas onde se cruzam os do autor e os do autor-leitor.
Para além disso, e essa é a melhor parte desta história rocambolesca do poeta e seus leitores, há poemas (lindíssimos), fragmentos (sensíveis), escritos (inteligentíssimos), frases (magníficas), ideias (ultra avançadas e originais), livros, que enchendo estantes, nos permitem lê-lo, interpretá-lo devagar.
Temos, portanto, um banquete crítico à nossa espera e até um poema, um só poema, em ensaio transformado, ensaio ao qual nos entreguemos de viva voz e vivo coração pode ganhar a dimensão de uma experiência para a vida.

(Cynthia Guimarães Taveira)


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Lugares sagrados



Estás a dizer-me:
- Cada pedaço de terra, cada paisagem, cada cenário por onde foste passando era sagrado, só que não o vias.
Penso ser isso óbvio, basta que haja história para que esses pedaços de terra, essas paisagens, esses cenários possam ter sido sacralizados um dia...
- Não compreendes o que digo. Mesmo que nunca tivessem sido sacralizados e reconhecidos como tal eles já faziam parte da tua história sagrada sem que te desses conta. A virtude está em perceber como todos eles, agora que os podes repetir, fazem o sentido da tua história. Passarás por eles outra vez mas olharás para eles como se os lesses. O passado só pode erguer-se à tua frente quando efervescente de sentido é o teu futuro. Se assim não for, resta-te a infância como lembrança e não alcanças esse lugar onde, por onde passas de novo, é possível que avances por entre caminhos invisíveis, outros tais que mais tarde reconhecerás como se os soubesses.

(Cynthia Guimarães Taveira)