sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020
O Jogo Viciado
https://tvi24.iol.pt/geral/29-02-2020/exclusivo-tvi-ex-presidente-do-tribunal-da-relacao-suspeito-de-viciar-distribuicao-de-processos~
Uma vez fiz saber a um desses filósofos esotéricos com quem me dava que, de vez em quando, lançava o I Ching. Não se comediu no comentário deitando por terra uma fonte de sabedoria com quatro mil anos e disse-me que aquilo era auto-sugestão. Palavras para quê? Este caso dos magistrados andarem a brincar com os computadores para que o sorteio dos juízes saia favorável aos seus interesses é representativo do chico espertismo nacional. Vi várias vezes exemplos parecidos, como aquele de alguém que ia falar a um programa de "opinião pública" na televisão, pedindo-me para ligar para lá (os espectadores podiam intervir questionando o convidado) com uma ou duas perguntas escolhidas de maneira a que o convidado, que era ele, pudesse responder aquilo que, na verdade, queria dizer. Uma vez, também, no mundo esotérico, vi o anúncio de uma palestra na qual,"caritativamente" aqueles que não pudessem estar presentes, poderiam enviar as suas perguntas por escrito pois o palestrante, durante a palestra, teria todo o gosto em responder. Só um cego não veria água no bico ali, pois não estando presentes e não sendo a palestra gravada, como poderiam saber das respostas? Está-se mesmo a ver que a ideia era a de ler a pergunta de um "interessado-fantasma" de maneira a que o palestrante dissesse o que realmente queria ficando assim com as costas quentes quanto à resposta: tinha-se limitado a responder a uma pergunta, não tinha sido ele a chamar o tema à conversa. Como se vê, o chico espertismo do jogo viciado existe em força em Portugal, até no caso de algumas leis, elaboradas por deputados advogados que, mais tarde, vão beneficiar "x" ou "y". Assim, quando o Juiz Carlos Alexandre suspeitou da escolha de Ivo Rosa (o computador parece que andou ali às voltas, às voltas) para o caso em que o Sócrates (digo o Sócrates com o artigo definido e não apenas Sócrates porque não tenho respeito pela criatura) será julgado, não foi uma surpresa por aí além e agora, este caso que hoje saiu a público, é apenas um prolongamento dessa falta de surpresa que me acompanha há já alguns anos. Na verdade, o I Ching baseia-se no princípio de que a "sorte" ou o "acaso" não existe por existir, sim, uma sintonia entre o homem e o céu ou entre o interior do homem e aquilo que lhe é exterior. Os sorteiros têm essa raiz espiritual arcaica. Para os ateus ambulantes de hoje isto não diz absolutamente nada e, pelos vistos, para alguns magistrados ainda diz menos. Afinal de contas não estão cá para harmonizar as coisas, estão cá para dominar as coisas. O domínio é muito sedutor, é certo, mas a verdade é que este caso de aldrabice pegada tem uma solução e ela é, tchan-tchan-tcham-tcham: as crianças. Coloquem bolas coloridas dentro de um saco opaco. Cada cor é a de um juiz. A criança retira uma do saco sem olhar e voilà! Temos um sorteio limpíssimo, tão auto-sugestionável como o I-Ching... até dizem que as crianças estão mais perto da pureza e tudo. Há pescadinhas de rabo na boca e há pescadinhas de rabo na boca, umas são mais frescas que outras, que o digam as vendedoras de peixe. E quando os adultos já não conseguem sintonia com coisa nenhuma, nem sequer com a mais elementar justiça, talvez seja necessário apelar aos mais simples. Hoje contaram-me a história incrível do cão que cumprimentava os prisioneiros de um dos campos de concentração dos nazis. O cão, alegremente reconhecia-os como humanos quando iam trabalhar, à sua chegada e à sua partida, coisa que os nazis não faziam. É quando temos que apelar às crianças e aos animais para que nos ajudem que se vê o lindo estado a que chegaram os adultos. Juízes e tudo.
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020
O lado certo da História
https://www.dn.pt/cultura/richard-zimler-a-memoria-do-holocausto-tem-de-competir-com-a-propaganda-neonazi-11768195.html
"E não se esqueçam: o lado certo da história é sempre o lado que tem uma memória.
