A dança consente que a música entre no corpo. Se possível no corpo todo. Se possível apagando-o, anulando-o até ser só música. Decide-se dançar.
Subia o Chiado progressivamente triste, entristecendo a cada passo e, só à medida que me aproximava da Brasileira, era audível uma violoncelista solitária tocando uma música qualquer mas que o violoncelo se encarregava de a tornar matéria depressiva.
Sempre reagi mal ao violoncelo. Ao violoncelo isolado. Já ouvi a não sei quem ser o instrumento que mais reflecte a voz humana e talvez, por um mistério maior, ouvi-lo assim isolado, como um humano-ilha me atinja qualquer coisa de pesado, como uma solidão anti natura no meio de um universo preenchido.
Pascal Quignard disserta, às tantas, sobre o facto de os ouvidos não possuírem pálpebras sendo por isso a música, ou o ruído, mas aqui falamos de música qualquer coisa que se impõem. Tem qualquer coisa de tiranica, se deixarmos. Não se queremos.
A música serve-nos servindo-se de nós e vice-versa... pode ser a ilusão da cura de um sentimento ou pode ser mesmo a cura dele...
Erik Satie, esse personagem formidável, vivendo de cabaret em cabaret, bebendo até à cirrose final, único ao ponto de criar a sua própria ordem iniciática criou a música ambiente e pedia encarecidamente aos amigos que a ouviam para continuarem a falar normalmente. Para que não se calassem. Pediu-lhes, sem que estes dessem conta e, talvez até ele, que não se subjugassem à música. Intuindo tanto o subliminar como a vontade dos seres acima de qualquer influência.
Pode gerar um desacordo teórico, a música. O minimalismo deste compositor que tocava, quantas vezes, aquela harmonia oriental, compôs em contra-corrente à grandeza dos clássicos e em contra-corrente à sua própria vida caótica. Fica sempre a pergunta: como tendo uma vida assim, de garrafas, de copos, de corpos, de instantâneo caos, como com tudo isto lhe saia o oposto em notas breves, pontuadas de silêncios que caminhavam tranquilamente por entre as frestas do que de mais profundo e sagrado há no ser humano?
Quem sabe se a resposta está no Heavy Metal? Lembro-me, por diversas vezes, ao longo da vida, me ter cruzado com aquele tipo de alunos que tira sempre a nota máxima a tudo. Achava-os geniais. Mas naquilo em que achava haver o maior prodígio era o facto tirarem eles aquelas notas altíssimas e serem incondicionais admiradores de Heavy Metal. Em qualquer cabeça lógica isto não faz sentido até se chegar à auto-análise.
Como me saem anjos, mundos barrocos, luminosos e harmoniosos dos pincéis, tantas e tantas vezes ao som da mais banal estação de rádio com música da moda, quanta dela sem grande qualidade? Como? Da mesma forma que Satie e tantos outros que viveram na aparente ambiguidade. A harmonia é interna e não externa.
A leitura fácil e idiota de ler os homens pelo que ouvem é tão infantil como lê-los pelo que vestem.
Mas pode-se voar ao som da mesma música. Como se pode voar em conjunto vendo um filme, lendo passagens de um livro, olhando uma paisagem. A sintonia... a dois ou a três ou a mais é possível quando o ser se despe e se entrega no mesmo fragmento de segundo, da mesma maneira.
Como se explica a esfera celeste de onde parece provir alguma música, e como se explica que esta seja tantas vezes utilizada em sociedades primitivas para que o corpo cesse e se possa entrar na esfera celeste ou infernal? De que trocas falamos? Místicos que, subitamente, ouvem anjos cantar, instrumentos provindos de uma outra esfera a tocar. Almas que se erguem, capazes de voar...
(Cynthia Guimarães Taveira)
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