quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O lado certo da História

https://www.dn.pt/cultura/richard-zimler-a-memoria-do-holocausto-tem-de-competir-com-a-propaganda-neonazi-11768195.html



"E não se esqueçam: o lado certo da história é sempre o lado que tem uma memória. 

As audiências atentas das catatuas popularuchas aumentam na proporção directa em que o pensamento científico, com base nas matemáticas, é o único considerado legítimo e na medida em que o pensamento religioso bi-polar está por detrás desse pensamento científico. Os dois têm a garantia, por mais de um ano, de funcionarem. As sociedades funcionais são apressadas na sua essência pois o único objectivo é o de fazer com que qualquer coisa funcione, independentemente do que seja que funcione.
Não há nada contra aquilo que funciona em termos individuais, até porque cada indivíduo é igual a si próprio, sem cópias nem fotocópias de si mesmo. Mas quando chegamos à sociedade, esta crença no que funciona e no que não funciona e que substituiu a verdade e que é o mesmo para todos os indivíduos, aí, nada como elevar o pensamento científico ao altar.
Diz Zimmler que o lado certo da História é sempre o lado que tem memória. Porque a memória nunca é bi-polar e mostra-nos que as coisas nem sempre funcionam.
A memória faz sobretudo parte das áreas humanísticas e, por mais que um cientista tenha memória, o seu objectivo é sempre conhecer mais no futuro ao passo que as áreas humanistas obrigam a saber cada vez mais sobre o passado. Conhecer e saber continuam a ser duas palavras distintas e qualitativamente diferentes. O conhecimento pode ser mais ou menos superficial, a sabedoria é sempre longa, no tempo e no espaço e sempre profunda, por isso mesmo.
A destituição da importância das áreas humanísticas no ensino irá sempre abrir o terreno para que o conhecimento passe e se instale. O bom índio passa a ser o índio morto rapidamente -- não há nada que funcione melhor do que a morte. Quem diz índio diz judeu ou qualquer outro. Para um nazi alemão, mais cedo ou mais tarde, um bom português será um português morto. E assim por diante, até a destruição final. O conhecimento sem sabedoria conduz à destruição. As culturas de morte sustentadas por algumas religiões bi-polares fazem exactamente o mesmo. Funcionam as duas de igual maneira. Funcionam, mas são pouco sábias ou nada.
De maneira que, quando George Steiner se espantava com o facto de os soldados alemães ouvirem Wagner e a seguir irem matar alegremente o bom judeu que só era bom morto, isso indicava que o pensamento do alemão nada tinha a ver com a cultura. O pensamento é absolutamente independentemente da cultura e absolutamente dependente do que se conhece. Desde modo podemos encontrar eruditos sem um pingo de sabedoria e com um vasto conhecimento. A cultura não é o que se conhece, é o que se sabe. Se assim não fosse, o povo nunca poderia vir a ser sábio e é-o muitas vezes. A origem da palavra "cultura" reside na semente que é lançada à terra e que pode crescer ou não, conforme as condições. A diferença é que, ao contrário da ciência, nem sempre funciona. E começa logo aí o problema da qualidade e da circunstância que vai acompanhar todo o caminho da sabedoria.
Ao renegar as áreas humanísticas e ao situá-las em segundo plano, teremos sempre à nossa frente uma cultura de morte, ou seja, a cultura invertida. Uma cultura de morte não lança sementes de vida à terra. É espantoso como a contra-iniciação, cujo sinal é a inversão, se manifesta cada vez mais. Poderemos ter todo o conhecimento do mundo e, ainda assim, não saber nada. Há uma anedota judaica que mostra o valor da sabedoria: um judeu morre e vai parar ao céu, só que o céu não era o que ele pensava. A paisagem era desoladora e, aqui e ali, viam-se homens sentados em cima de pedras a ler. O judeu diz ao anjo que naquele céu não há nada, só homens a ler e que aquilo não era de certeza o paraíso. E o anjo diz-lhe: "Para eles é porque finalmente entendem o que lêem".


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