As audiências atentas das catatuas popularuchas aumentam na proporção directa em que o pensamento científico, com base nas matemáticas, é o único considerado legítimo e na medida em que o pensamento religioso bi-polar está por detrás desse pensamento científico. Os dois têm a garantia, por mais de um ano, de funcionarem. As sociedades funcionais são apressadas na sua essência pois o único objectivo é o de fazer com que qualquer coisa funcione, independentemente do que seja que funcione.
Não há nada contra aquilo que funciona em termos individuais, até porque cada indivíduo é igual a si próprio, sem cópias nem fotocópias de si mesmo. Mas quando chegamos à sociedade, esta crença no que funciona e no que não funciona e que substituiu a verdade e que é o mesmo para todos os indivíduos, aí, nada como elevar o pensamento científico ao altar.
Diz Zimmler que o lado certo da História é sempre o lado que tem memória. Porque a memória nunca é bi-polar e mostra-nos que as coisas nem sempre funcionam.
A memória faz sobretudo parte das áreas humanísticas e, por mais que um cientista tenha memória, o seu objectivo é sempre conhecer mais no futuro ao passo que as áreas humanistas obrigam a saber cada vez mais sobre o passado. Conhecer e saber continuam a ser duas palavras distintas e qualitativamente diferentes. O conhecimento pode ser mais ou menos superficial, a sabedoria é sempre longa, no tempo e no espaço e sempre profunda, por isso mesmo.
A destituição da importância das áreas humanísticas no ensino irá sempre abrir o terreno para que o conhecimento passe e se instale. O bom índio passa a ser o índio morto rapidamente -- não há nada que funcione melhor do que a morte. Quem diz índio diz judeu ou qualquer outro. Para um nazi alemão, mais cedo ou mais tarde, um bom português será um português morto. E assim por diante, até a destruição final. O conhecimento sem sabedoria conduz à destruição. As culturas de morte sustentadas por algumas religiões bi-polares fazem exactamente o mesmo. Funcionam as duas de igual maneira. Funcionam, mas são pouco sábias ou nada.
De maneira que, quando George Steiner se espantava com o facto de os soldados alemães ouvirem Wagner e a seguir irem matar alegremente o bom judeu que só era bom morto, isso indicava que o pensamento do alemão nada tinha a ver com a cultura. O pensamento é absolutamente independentemente da cultura e absolutamente dependente do que se conhece. Desde modo podemos encontrar eruditos sem um pingo de sabedoria e com um vasto conhecimento. A cultura não é o que se conhece, é o que se sabe. Se assim não fosse, o povo nunca poderia vir a ser sábio e é-o muitas vezes. A origem da palavra "cultura" reside na semente que é lançada à terra e que pode crescer ou não, conforme as condições. A diferença é que, ao contrário da ciência, nem sempre funciona. E começa logo aí o problema da qualidade e da circunstância que vai acompanhar todo o caminho da sabedoria.
Ao renegar as áreas humanísticas e ao situá-las em segundo plano, teremos sempre à nossa frente uma cultura de morte, ou seja, a cultura invertida. Uma cultura de morte não lança sementes de vida à terra. É espantoso como a contra-iniciação, cujo sinal é a inversão, se manifesta cada vez mais. Poderemos ter todo o conhecimento do mundo e, ainda assim, não saber nada. Há uma anedota judaica que mostra o valor da sabedoria: um judeu morre e vai parar ao céu, só que o céu não era o que ele pensava. A paisagem era desoladora e, aqui e ali, viam-se homens sentados em cima de pedras a ler. O judeu diz ao anjo que naquele céu não há nada, só homens a ler e que aquilo não era de certeza o paraíso. E o anjo diz-lhe: "Para eles é porque finalmente entendem o que lêem".
"E não se esqueçam: o lado certo da história é sempre o lado que tem uma memória.
As audiências atentas das catatuas popularuchas aumentam na proporção directa em que o pensamento científico, com base nas matemáticas, é o único considerado legítimo e na medida em que o pensamento religioso bi-polar está por detrás desse pensamento científico. Os dois têm a garantia, por mais de um ano, de funcionarem. As sociedades funcionais são apressadas na sua essência pois o único objectivo é o de fazer com que qualquer coisa funcione, independentemente do que seja que funcione.
Não há nada contra aquilo que funciona em termos individuais, até porque cada indivíduo é igual a si próprio, sem cópias nem fotocópias de si mesmo. Mas quando chegamos à sociedade, esta crença no que funciona e no que não funciona e que substituiu a verdade e que é o mesmo para todos os indivíduos, aí, nada como elevar o pensamento científico ao altar.
