Teresa Rita Lopes numa entrevista dada à edição do jornal Sol de 13 de Fevereiro de 2016 tem várias afirmações interessantíssimas mas uma delas parece-me de extrema importância: "Mais de metade dos textos do espólio continuam inéditos". Esta afirmação, que não é inédita, parece ser esquecida frequentemente por quem ousa atravessar os universos de Pessoa. Se menos de metade do que escreveu nos confere imediatamente a noção de um anagrama de ideias, de mundos, de presenças, de sensações, creio que a outra metade, provinda de uma pessoa tão complexa, nos compromete com a ideia de que esse anagrama tende para o infinito ou para o Absoluto como tantas vezes o poeta referia o "ilimitado".
A pergunta que se pode fazer, depois de tantos anos passados da sua morte, (até mesmo aqueles anos necessários para que as edições da sua obra passem ao domínio público) é o porquê desse espólio não ter sido ainda pesquisado e editado. Teresa Rita Lopes fala-nos da tendência para edições com falta de qualidade e deixa entender que a obra do poeta é, muitas vezes, um trampolim para a exacerbação dos egos, para a venda (com edições feitas de qualquer maneira) de livros, para a confirmação de teses pessoais quer sejam ideológicas, religiosas, académicas e por aí fora...
A complexidade do espólio, das caligrafias presentes nos manuscritos do poeta (que tinha vários tipos de letras...), a ausência de capacidade de relacionar esse espólio entre si (confrontar os escritos, decifrar percursos, datas, coerência de pensamentos e por aí fora), requer a paciência de um chinês, (de vários chineses) uma capacidade de investigação exaustiva, uma entrega de várias vidas.
Gozando nós de um estatuto "europeu", essa Europa da cultura e civilizada, não deixa de ser estranho, e passados quarenta anos de democracia que, tendo nós no nosso património um poeta tantas vezes considerado como um dos expoentes da literatura mundial, ele continue por estudar. Se parte é "culpa" dele - quem o mandou ser tão complexo, tão versátil e tão indecifrável, às vezes? - outra parte parece prender-se com vários problemas que, todos juntos, bem embrulhados e com devido laçarote de oferta, sejam um presente da ignorância da sua obra. Da pessoa que era Pessoa, há várias teses, plasmadas ou não dos próprios autores que constroem as teses sobre a "figura" de Pessoa, e se não plasmadas quantas vezes misturando o artista com obra numa espécie de ficção tridimensional baseada na fórmula: Pessoa + Obra = ao Pessoa que calculo que fosse... ou que gostaria que fosse ou que dá jeito que seja, ou que eu teimo que seja ou que "ai dele se não for" e por aí fora.
Existem lutas por espaços académicos que não facilitam a obra arqueológica? Não sei, mas é provável... Existem lutas ideológicas com a mesma consequência? É provável. Será que noutro país europeu a sua obra já estaria, pelo menos, mais estudada? É bastante provável que sim, ou talvez não, e esses problemas que nós temos sejam comuns a muitos países. No mundo editorial há razões para que o desconhecimento prevaleça? É provável que sim.
Um dos problemas, facto para o qual já alertei várias vezes ao longo de anos, prende-se também com a cada vez menor atenção dada aos estudos humanísticos, por assim dizer, dando primazia à tecnologia e cursos que a ela conduzem.
O que se pode fazer para resolver esta questão? Bem, Teresa Rita Lopes diz ter vontade de reabilitar o poeta o que já é muito bom que alguém o queira fazer em termos académicos, (embora não morra de amores pelo mundo académico sublinho que algum rigor que possa ter faz, de facto, muita falta), por outro, podemos esperar que a conta gotas saiam inéditos mesmo que estrategicamente colocados por entre a obra já publicada.
As edições críticas são o suporte de uma leitura de Fernando Pessoa e se houver dúvidas quanto à qualidade da edição há sempre alguma ponta por onde "agarrar", alguma pergunta que se pode fazer, alguma investigação na qual possa (tendo alguma fé) tirar uma dúvida sobre uma palavra ou outra.
O anagrama de Pessoa pode tornar-se cada vez mais denso à medida que vai sendo explorado exactamente pela inexactidão de algumas edições que apenas dão a impressão de serem "seguras" ou "fiáveis" ficando o seu estudo semelhante a uma sobreposição de anagramas onde se cruzam os do autor e os do autor-leitor.
Para além disso, e essa é a melhor parte desta história rocambolesca do poeta e seus leitores, há poemas (lindíssimos), fragmentos (sensíveis), escritos (inteligentíssimos), frases (magníficas), ideias (ultra avançadas e originais), livros, que enchendo estantes, nos permitem lê-lo, interpretá-lo devagar.
Temos, portanto, um banquete crítico à nossa espera e até um poema, um só poema, em ensaio transformado, ensaio ao qual nos entreguemos de viva voz e vivo coração pode ganhar a dimensão de uma experiência para a vida.
(Cynthia Guimarães Taveira)
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