Diz Zimmler que o lado certo da História é sempre o lado que tem memória. Porque a memória nunca é bi-polar e mostra-nos que as coisas nem sempre funcionam.
A memória faz sobretudo parte das áreas humanísticas e, por mais que um cientista tenha memória, o seu objectivo é sempre conhecer mais no futuro ao passo que as áreas humanistas obrigam a saber cada vez mais sobre o passado. Conhecer e saber continuam a ser duas palavras distintas e qualitativamente diferentes. O conhecimento pode ser mais ou menos superficial, a sabedoria é sempre longa, no tempo e no espaço e sempre profunda, por isso mesmo.
A destituição da importância das áreas humanísticas no ensino irá sempre abrir o terreno para que o conhecimento passe e se instale. O bom índio passa a ser o índio morto rapidamente -- não há nada que funcione melhor do que a morte. Quem diz índio diz judeu ou qualquer outro. Para um nazi alemão, mais cedo ou mais tarde, um bom português será um português morto. E assim por diante, até a destruição final. O conhecimento sem sabedoria conduz à destruição. As culturas de morte sustentadas por algumas religiões bi-polares fazem exactamente o mesmo. Funcionam as duas de igual maneira. Funcionam, mas são pouco sábias ou nada.
De maneira que, quando George Steiner se espantava com o facto de os soldados alemães ouvirem Wagner e a seguir irem matar alegremente o bom judeu que só era bom morto, isso indicava que o pensamento do alemão nada tinha a ver com a cultura. O pensamento é absolutamente independentemente da cultura e absolutamente dependente do que se conhece. Desde modo podemos encontrar eruditos sem um pingo de sabedoria e com um vasto conhecimento. A cultura não é o que se conhece, é o que se sabe. Se assim não fosse, o povo nunca poderia vir a ser sábio e é-o muitas vezes. A origem da palavra "cultura" reside na semente que é lançada à terra e que pode crescer ou não, conforme as condições. A diferença é que, ao contrário da ciência, nem sempre funciona. E começa logo aí o problema da qualidade e da circunstância que vai acompanhar todo o caminho da sabedoria.
Ao renegar as áreas humanísticas e ao situá-las em segundo plano, teremos sempre à nossa frente uma cultura de morte, ou seja, a cultura invertida. Uma cultura de morte não lança sementes de vida à terra. É espantoso como a contra-iniciação, cujo sinal é a inversão, se manifesta cada vez mais. Poderemos ter todo o conhecimento do mundo e, ainda assim, não saber nada. Há uma anedota judaica que mostra o valor da sabedoria: um judeu morre e vai parar ao céu, só que o céu não era o que ele pensava. A paisagem era desoladora e, aqui e ali, viam-se homens sentados em cima de pedras a ler. O judeu diz ao anjo que naquele céu não há nada, só homens a ler e que aquilo não era de certeza o paraíso. E o anjo diz-lhe: "Para eles é porque finalmente entendem o que lêem".
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020
Negro
[Época de metal agreste
Frias laminadas esculpidas nos rostos
Ácido em nuvens de ácidas intensões
A perder de vista as minhas mágoas
No horizonte atrás de mim]
Frias laminadas esculpidas nos rostos
Ácido em nuvens de ácidas intensões
A perder de vista as minhas mágoas
No horizonte atrás de mim]
Época de silêncios que se ouvem
De máscaras que caem sem cair
De extensas vagas de angústia
Que de tanto ser, se distraem de si
De máscaras que caem sem cair
De extensas vagas de angústia
Que de tanto ser, se distraem de si
Não volto nem um passo
Aos passos que não esqueci
Não guardo nem um só espaço
Dos lugares onde adormeci
Aos passos que não esqueci
Não guardo nem um só espaço
Dos lugares onde adormeci
Comem imagens como verdades
Devoram letras como ciência
Entram nos corpos e desalmam-nos
Ao longe, isto, espreitam as essências...
Devoram letras como ciência
Entram nos corpos e desalmam-nos
Ao longe, isto, espreitam as essências...
(Cynthia Guimarães Taveira)
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020
O pássaro cantor
Uma das vantagens que há em viver no mundo intelectual português é a de podermos pensar o que quisermos sobre aquilo que os outros pensam tendo como consequência, se tornarmos os pensamentos públicos, as reações mais diversas. Evidentemente que isto não é português nem deixa de ser. A única coisa que é portuguesa é o facto de pensarmos em Portugal. Só o pensamento, no mundo intelectual, nos inclui ou nos exclui daquilo que é pensar Portugal. Ora as coisas até correm bem se pensarmos no melhor que Portugal tem e correm mal se pensarmos no pior que Portugal tem. Quando correm bem, arranjamos sempre amigos, quer os que pensam em tudo o que de bom tem Portugal como aqueles que pensam que devemos relativizar as coisas e que, por isso, nunca pensaram verdadeiramente em Portugal. Se pensarmos nas coisas más, e as dissermos em voz alta, os que pensam só nas coisas boas de Portugal pegam nas armas e vai disto, tornam-se inimigos mortais, não daquilo que é menos bom em Portugal, mas sim, do pobre mensageiro que, no meio intelectual, ousou apontar os desastres lusitanos. É assim que, o meio intelectual português, aquele que se queria ser "o topo da elite" é também o
que mais mantém as ilusões. Ora a ilusão, como sabemos, é uma imagem inconsistente e perigosa. É por termos estas pseudo-elites que Portugal anda como anda. São elas as responsáveis pelo aniquilamento dos mensageiros que trazem uma mensagem do "alto" com o seu olhar de águia e a sua despreocupação com a sua situação no tempo que sabem bem não existir. Quem quer pertencer à "elite pensadora" tem de se auto-proclamar "defensor do reino" ainda que na prática apenas o agrida ainda mais. Pensar Portugal, só por si não chega . Aquilo que une os "mensageiros" é o coração. Ou batem juntos de forma a alcançar alguma sintonia ou então são, quando caçados, atirados para o saco de gatos, numa primeira fase (a da confusão), e para o circo das feras (a da selvageria pouco lúcida), numa segunda fase, composta por feras-defensoras e que, como feras que são, atacam para defender a ilusão que agride o país. Tentam o despedaçamento de todas as formas do infeliz mensageiro que mais não é do que um pássaro cantor, com a sua linguagem das aves abafada pelo rugido das feras não conhecedoras, por incapacidade natural, dessa linguagem sublime com que Deus dotou os que bem entendeu.
que mais mantém as ilusões. Ora a ilusão, como sabemos, é uma imagem inconsistente e perigosa. É por termos estas pseudo-elites que Portugal anda como anda. São elas as responsáveis pelo aniquilamento dos mensageiros que trazem uma mensagem do "alto" com o seu olhar de águia e a sua despreocupação com a sua situação no tempo que sabem bem não existir. Quem quer pertencer à "elite pensadora" tem de se auto-proclamar "defensor do reino" ainda que na prática apenas o agrida ainda mais. Pensar Portugal, só por si não chega . Aquilo que une os "mensageiros" é o coração. Ou batem juntos de forma a alcançar alguma sintonia ou então são, quando caçados, atirados para o saco de gatos, numa primeira fase (a da confusão), e para o circo das feras (a da selvageria pouco lúcida), numa segunda fase, composta por feras-defensoras e que, como feras que são, atacam para defender a ilusão que agride o país. Tentam o despedaçamento de todas as formas do infeliz mensageiro que mais não é do que um pássaro cantor, com a sua linguagem das aves abafada pelo rugido das feras não conhecedoras, por incapacidade natural, dessa linguagem sublime com que Deus dotou os que bem entendeu.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020
Aranhiços
Não tens como fugir
És um aranhiço que perdeu a teia
E passeou
Em todas as desculpas que encontrou
Para não pedires Desculpa
As desculpas são pequenos aranhiços
Desnorteados que saíram do aranhiço mãe, magricelas, fracos, absurdos sem a graça da Dança
A Desculpa, é encorpada
Corajosa
Fluente
Conta a longa história da verdade
Recupera a teia
Desfaz a teia
E voa.
És um aranhiço que perdeu a teia
E passeou
Em todas as desculpas que encontrou
Para não pedires Desculpa
As desculpas são pequenos aranhiços
Desnorteados que saíram do aranhiço mãe, magricelas, fracos, absurdos sem a graça da Dança
A Desculpa, é encorpada
Corajosa
Fluente
Conta a longa história da verdade
Recupera a teia
Desfaz a teia
E voa.
domingo, 2 de fevereiro de 2020
O Capuccino
Na verdade sou uma cápsula do tempo onde guardo o tempo selectivo. Dizem que a memória é selectiva, coisa que não sei nem me interessa. Na verdade, o tempo é muito mais interessante até porque não existe ou existe sempre todo ao mesmo tempo. Depois, vem a vanguarda do que sou, eterna suicida de si própria, onde por pequenos pontos de luz, espreita o tempo que escolhi. E o outro que há, não é escolha minha é o do futuro que me engole e onde não há espaço para a saudade porque os seres, os tempos e a luz não a justificam mais. É o tempo selectivo do futuro. Embrenho-me por essa floresta sem que ela tenha um aspecto assustador. Uma apaziguada verdura, uma cascata cristalina, o sol dourado por entre as árvores. O mar brilhando no terraço da minha alma. Ninguém suspeita desses recortes do tempo. Quando passo vou disfarçada do contemporâneo e facilmente entro nos locais da moda e me sento e peço um capuccino. E cruzo as pernas enquanto aventuro o garfo no bolo de frutos vermelhos feito com produtos biológicos. Nesse instante, estou na moda. No Chiado. No último café que abriu. E o meu baton sorri. Mas espio tudo. Abro a mala e só tenho tempo lá dentro. Tempos incríveis. Palácios antigos, aldeias de inverno com tripés abrasados pelas horas ao lume, lenços dos namorados originais, pombas do Espírito Santo soltas em alto mar... Na minha mala trago todas as aventuras do passado e essa quietude do paraíso onde as aves cantam e o nosso corpo feito de flores. O contemporâneo só serve para espiar, não para guardar.
sábado, 1 de fevereiro de 2020
Saudades
Pintura de Cynthia Guimarães Taveira
"Aqui há vida, disseste-me". "Efervescente, que me devolveu a esperança", pensei. Já andava meio morta pela cidade. As luzes brancas demais, as conversas, triviais, o enfado das plateias adormecidas, tudo obra das duas últimas décadas, noventa e dois mil. Eu que tinha crescido por entre camarins e o deslumbramento, enfatizado pelas palavras, com a arte. Tinha visto tudo morrer devagar à minha volta. A filosofia tinha-se tornado pouco viva e vivaz. Os filósofos arrastavam os pés para velhas batalhas de palavras, não porque fossem tão velhas assim, mas porque eles as tinham tornado velhas e tudo girava em redor delas. No início não percebi, parecia que tinha ido ali parar por engano mesmo sabendo bem que era a coisa em que menos me tinha enganado no mundo. Mas depois eles rodearam-me, numa noite. Estava tanto frio. Mas estavam lá todos. Até tu, que entraste aos gritos. Como me soavam bem esses gritos. Ainda hoje os ouço como se fossem a festa do mundo. E conversaram sobre as coisas mais improváveis. E disseram-me para ser. Eles não queriam saber de mais nada a não ser disso. Queriam que fosse, porque eles já o eram há muito tempo. Anos mais tarde, fui devolvida ao mundo. Ao mesmo mundo ou um ainda pior de onde tinha saído. Percebi que o brilho no olhar era ainda mais inadmissível, as mãos a dançar, chocantes, as palavras a jorrar, impossíveis de acompanhar sem o tremor de terra interno. Não tinha um porteiro do mundo à minha espera, apenas carrascos indiferentes e ainda mais adormecidos no caldo morno e meloso, onde, por debaixo da paz, a falsidade, o pequeno ódio, a clandestina raiva, jorrava como uma fonte. E tenho saudade tuas. Tantas. Da tua grandeza. Do teu amor mais-do-que-tudo e da tua intolerância inteligente. As vozes mentirosas pensam que me marcaram, que me traumatizaram, que conseguiram o seu propósito. Mas quem me marcou foste tu, como uma chama, e todos os que foram naquela viagem incrível, pelas entranhas da vida porque todos já tínhamos morrido de alguma maneira. Não tinha sido a morte infligida o que me tinha transformado. Tinha sido a vida com que me tinham insuflado que me tinha mudado para sempre. Todos vós, naquela noite, rodeando-me como anjos, tinham dito: "Tomai-nos, isto é a vida". E nunca uma flor me pareceu tão importante.
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